Simone de Beauvoir
SlMONE DE BEAUVOIR
continuando...
Entretanto, não se deve acreditar que todas as dificuldades se atenuem nas mulheres de temperamento ardente. Ao contrário, podem exasperar-se. A perturbação feminina pode atingir uma intensidade que o homem não conhece. O desejo do homem é violento mas localizado e o deixa — salvo talvez no instante do espasmo — consciente de si mesmo; a mulher, ao contrário, experimenta uma verdadeira alienação; para muitas, essa metamorfose é o momento mais voluptuoso e definitivo do amor, mas ela tem também um caráter mágico e assustador. Acontece de o homem amedrontar-se diante da mulher que tem nos braços, a tal ponto ela se apresenta ausente de si mesma e presa como que de desvario. O transtorno que ela sente é uma transmutação bem mais radical do que o frenesi agressivo do homem. Essa febre a liberta da vergonha; mas, ao despertar, causa-lhe por sua vez vergonha e horror; para que ela aceite esse transtorno com felicidade — e até com orgulho — será preciso, ao menos, que se tenha desabrochado em chamas de volúpia: poderá reivindicar seus desejos se os tiver gloriosamente satisfeito: caso contrário os repudiará com raiva.
Toca-se aqui no problema crucial do erotismo feminino: no início de sua vida erótica, a abdicação da mulher não é compensada por um gozo violento e certo. Ela sacrificaria muito mais facilmente pudor e orgulho se com isso abrisse as portas de um paraíso. Mas vimos que o defloramento não é uma feliz realização do erotismo juvenil; é, ao contrário, um fenômeno insólito; o prazer vaginal não se verifica imediatamente; segundo as estatísticas de Stekel — que numerosos sexólogos e psicanalistas confirmam — somente 4% das mulheres sentem prazer desde o primeiro coito; 50% não atingem o prazer vaginal antes de semanas, meses, e até anos. Os fatores psíquicos desempenham nisso um papel essencial. O corpo da mulher é singularmente "histérico", no sentido de que não há muitas vezes nela nenhuma distancia entre os fatos conscientes e sua expressão orgânica; suas resistências morais impedem o aparecimento do prazer; não sendo compensadas em nada, amiúde elas se perpetuam e formam uma barreira dia a dia mais forte. Em muitos casos, cria-se um círculo vicioso: uma primeira inabilidade do amante, uma palavra, um gesto desastrado, um sorriso arrogante repercutirão durante toda a lua de mel e até na vida conjugai; decepcionada por não ter conhecido imediatamente o prazer, a jovem mulher guarda um rancor que a predispõe mal a uma experiência mais feliz. É verdade que, na falta de prazer normal, o homem pode dar-lhe sempre o prazer clitoridiano que, a despeito das lendas moralizadoras, é suscetível de lhe dar relaxamento e serenidade. Mas muitas mulheres recusam-no porque, mais ainda do que o prazer vaginal, êle se apresenta como imposto, pois se a mulher sofre com o egoísmo dos homens que só pensara em sua própria satisfação, sente-se também chocada por uma vontade demasiado explícita de lhe dar prazer. "Fazer o outro gozar, diz Stekel, quer dizer dominá-lo; dar-se a alguém é abdicar a própria vontade." A mulher aceitará muito mais facilmente o prazer se este lhe parecer decorrer naturalmente do que o homem tem êle próprio, como acontece num coito normal realizado com êxito. "As mulheres submetem-se com alegria, quando percebem que o parceiro não as quer submeter", diz ainda Stekel; mas inversamente, se sentem essa vontade, revoltam-se; a muitas repugna deixarem-se acariciar com a mão, porque a mão é um instrumento que não participa do prazer que dá, é atividade e não carne; e se o próprio sexo se apresenta não como uma carne penetrada de desejo e sim como um utensílio habilmente utilizado, a mulher experimentará a mesma repulsa.. Demais, toda compensação lhe parecerá confirmar seu malogro em conhecer as sensações de uma mulher normal. Stekel verifica, segundo numerosas observações, que todo o desejo das mulheres ditas frias se orienta para a norma: "Elas querem alcançar o orgasmo como uma mulher normal, não as satisfazendo moralmente qualquer outro processo".
A atitude do homem tem, portanto, enorme importância. Se seu desejo é violento e brutal, sua parceira sente-se transformada em simples coisa em seus braços; mas se é demasiado senhor de si, demasiado displicente, ele não se constitui como carne; êle pede à mulher que se faça carne sem que em paga ela tenha algum domínio sobre ele. Em ambos os casos, seu orgulho se rebela; para que ela possa conciliar sua metamorfose em objeto carnal e a reivindicação de sua subjetividade, é preciso que, se tornando presa para o macho, também faça dele sua presa. Eis por que, tão amiúde, a mulher se obstina na frieza. Se o amante carece de sedução, se é frio, negligente, desajeitado, malogra em despertar a sexualidade dela ou a deixa insatisfeita; mais viril e hábil, pode suscitar reações de recusa; a mulher teme seu domínio: algumas só podem encontrar o prazer com homens tímidos, mal dotados e até semi-impotentes, que não as amedrontam. É fácil ao homem despertar com sua inabilidade azedume e rancor. O rancor é a mais frequente causa da frieza feminina. Na cama, mediante uma frieza insultante, a mulher faz o homem pagar todas as afrontas que imagina ter recebido: há, muitas vezes, em sua atitude um complexo de inferioridade agressivo: posto que não me amas, posto que tenho defeitos que me impedem de agradar e que sou desprezível, não me entregarei tampouco ao amor, ao desejo, ao prazer. Assim é que se vinga dele e de si mesma, a um tempo, se ele a humilhou com sua negligência, se excitou seu ciúme, se se declarou tarde demais, se fez dela sua amante quando ela aspirava ao casamento. O ressentimento pode aparecer repentinamente e provocar uma reação mesmo durante uma ligação cujo início foi feliz. É raro que o homem que suscitou essa inimizade consiga ele próprio vencê-la; pode acontecer entretanto que um testemunho persuasivo de amor modifique a situação. Viram-se mulheres desconfiadas e tensas entre os braços do amante, que uma aliança no dedo transformava: felizes, lisonjeadas, com a consciência em paz, todas as resistências se dissipavam. Mas é um recém-chegado, respeitoso, amoroso, delicado, que poderá transformar a mulher despeitada em uma amante ou uma esposa feliz: se ele a libertar de seu complexo de inferioridade, ela se entregará com ardor.
A obra de Stekel, A Mulher Fria, esforça-se essencialmente por demonstrar o papel dos fatores psíquicos na frieza feminina. Os exemplos seguintes mostram bem que esta é muitas vezes uma conduta de rancor para com o marido ou o amante.
A Srta. G. S. entregara-se a um homem à espera do casamento, mas insistindo no fato de que "não fazia questão de casamento, que ela não queria ficar presa". Representava o papel de mulher livre. Na verdade, era escrava da moral como toda a sua família. Mas o amante acreditava-a livre e não falava nunca de casamento. Sua obstinação intensificava-se dia a dia mais e ela acabou por tornar-se insensível. Quando ele a pediu enfim em casamento, ela vingou-se confessando sua anestesia e não querendo mais ouvir falar de união. Não queria mais ser feliz. Esperara demais. . . Devorava-se de ciúme e aguardava ansiosamente o dia do pedido para recusar orgulhosamente. Mais tarde quis suicidar-se a fim de punir o amante com requinte.
Uma mulher que até então tivera prazer com o marido, mas que era muito ciumenta, imagina, durante uma doença, que o marido a engana. Voltando para casa, resolve ser fria com o marido. Nunca mais deveria ser excitada por ele, desde que ele não a estimava e usava dela somente em caso de necessidade. Desde a volta para casa tornara-se fria. No princípio, valia-se de pequenos truques para não se excitar. Imaginava o marido fazendo a corte a uma amiga. Mas, dentro em breve, o orgasmo foi substituído por dores. . .
Uma jovem de 17 anos tinha uma ligação com um homem e sentia intenso prazer. Grávida aos 19 anos, pediu ao amante que a desposasse; ele ficou indeciso e aconselhou-a a provocar o aborto, o que recusou. Após três semanas, ele se declarou disposto a casar e ela tornou-se sua mulher. Mas ela não lhe perdoou nunca as três semanas de tormento e tornou-se fria. Posteriormente, uma explicação com o marido venceu a frigidez.
Mme N. M. vem a saber que o marido, dois dias antes do casamento, fora ver uma antiga amante. O orgasmo que ela sentia antes desapareceu para sempre. Ficou com a ideia fixa de não mais agradar ao marido que pensava ter desiludido. Nisto está a seu ver a causa de sua frigidez.
Mesmo quando a mulher supera essas resistências e conhece, ao fim de um tempo mais ou menos longo, o prazer vaginal, não se abolem ainda todas as dificuldades: porque o ritmo de sua sexualidade e da sexualidade masculina não coincidem. Ela demora muito mais a gozar do que o homem.
Três quartos dos homens, talvez, conhecem o orgasmo durante os dois minutos que se seguem ao início do ato sexual, diz o relatório de Kinsey. Se tivermos em vista as numerosas mulheres de nível superior cujo estado é tão desfavorável às situações sexuais que dez ou quinze minutos de estimulação ativa lhes são necessários para que conheçam o orgasmo, e se considerarmos o número bastante importante de mulheres que não conhecem durante toda sua vida o orgasmo, é preciso naturalmente que o homem tenha uma capacidade inteiramente excepcional em prolongar a atividade sexual sem ejacular para poder criar uma harmonia com sua parceira.
Diz-se que na Índia o marido fuma de bom grado o cachimbo ao mesmo tempo que cumpre o dever conjugal, a fim de se distrair do próprio prazer e fazer durar o da esposa; no Ocidente é antes do número de "trepadas" que se vangloria um Casanova; e sua suprema vaidade consiste em conseguir que a parceira se esgote; segundo a tradição erótica, é uma façanha que não se repete muitas vezes. Os homens queixam-se amiúde das terríveis exigências da companheira: uma matriz danada, uma ogra, uma esfaimada; nunca se satisfaz. Montaigne expõe esse ponto de vista no Livro III de seus Essais (cap. V).
Elas são sem comparação mais capazes e ardorosas quanto aos efeitos do amor do que nós e assim o testemunhou esse sacerdote antigo que ora fora homem e ora fora mulher. . . Ademais, sabemos pelo que eles próprios contaram da prova que fizeram outrora em séculos diversos um imperador e uma imperatriz de Roma, peritos e famosos nessas tarefas. Ele desvirginou em uma noite dez jovens cativas sármatas, mas ela se entregou de verdade em uma noite a vinte e cinco, mudando de companheiro segundo sua disposição e seu gosto,
adhuc ardens rigidae tentigine vulvaeEt lassata viris, necdum satiata recessit [1]
e também a querela verificada na Catalunha entre uma mulher queixando- se dos esforços demasiado assíduos do marido, não a ponto de incomodá-la, a meu ver (pois em matéria de milagres só acredito nos da fé) . . . do que resultou esta notável decisão da rainha de Aragão pela qual, após madura deliberação do Conselho, essa grande dama. . . determinou como limites legítimos e necessários o número de seis coitos por dia, não levando em conta a necessidade e o desejo de seu sexo para estabelecer, dizia, uma norma comum e portanto permanente e imutável.
[1] Juvenal. Todavia, ardendo de volúpia, retira-se ela esgotada, porem insatisfeita (N. do T.).
É que, em verdade, a volúpia não tem na mulher a mesma forma que no homem. Já disse que não se sabia exatamente se o prazer vaginal chegava algum dia a um orgasmo definido; neste ponto, as confidências femininas são raras e, mesmo quando existem, e visam à precisão, são extremamente vagas; parece que as reações são muito diferentes segundo os indivíduos. O que é certo é que o coito tem para o homem um fim biológico preciso: a ejaculação. E é seguramente através de muitas outras intenções demasiado complexas que esse fim é visado; mas uma vez atingido, surge como uma consequência, e se não como a satisfação do desejo, ao menos como sua supressão. Ao contrário, na mulher, o fim é um ponto de partida incerto e de natureza mais psíquica do que fisiológica; ela quer a comoção, a volúpia em geral, mas seu corpo não projeta nenhuma conclusão nítida do ato amoroso: e é por isso que para ela o coito nunca finda inteiramente: não comporta um fim. 0 prazer do macho sobe como flecha; ao atingir um certo ponto realiza-se e morre abruptamente no orgasmo; a estrutura do ato sexual é finita e descontínua. O gozo feminino e irradiado pelo corpo inteiro: nem sempre é centrado no sistema genital; e, mesmo então, as contrações vaginais, mais do que um verdadeiro orgasmo, constituem um sistema de ondulações que nascem ritmicamente, dissipam-se, reformam-se, atingem por momentos um paroxismo e em seguida se embaralham e se fundem sem nunca morrer completamente. Não lhe correspondendo nenhum termo fixo, o prazer visa o infinito: é muitas vezes uma fadiga nervosa ou cardíaca, ou uma saciedade psíquica que limita as possibilidades eróticas da mulher mais do que uma satisfação precisa; mesmo plena, mesmo esgotada, nunca ela se liberta inteiramente:
Lassata necdum satiata, na expressão de Juvenal.
continua página 136...
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (1)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (9)O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (8)O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (7)O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (6)O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (5)O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (4)O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (3)O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (2)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (1)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (1)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (2)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (3)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (4)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (5)
As mulheres de nossos dias estão prestes a destruir o mito do "eterno feminino": a donzela ingênua, a virgem profissional, a mulher que valoriza o preço do coquetismo, a caçadora de maridos, a mãe absorvente, a fragilidade erguida como escudo contra a agressão masculina. Elas começam a afirmar sua independência ante o homem; não sem dificuldades e angústias porque, educadas por mulheres num gineceu socialmente admitido, seu destino normal seria o casamento que as transformaria em objeto da supremacia masculina.
Neste volume complementar de O SEGUNDO SEXO, Simone de Beauvoir, constatando a realidade ainda imediata do prestígio viril, estuda cuidadosamente o destino tradicional da mulher, as circunstâncias do aprendizado de sua condição feminina, o estreito universo em que está encerrada e as evasões que, dentro dele, lhe são permitidas. Somente depois de feito o balanço dessa pesada herança do passado, poderá a mulher forjar um outro futuro, uma outra sociedade em que o ganha--pão, a segurança econômica, o prestígio ou desprestígio social nada tenham a ver com o comércio sexual. É a proposta de uma libertação necessária não só para a mulher como para o homem. Porque este, por uma verdadeira dialética de senhor e servo, é corroído pela preocupação de se mostrar macho, importante, superior, desperdiça tempo e forcas para temer e seduzir as mulheres, obstinando-se nas mistificações destinadas a manter a mulher acorrentada.
Os dois sexos são vítimas ao mesmo tempo do outro e de si. Perpetuar-se-á o inglório duelo em que se empenham enquanto homens e mulheres não se reconhecerem como semelhantes, enquanto persistir o mito do "eterno feminino". Libertada a mulher, libertar-se-á também o homem da opressão que para ela forjou; e entre dois adversários enfrentando-se em sua pura liberdade, fácil será encontrar um acordo.
O SEGUNDO SEXO, de Simone de Beauvoir, é obra indispensável a todo o ser humano que, dentro da condição feminina ou masculina, queira afirmar-se autêntico nesta época de transição de costumes e sentimentos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário