terça-feira, 5 de julho de 2022

parábolas de uma professora: a morte de 700.000 vidas é a política da morte

 parábolas de uma professora


a morte de 700.000 vidas é a política da morte
Ensaio 021B – 3ª.ed


baitasar e paulus e marko e kamilá



gente, essa reunião está difícil de acompanhar, longe de ser aconchegante, a altíssima não olha mais para o relógio, não faz mais movimentos para interromper as conversas paralelas, parece cansada, com certeza tem mais recados e avisos administrativos, o ponto e as regras digitais, crachás, as filas, o refeitório, o nosso novo normal como entregadores on-line de notas, frequência e planos pedagógicos, tudo acostuma e vira costume

e as aulas? continuam e continuam, precisam continuar

que tempo assustador – e ao mesmo tempo desafiador – para ser professora de história e geografia, explicar que hoje homens e mulheres – e sua criadagem subalterna –, no poder da república, sem amorosidade, sem abraço, sem paciência, sem esperança, qualificam a ignorância de uma terra plana pré-copernicana para preservarem sua posse econômica concentrada e o orgulho da sua não qualificação humana

acredito na escola pública que brilha por estar atenta à vida, a nossa necessidade ontológica de ser mais, por se manter amorosa e acolhedora às diferenças, não para jogá-las em um gueto de extermínio lento e gradual – e se tranquilizar da tarefa cumprida – ou acomodar a vida sortida e colorida em uma estufa no quartinho dos fundos

uma escola pública ética e verdadeira luta contra o mundo excludente, falso e caridoso

acredito na escola pública que denuncia a dissimulação de um mundo egoísta que faz das sobras das sobras a caridade que salva – remido por necessidade, nunca por vocação –, um mundo mumificado que valoriza o ter mais e mais além do que a vida pede, um amontoado de pessoas indiferentes às vidas além do próprio umbigo

Se me permitem, gostaria de continuar... posso? Ainda não terminei, é rapidinho, a altíssima calada, o relógio no pulso, o polegar da mão esquerda acariciando o mostrador de vidro que protege os ponteiros do relógio, mais importante é entender que o nacionalismo é o chicote dos patriotas ultraconservadores, Ame do nosso jeito ou saia! Lembram? Eu não acredito nesse mundo patriota e caridoso, mas sem igualdade social, sem pensamento livre, sem a voz que não se cala, a voz assassinada. 

Professor, esperança sem intenção, atenção e tesão é água morna para os pés, um alívio, mas os sapatos continuam apertados...

digo, a mim mesma, para prestar atenção no entorno, nas vozes silenciosas que não se mostram em tudo que já foi dito, e mais importante, vozes que poderiam denunciar-anunciar o que não foi dito, esquecido pelo desânimo implacável de acreditar um pouco menos, a cada dia, quase suplico para que uma outra voz se permita dizer a sua palavra, destas que nunca ou quase nunca se mostram, mas pulsam aqui, nas conversas silenciosas

Eu saúdo a escola que ensina e educa, não quer nossos alunos e alunas desaparecendo no cotidiano das avaliações cartesianas – aprovada ou reprovado, sabe ou não sabe as respostas –, mas discute e questiona, debate e conversa, se transforma na fecundidade frágil entre escutar e falar, reviro-me toda para trás, procuro a voz nova, lá está, Quem é esse, Agnes, Carne nova, Anita. Chegou hoje... filosofia, minhas súplicas dialógicas foram atendidas, precisamos dizer nossa palavra, descobrir que pensamos diferentes, dialogar com o silêncio é constrangedor e perigoso, nosso destino humano é o diálogo.

Destino? Por favor, professor! Ficamos de uma hora para outra obsoletas e irrelevantes. Perdemos nossa proteção permanente, não temos respostas para essa avalanche de baboseiras nas redes sociais. Então, nossa histórica posição de adestradoras, segundo as palavras do Marko, está ameaçada de uma forma ou de outra. Todas sentimos essa impotência.

Concordo em parte, colega...

Cabayba...

Certo, professora Cabayba. As redes estão adestrando mais e mais rápido. E só exigem um like, um olhar superficial e a sua replicação. Mas temos o diálogo presencial, a disputa ao vivo das ideias, dos pensamentos, dos conceitos, o olhar, a voz, a amorosidade, o abraço, as conversas no pátio, no recreio, no refeitório. A vida pulsa na escola, desde que evitemos a tsunami do silêncio...

Ou deveria pulsar...

Não concordo, Cabayba, corro em socorro do filósofo, sei que não dei o tempo do pedido ou não de socorro, sinto os olhares voltados para mim, respiro fundo enquanto me penso, E agora, Anita? Vamos, dê o próximo passo, continue, mostre suas unhas e dentes, não se deixe comer pela multidão, olhos de todos os lugares, dentro e fora de mim mesma, continuo pulsando, acredito nos atos e reflexões de homens e mulheres num fazer renovador que pretende incinerar a neutralidade estúpida – curta de inteligência, mal-intencionada e esquecida, “Não gosto de política” ou “Não faço política” ou “Político é tudo igual” ou –, tudo é política, sinto as veias do pescoço prontas para explodirem

Então, Anita... estamos esperando...

pronto, me joguei dentro de um lugar organizado para ter o controle, nada pode ser feito diferente, paralisando, parece que passei de culpada a perseguida, sigamos a nos mexer

Cabayba, concordo com o colega...

Filipe, professor de filosofia...

Seja bem-vinda, senhor filosofia.

Obrigado.

Concordo com o professor Filipe, para de gaguejar anita, as mãos suando, o nosso destino é dialógico. O caminho é a conversa, o entendimento, a solidariedade, as reuniões pedagógicas, etcetcetc... tudo é política. A neutralidade é estúpida. O preço da carne é política, o preço da gasolina é política, o salário menor para as mulheres é política, o extermínio dos jovens pretos é política, os alfas e betas na alfabetização é política, aumentar a carga horária de português e matemática é política, o transporte público é política, a saúde pública é política, o SUS é política, os alagamentos e buracos nas ruas é política, a iluminação pública é política, água e luz para todos é política, defender o estado de direito e fortalecer a justiça é política, paro para respirar, as veias continuam pulsando, não lembro quando levantei, mas estou em pé, a educação pública é política, defender e lutar pela escola pública de qualidade para todos e todas é fazer política! Escolher se calar é fazer política. Anunciar que a terra é plana é fazer política, colocar em dúvida que vacina salva é fazer política. Acabar com a fome é fazer política. Criar empregos é fazer política. Proteger as terras indígenas é fazer política. Proteger o meio ambiente é fazer política. Lutar pela água como um bem comum é fazer política. Proteger e cuidar da vida é fazer política. 




__________________


Leia também:

parábolas: ensaio 001A / Camarada, Ofélia!
parábolas: ensaio 002A / o coração livre para voar
parábolas: ensaio 003A / macho, branco e dono de tudo
parábolas: ensaio 004A / uma carreta de bois
parábolas: ensaio 005A / amar para se deliciar junto
parábolas: ensaio 006A / civismo cínico
parábolas: ensaio 007A / o compromisso
parábolas: ensaio 008A / minicontos de natal
parábolas: ensaio 009A / a fome que nunca passa
parábolas: ensaio 010A / o medo no cardápio pedagógico
parábolas: ensaio 011A / o futuro não é eterno
parábolas: ensaio 012A / o bufê das comidas invisíveis
parábolas: ensaio 013B / o sorriso cínico da desesperança maliciosa
parábolas: ensaio 014B / a esperança mobiliza a realidade
parábolas: ensaio 015B / silenciar o outro não é educar
parábolas: ensaio 016B / Eva e a uva
parábolas: ensaio 017B / acertou, ele mesmo...parábolas: ensaio 020B / o patriotismo de fachada
parábolas: ensaio 021B / a morte de 700.000 vidas é política

Nenhum comentário:

Postar um comentário