domingo, 10 de julho de 2022

Julio Verne - A Volta ao Mundo em 80 Dias, Capítulo XXXV

Júlio Verne



A Volta ao Mundo em 80 Dias





CAPÍTULO XXXV

EM QUE PASSEPARTOUT NÃO PEDE PARA SEU PATRÃO REPETIR
DUAS VEZES UMA ORDEM DADA




No dia seguinte, os moradores de Saville Row teriam ficado bem surpresos, se lhes tivessem dito que Mr. Fogg tinha voltado para casa. Portas e janelas, tudo estava fechado. Nenhuma mudança se tinha produzido exteriormente.
Com efeito, após ter deixado a estação, Phileas Fogg tinha mandado Passepartout comprar algumas provisões, e tinha voltado para casa.
O gentleman tinha recebido com sua impassividade habitual o golpe que o ferira. Arruinado! e por culpa deste inspetor de polícia trapalhão! Após ter caminhado a passos seguros durante um longo percurso, após ter ultrapassado mil obstáculos, arrostado mil perigos, tendo ainda tempo para fazer algum bem pelo caminho, morrer na praia por um fato brutal, que não poderia prever, e contra o qual estava desarmado: era terrível! Da soma considerável que tinha levado ao partir, só lhe restava um saldo insignificante. Sua fortuna era só as vinte mil libras depositadas no Baring Irmãos, e essas vinte mil libras, ele as devia aos seus colegas do Reform Club. Após tantas despesas, ganhar a aposta não o teria enriquecido sem dúvida, e é provável que não tivesse procurado se enriquecer — sendo desses homens que apostam por honra — mas a aposta perdida o arruinava totalmente. E mais, a decisão do gentleman estava tomada. Sabia o que lhe restava fazer.
Um quarto da casa de Saville Row tinha sido reservado para Mrs. Aouda. A jovem estava desesperada. Por certas palavras pronunciadas por Mr. Fogg, compreendera que este meditava algum plano funesto.
Sabemos, com efeito, a que deploráveis extremos são levados às vezes esses ingleses monomaníacos sob a pressão de uma ideia fixa. Também Passepartout, sem parecer, vigiava seu patrão.
Mas, assim que chegou, o honesto rapaz tinha subido ao seu quarto e apagado o bico que brilhava há oitenta dias. Tinha encontrado na caixa do correio uma conta da companhia do gás, e pensou que era mais que tempo de parar com esta despesa pela qual era responsável.
A noite passou. Mr. Fogg tinha deitado, mas teria dormido? Quanto a Mrs. Aouda, não pôde ter um só instante de repouso. Passapartout, este, tinha vigiado como um cão à porta de seu patrão.
No dia seguinte, Mr. Fogg o chamou e recomendou-lhe, em termos muito breves, que cuidasse do almoço de Mrs. Aouda. Para ele, ele se contentaria com uma xícara de chá e uma torrada. Mrs. Aouda que o desculpasse no almoço e no jantar, porque todo seu tempo estaria consagrado a colocar em ordem seus negócios. Não desceria. À noite somente, e pedia a Mrs. Aouda permissão para encontrá-la por alguns instantes.
Passepartout, tendo recebido o programa do dia, tinha que se conformar com ele.
Olhava seu patrão sempre impassível, e não podia se decidir a deixar o quarto. Seu coração estava aflito, sua consciência torturada por remorsos, porque se acusava mais que nunca deste irreparável desastre. Sim! se tivesse avisado Mr. Fogg, se lhe tivesse revelado os projeto do agente Fix, Mr. Fogg não teria certamente arrastado o agente até Liverpool, e então...
Passepartout não pôde se conter.
— Meu patrão! senhor Fogg! exclamou, amaldiçoe-me. É por minha culpa que...
— Não acuso ninguém, respondeu Phileas Fogg no tom mais calmo. Vá.
Passepartout deixou o quarto e veio encontrar a jovem, à qual participou as intenções de seu patrão.
— Madame, acrescentou, por mim nada posso, nada! Não tenho nenhuma influência sobre o espírito de meu patrão. A senhora, talvez...
— Que influência teria, respondeu Mrs. Aouda. Mr. Fogg não sente influência alguma! Compreendeu alguma vez que o meu reconhecimento estava prestes a transbordar! Leu alguma vez em meu coração!... Meu amigo, é preciso não o deixar, um só instante. Disse que ele manifestou a intenção de falar comigo esta noite?
— Sim, madame. Trata-se sem dúvida de salvaguardar sua situação na Inglaterra.
— Esperemos, respondeu a jovem, que ficou toda pensativa.
Assim, durante todo o domingo, a casa de Saville Row esteve como se tivesse estado desabitada, e, pela primeira vez desde que morava nessa casa, Phileas Fogg não foi ao seu club, quando onze e meia soaram na torre do Parlamento.
E por quê este gentleman teria se apresentado ao Reform Club? Seus colegas já não o esperavam mais. Pois que, na véspera à noite, naquela data fatal do sábado dia 21 de dezembro, às oito horas e quarenta e cinco, Phileas Fogg não tendo aparecido no salão do Reform Club, sua aposta estava perdida. Nem era necessário que fosse ao seu banqueiro retirar a soma de vinte mil libras. Seus adversários tinham em mãos um cheque assinado por ele, e bastaria um simples lançamento feito no Baring para que as vinte mil libras lhes fossem creditadas. Mr. Fogg não tinha por quê sair, e não saiu. Ficou no seu quarto e pôs em ordem seus negócios. Passepartout não cessou de subir e descer a escada da casa de Saville Row. As horas não andavam para este pobre rapaz. Escutava à porta do quarto do patrão, e, fazendo isso, não julgava cometer a menor indiscrição!
Olhava pelo buraco da fechadura, e imaginava ter esse direito! Passepartout temia a cada instante alguma catástrofe. Às vezes, pensava em Fix, mas uma reviravolta se tinha produzido em seu espírito. Não queria mais mal ao agente de polícia. Fix tinha se enganado como todo mundo a respeito de Phileas Fogg, e, seguindo-o, prendendo-o, não tinha feito mais que o seu dever, enquanto que ele... Esta ideia o oprimia, e ele se julgava o último dos miseráveis.
Quando, por fim, Passepartout se achava infeliz demais para ficar sozinho, batia à porta de Mrs. Aouda, entrava no quarto, sentava-se a um canto sem dizer palavra, e contemplava a jovem sempre pensativa.
Pelas sete e meia da noite, Mr. Fogg mandou perguntar a Mrs. Aouda se o podia receber, e alguns instantes depois, a jovem e ele estavam a sós no quarto.
Phileas Fogg pegou uma cadeira e sentou perto da lareira, de frente para Mrs. Aouda. Seu rosto não refletia nenhuma emoção. O Fogg do regresso era exatamente o Fogg da partida. Mesma calma, mesma impassibilidade.
Permaneceu sem falar por cinco minutos. Depois, erguendo os olhos para Mrs. Aouda:
— Madame, disse, me perdoa por tê-la trazido para a Inglaterra?
— Eu, Mr. Fogg!... respondeu Mrs. Aouda, comprimindo os batimentos de seu coração.
— Por favor, me deixe concluir, retomou Mr. Fogg. Quando tive o pensamento de levá-la para longe daquele país, que se tornara tão perigoso para si, era rico, e contava colocar uma parte da minha fortuna à sua disposição. Sua existência teria sido feliz e livre. Agora, estou arruinado.
— Eu sei, senhor Fogg, respondeu a jovem, e eu perguntarei do meu lado: Me perdoa por tê-lo seguido e — quem sabe? — ter talvez, o atrasando, contribuído para a sua ruína?
— Madame, não podia ficar na Índia, e sua salvação só estaria assegurada se se afastasse o suficiente para que aqueles fanáticos não a pudessem recapturar.
— Assim, senhor Fogg, retomou Mrs. Aouda, não contente de me livrar de uma morte horrível, se sentiu obrigado a assegurar minha posição no estrangeiro?
— Sim, madame, respondeu Fogg, mas os acontecimentos se viraram contra mim. Entretanto, do pouco que me resta, peço licença para dispor a seu favor.
— Mas, senhor Fogg, o senhor, que será feito do senhor? perguntou Mrs. Aouda.
— Eu, madame, respondeu friamente o gentleman, eu não preciso de nada.
— Mas como, senhor, encara a sorte que o espera?
— Como convém encarar, respondeu Mr. Fogg.
— Em todo caso, retomou Mrs. Aouda, a miséria não saberia alcançar um homem como o senhor. Seus amigos...
— Não tenho amigos, madame.
— Seus parentes...
— Já não tenho parentes.
— Eu o lamento então, senhor Fogg, porque o isolamento é coisa triste. Imagine! nem um coração onde lançar suas máguas. Dizem contudo que a dois a própria miséria é ainda suportável.
— Dizem, madame.
— Senhor Fogg, disse então Mrs. Aouda, que se levantou e estendeu sua mão para o gentleman, quer ao mesmo tempo uma parente e uma amiga? Me quer para sua mulher?
Mr. Fogg, a esta palavra, tinha também se levantado. Tinha um brilho não usual nos olhos, um tremor nos lábios. Mrs. Aouda o olhava. A sinceridade, a retidão, a firmeza e a doçura deste belo olhar de uma nobre mulher que tudo ousa para salvar aquele a quem tudo deve, o espantaram a princípio, depois o comoveram. Fechou os olhos por um instante, como que para evitar que aquele olhar lhe penetrasse mais fundo... Quando os reabriu:
— Eu a amo! disse simplesmente. Sim, na verdade, por tudo o que há de mais sagrado no mundo, eu a amo, e sou todo seu!
— Ah!... exclamou Mrs. Aouda, levando sua mão ao coração.
Passepartout foi chamado. Veio imediatamente. Mr. Fogg tinha ainda em sua mão a mão de Mrs. Aouda. Passepartout compreendeu, e seu grande rosto radiou como o sol no zênite das regiões tropicais.
Mr. Fogg lhe perguntou se não seria muito tarde para ir avisar o reverendo Samuel Wilson, da paróquia de Mary leBone.
Passepartout sorriu o seu melhor sorrir.
— Nunca muito tarde, disse.
Eram só oito e cinco.
— Será amanhã, segunda feira! disse.
— Amanhã, segunda feira? perguntou Mr. Fogg olhando a jovem.
— Amanhã, segunda feira! respondeu Mrs. Aouda. Passepartout saiu, correndo.



continua pag 222...

_______________________



Julio Verne nasceu em Nantes em 8 de fevereiro de 1828. Fugiu de casa com 11 anos para ser grumete e depois marinheiro. Localizado e recuperado, retornou ao lar paterno. Em um furioso ataque de vergonha por sua breve e efêmera aventura, jurou solenemente (para a sorte de seus milhões de leitores) não voltar a viajar senão em sua imaginação e através de sua fantasia.
Promessa que manteve em mais de oitenta livros.
Sua adolescência transcorreu entre contínuos choques com o pai, para quem as veleidades exploratórias e literárias de Júlio pareciam totalmente ridículas.
Finalmente conseguiu mudar-se para Paris onde entrou em contato com os mais prestigiados literatos da época. Em 1850 concluiu seus estudos jurídicos e, apesar insistência do pai para que voltasse a Nantes, resistiu, firme na decisão de tornar-se um profissional das letras.
Foi por esta época que Verne, influenciado pelas conquistas científicas e técnicas da época, decide criar uma literatura adaptada à idade científica, vertendo todos estes conhecimentos em relatos épicos, enaltecendo o gênio e a fortaleza do homem em sua luta por dominar e transformar a natureza.
Em 1856 conheceu Honorine de Vyane, com quem casou em 1857.
Por essa época, era um insatisfeito corretor na Bolsa, e resolveu seguir o conselho de um amigo, o editor P. J. Hetzel, que será seu editor in eternum, e converteu um relato descritivo da África no Cinco Semanas em Balão (1863). Obteve êxito imediato. Firmou um contrato de vinte anos com Hetzel, no qual, por 20.000 francos anuais, teria de escrever duas novelas de novo estilo por ano. O contrato foi renovado por Hetzel e, mais tarde, por seu filho. E assim, por mais de quarenta anos, as Voyages Extraordinaires apareceram em capítulos mensais na revista Magasin D'éducation et de Récréation.
Em A Volta ao Mundo em 80 Dias, encontramos, ao mesmo tempo, muito da breve experiência de Verne como marinheiro e como corretor de Bolsa. Nada mais justo, também, que o novo estilo literário inaugurado por Júlio Verne, fosse utilizado por uma nova arte que surgia: o cinema. Da Terra à Lua (Georges Mélies, 1902), La Voyage a travers l'impossible (Georges Mélies, 1904), 20.000 lieus sous les mers (Georges Mélies, 1907), Michael Strogof (J. Searle Dawley, 1910), La Conquête du pôle (Georges Mélies, 1912) foram alguns dos primeiros filmes baseados em suas obras. Foram inúmeros.
A Volta ao Mundo em 80 dias foi filmado em 1956, com enredo milionário, dirigido por Michael Anderson, música de Victor Young, direção de fotografia de Lionel Lindon. David Niven fez Phileas Fogg, Cantinflas, Passepartout, Shirley MacLaine, Aouda. Em 1989, foi aproveitado para uma série de TV, com a participação da BBC, dirigida por Roger Mills. No mesmo ano, outra série de TV, agora nos EE.UU., dirigida por Buzz Kulik, com Pierce Brosnan (Phileas Fogg), Eric Idle (Passepartout), Julia Nickson-Soul (Aouda), Peter Ustinov (Fix).
Apesar de tudo, a vida de Verne não foi fácil. Por um lado sua dedicação ao trabalho minou a tal ponto sua saúde que durante toda a vida sofreu ataques de paralisia. Como se fosse pouco, era diabético e acabou por perder vista e ouvido. Seu filho Michael lhe deu os mesmos problemas que dera ao pai e, desgraça das desgraças, um de seus sobrinhos lhe disparou um tiro à queima-roupa deixando-o coxo. Sua vida efetiva também não foi das mais tranquilas e todos os seus biógrafos admitem ter tido uma amante, um relacionamento que só terminou com a morte da misteriosa dama.
Verne também se interessou pela política, tendo sido eleito para o Conselho de Amiens em 1888 na chapa radical, reeleito em 1892, 1896 e 1900.

Morreu em 24 de Março de 1905


_____________________


Leia também:

Julio Verne - A Volta ao Mundo em 80 Dias, Capítulo XXXV


_________________________


A Volta ao Mundo em 80 Dias é um romance de aventura escrito pelo francês Júlio Verne e lançado em 1873. A obra retrata a tentativa do cavalheiro inglês Phileas Fogg e seu valete, Passepartout, de circum-navegar o mundo em 80 dias.

Data da primeira publicação: 30 de janeiro de 1873
Autor: Júlio Verne
Editora: Pierre-Jules Hetzel
País: França
Personagens: Phileas Fogg, Passepartout, Princesa Aouda, Inspetor Fix, James Forster

Nenhum comentário:

Postar um comentário