domingo, 10 de julho de 2022

Edgar Allan Poe - Contos: Ligeia (3)

Edgar Allan Poe - Contos




Ligeia
Título original: Ligeia
Publicado em 1838



Há nisto uma vontade que não morre. Quem
conhece os mistérios da vontade e a sua força?
Porque Deus não é mais que uma grande
vontade, penetrando todas as coisas com a
intensidade que lhe é própria. O homem só
cede aos anjos e só se submete por completo à
morte pela fraqueza da sua pobre vontade.
— Joseph Glanville


continuando...


Uma noite, no fim de setembro, insistiu com mais energia que nunca na sua preocupação, Despertou de repente, depois de um sonho agitadíssimo, e a modificação brusca do seu rosto enfraquecido encheu-me de ansiedade e de terror. Eu estava sentado à cabeceira da cama, numa das poltronas; minha mulher soergueu-se e, em voz baixa, tornou a falar-me de ruídos que ela escutava mas que eu não podia ouvir, e de movimentos que ela percebia mas que eu não podia perceber.
O vento continuava a correr atrás das tapeçarias e procurei demonstrar-lhe — embora, confesso-o, eu não estivesse muito certo disso — que aqueles suspiros meio articulados e aquelas mudanças quase insensíveis nas figuras negras não eram mais do que o efeito natural da corrente de ar. Mas a sua lividez, cada vez mais profunda, demonstrou-me que todos os meus esforços para a tranquilizar eram inúteis. Supus que perdia o conhecimento e aterrou-me a solidão em que estávamos. Como nenhum criado se encontrava ao alcance da minha voz, atravessei a alcova para ir buscar o remédio que o médico aconselhara para estes casos. Ao passar debaixo da luz da lâmpada senti que qualquer coisa de palpável mas invisível tinha roçado levemente a minha pessoa e vi, sobre a tapeçaria dourada, no centro mesmo do clarão projetado pelo incensório, uma sombra — uma sombra débil, indefinida, de aspecto angélico — tal como poderia ser a sombra de uma sombra. Mas, como estava sob a ação de uma dose excessiva de ópio, não lhe dei a menor importância e não disse nada a Rowena. Encontrei o remédio, atravessei de novo o quarto e enchi o copo que levei aos lábios de minha mulher. Ela tinha recobrado um pouco as forças e bebeu a poção sem auxílio. Então deixei-me cair sobre o divã.
De súbito, ouvi distintamente um leve ruído de passos sobre o tapete, perto do leito, e, um segundo depois, no preciso instante em que Rowena levava o copo à boca, vi — talvez o sonhasse — vi cair, no copo, como de uma fonte invisível suspensa no ar, três ou quatro gotas de um fluido brilhante, cor de rubi.
Rowena não viu nada : engoliu o líquido sem hesitar e eu não pensei em falar-lhe de uma circunstância que, no fim de contas, talvez fosse filha da autossugestão da minha imaginação excitada, cuja influência mórbida só poderia aumentar o terror de minha mulher — e era porventura o resultado do ópio e das altas horas da noite.
Não posso ocultar, no entanto, que imediatamente após a queda das três gotas vermelhas se deu uma transformação fatal na enfermidade de minha mulher. De tal forma que, na terceira noite, as mãos dos seus servidores a amortalharam e eu fiquei só, com o seu corpo envolto no sudário, nessa câmara fantástica que a recebeu como segunda esposa.
Estranhas visões, que o ópio provocava, voltejavam como sombras em torno de mim. Olhava com olhos inquietos para os sarcófagos, para os cantos escuros do quarto, para as figuras móveis da tapeçaria, para as luzes vermiculares e furta-cores da lâmpada. E, de súbito, o olhar voltou a fixar-se naquele ponto do círculo luminoso onde vira passar a sombra ligeira de uma sombra. Mas desta vez não vi nada; e, respirando já mais livremente, olhei então para o lívido e rígido rosto imóvel sobre o leito. Então acudiram ao meu pensamento todas as recordações de Ligeia. Senti afluir ao meu coração, com a tumultuosa violência da maré, toda aquela dor inefável que sentira ao vê-la a ela também envolta num sudário. A noite avançava e eu continuava com os olhos fixos sobre o corpo de Rowena e com o coração cheio dela, essa ela única que foi o meu amor supremo.
Cerca da meia-noite, ou talvez depois da meia-noite, porque perdi a noção do tempo, um soluço muito ténue, muito leve, mas muito distinto, despertou-me do meu sonho. Senti que vinha do leito de ébano, do leito da morta; apurei o ouvido com a angústia do terror supersticioso. Concentrei o olhar com angustiado esforço, procurando descobrir o menor movimento do corpo. O corpo porém jazia imóvel. E, no entanto, era impossível que eu me tivesse equivocado. Tinha a certeza de ter ouvido o soluço e fixei a minha atenção obstinadamente sobre o cadáver. Passaram alguns minutos, e, pouco a pouco, uma ligeira coloração muito débil, quase imperceptível, aqueceu as faces e estendeu-se ao longo das pálpebras cerradas. Sob a ação de um horror e de um terror profundos, senti que as pulsações do meu coração paravam e que os meus membros arrefeciam. Imaginei logo que tínhamos sido precipitados ao fazer os preparativos fúnebres. Rowena ainda vivia. Era necessário agir imediatamente, mas a alcova estava tão separada da parte da abadia onde dormiam os criados que não podia pedir a ajuda deles sem abandonar a câmara mortuária.
Decidi-me, portanto, a agir sozinho, mas ao olhar novamente para o cadáver notei que a cor desaparecera das pálpebras e das faces : a lividez era mais profunda, os lábios crispavam-se ainda mais com o ricto espectral da morte. Uma frialdade e uma viscosidade repulsivas estenderam-se rapidamente sobre toda a superfície do corpo, sobrevindo, depois, uma completa rigidez cadavérica. Voltei a cair no divã e abandonei-me novamente ao sonho e à apaixonada evocação de Ligeia.
Decorrera aproximadamente uma hora quando — seria possível, grande Deus? — tive novamente a sensação de que um rumor vago vinha até a mim do leito mortuário. Escutei atentamente e voltei a ouvir um suspiro. Então precipiteime sobre o corpo e vi, vi claramente que os lábios estremeciam. Um minuto depois abriram-se, descobrindo a linha brilhante dos dentes nacarados. Senti que a vista se me obscurecia, que a razão me abandonava, e só por um violento esforço de vontade tive a coragem de dominar os nervos. Agora, sobre a fronte, as faces e a garganta estendia-se uma imperfeita coloração. O corpo fora penetrado por um calor sensível e até se começaram a notar as pulsações do coração. Minha mulher vivia, e eu, cheio de terror, procurei ajudar a ressurreição com fricções e por todos os processos que a experiência e as numerosas leituras médicas me sugeriam.
Mas tudo foi inútil. Subitamente, a cor desapareceu, as pulsações cessaram, o « rictus» da morte voltou-lhe aos lábios, e um momento depois iodo o seu corpo recobrava a frialdade gelada, o tom lívido, a rigidez completa de um corpo que jazesse na campa há vários dias. Novamente voltei a cair no sonho de Ligeia e de novo — compreendereis que eu trema ao escrever estas linhas? — de novo um soluço afogado saiu do leito de ébano.
Mas para que narrar minuciosamente os inefáveis horrores daquela noite? Bastará dizer que até madrugada se repetiu muitas vezes o terrível drama da ressurreição. A cada nova queda, a morte era mais rígida e mais irremediável; cada nova agonia parecia uma luta contra um adversário invisível e cada luta era seguida de estranhas alterações na fisionomia de lady Rowena.
Já perto da madrugada, a morta moveu-se mais distintamente, embora revelando uma morte mais irreparável. Há muito já que eu cessara todo o esforço e todo o movimento e permanecia desesperadamente enterrado na poltrona.
O corpo, como disse, movia-se; as cores voltaram ao rosto com uma energia singular; os membros perderam a sua rigidez, e, exceto o facto de as pálpebras continuarem pesadamente cerradas e o sudário comunicar ao seu rosto o aspecto sepulcral, dir-se-ia que Rowena sacudira por completo as cadeias da morte. Mas a suposição não tardou em transformar-se em certeza. Não pude duvidar por mais tempo quando, levantando-se do leito, vacilante, com passos débeis, os olhos fechados, como uma pessoa perdida num sonho, aquele ser envolto no sudário avançou audazmente até meio do aposento.
Eu não tremia, não me movia sequer, porque inúmeros pensamentos inexplicáveis, causados pelo aspecto, pela estatura do fantasma, entraram de improviso no meu cérebro, paralisando-o e petrificando-o. Não me movia, mas contemplava a aparição. Era realmente a viva Rowena que estava na minha frente? Aquilo podia ser realmente Rowena, lady Rowena Trevanion de Tremaine, a da cabeleira loura e olhos azuis?
Porque duvidava? O pano branco tapava-lhe a boca. Porque não havia de ser a boca respirante de lady Rowena? E as faces? Não eram as rosas meridionais da sua vida? E o queixo, com as suas graciosas covinhas, não era o seu?
Mas crescera ela depois da sua enfermidade? Que inexplicável delírio se apoderou de mim perante esta ideia! De um salto, caí a seus pés. Ela fugiu ao meu contato e libertou a cabeça do horrível sudário. Então, espalhou-se no ar pesado da câmara mortuária uma massa enorme de longos e desordenados cabelos. Eram mais negros que as asas da meia-noite, a hora que tem a plumagem do corvo.
E no rosto que tinha na minha frente abriram-se lentamente, lentamente, os olhos.
— Oh! Enfim! — exclamei. — Como pude enganar-me?
Eram os olhos, os olhos adoravelmente rasgados, os olhos estranhos do meu amor perdido — os olhos de lady Ligeia.





fim

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Edgar Allan Poe (nascido Edgar Poe; Boston, Massachusetts, Estados Unidos, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, Maryland, Estados Unidos, 7 de Outubro de 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense. Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe foi um dos primeiros escritores americanos de contos e é geralmente considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao emergente gênero de ficção científica. Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.
Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).
Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.
Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.



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Edgar Allan Poe

CONTOS

Originalmente publicados entre 1831 e 1849


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