terça-feira, 18 de outubro de 2022

O Sol é para todos: 1ª Parte (3)

Harper Lee

O Sol é para todos


Para o sr. Lee e Alice, em retribuição ao amor e afeto


Os advogados, suponho, um dia foram crianças.
CHARLES LAMB



PRIMEIRA PARTE

3


Tive um certo prazer em acertar as contas com Walter Cunningham no pátio da escola, mas quando eu estava esfregando o nariz dele na lama, Jem apareceu e mandou parar.

— Você é maior que ele — disse Jem.

— Ele é quase da mesma idade que você. E me fez passar vergonha — expliquei.

— Larga ele, Scout. O que houve?

— Ele não trouxe merenda — respondi, e contei do meu envolvimento nos problemas alimentares de Walter, que se levantou do chão e ficou quieto, ouvindo a conversa. Estava com os punhos meio cerrados, como se esperasse uma investida nossa. Bati os pés com força no chão para enxotá-lo, mas Jem estendeu a mão e me deteve. Olhou para Walter de um jeito inquiridor.

— Você é filho do sr. Walter Cunningham, de Old Sarum? — perguntou, e Walter concordou com a cabeça.

Walter dava a impressão de ter sido criado com ração de peixe: os olhos eram azuis como os de Dill Harris, mas aguados, com as pálpebras rosadas. O rosto não tinha cor, a não ser a ponta do nariz, que era de um rosa úmido. Segurava as alças do macacão e mexia, nervoso, nos ganchos de metal.
De repente, Jem riu para ele e disse:

— Venha almoçar com a gente, Walter. Teremos prazer na sua companhia.

O rosto de Walter se iluminou, depois escureceu. Jem acrescentou:

— Nossos pais são amigos. A Scout é doida, mas não vai mais brigar com você.

— Não tenha tanta certeza — eu disse.

Fiquei irritada com o fato de Jem decidir por mim, mas os preciosos minutos do almoço estavam passando.

— É, Walter, não vou bater mais em você. Gosta de feijão-manteiga? A nossa cozinheira, Cal, é ótima.

Walter ficou onde estava, mordendo o lábio. Jem e eu desistimos e, quando estávamos quase diante da Residência Radley, Walter gritou:

— Ei, esperem, eu vou!

Quando Walter nos alcançou, Jem começou a conversar com ele.

— Aqui mora um maluco — informou, amistoso, apontando para a casa dos Radley. — Já ouviu falar nele, Walter?

— Acho que sim — respondeu Walter. — Quase morri no primeiro ano da escola, quando comi aquelas nozes. Disseram que ele mija nelas e joga por cima do muro do pátio.

Jem parecia não ter tanto medo de Boo Radley agora que eu e Walter caminhávamos ao lado dele. Chegou a se vangloriar:

— Uma vez, fui até a casa — disse ele para Walter.

— Quem já foi até a casa não devia correr toda vez que passa na frente dela — eu disse, olhando para o alto, como quem não quer nada.

— E quem é que corre, dona Metida?

— Você, quando está sozinho.

Quando chegamos na escada da nossa casa, Walter já tinha esquecido que era um Cunningham. Jem correu até a cozinha e pediu para Calpúrnia colocar mais um prato na mesa, pois tínhamos um convidado. Atticus cumprimentou Walter e começou a falar sobre colheita, assunto sobre o qual Jem e eu não sabíamos nada.

— Não consegui sair do primeiro ano na escola, sr. Finch, porque na primavera tenho de ajudar meu pai na colheita, mas agora tem mais um irmão com idade para a lida no campo.

— Vocês pagaram um saco de batatas por ele? — perguntei, mas Atticus sacudiu a cabeça para mim, me repreendendo.

Enquanto Walter se servia, Atticus e ele conversavam como se fossem dois adultos, para surpresa minha e de Jem. Atticus discorria sobre os problemas do campo quando Walter interrompeu para perguntar se em nossa casa tinha melado. Atticus chamou Calpúrnia, que voltou com o pote de melado e ficou esperando Walter se servir. Ele colocou bastante melado nos legumes e na carne e certamente também teria colocado no copo de leite, se eu não tivesse perguntado o que diabos ele estava fazendo.
O pires de prata retiniu quando Walter pôs o jarro de volta em cima dela e imediatamente colocou as mãos no colo e abaixou a cabeça.
Atticus sacudiu a cabeça de novo para mim.

— Mas ele exagerou, encharcou a comida de melado — reclamei. — Encheu tudo…

Então Calpúrnia mandou eu ir para a cozinha com ela.
Ela estava furiosa e quando ficava assim, a gramática ia para o brejo. Quando estava calma, ela se expressava tão bem quanto qualquer pessoa de Maycomb. Atticus dizia que Calpúrnia era mais educada do que a maioria dos negros.
Ela estreitou os olhos para mim e as rugas finas ao redor dos olhos ficaram mais fundas.

— Nem todo mundo come igual nós — afirmou, ríspida —, mas não é para chamar atenção disso na mesa. O menino é convidado e se ele quiser comer a toalha da mesa, deixa, entendeu?

— Cal, ele não é convidado, é só um Cunningham.

— Não diz isso! Não interessa quem ele é, quem pisa aqui é convidado e não quero você criticando, toda cheia de coisa! Vocês pode ser melhor que os Cunningham, mas não é para ficar se achando superior. Se não sabe se comportar na mesa, vai comer na cozinha!

Calpúrnia me deu uma boa palmada e me empurrou pela porta da sala de jantar. Peguei meu prato na mesa e terminei de comer na cozinha, grata por ter sido poupada da humilhação de ter que ficar diante deles de novo. Avisei a Calpúrnia que ela não perdia por esperar, eu não ia esquecer aquela história: qualquer dia, quando ela estivesse distraída, eu ia me afogar no riacho Barker e ela ia se arrepender. Além do mais, acrescentei, ela já tinha me criado problema por me ensinar a escrever e tudo o que aconteceu na escola tinha sido culpa dela.

— Fica quieta — ela mandou.

Jem e Walter voltaram para a escola antes de mim: fiquei para trás para falar comAtticus sobre as injustiças de Calpúrnia, sem me importar de depois passar sozinha pela Residência Radley.

— De todo jeito, ela gosta mais de Jem que de mim — concluí a conversa e sugeri que Atticus não perdesse mais tempo e mandasse Calpúrnia embora de uma vez.

— Já parou para pensar que Jem não dá a metade da preocupação a ela? — A voz de Atticus estava dura como pedra. — Não tenho a menor intenção de despedi-la, nem agora nem nunca. Não viveríamos um dia sem Cal, não percebe? Pense em tudo o que ela faz por você e obedeça-a, entendeu?

Voltei para a escola odiando profundamente Calpúrnia até que um grito agudo e repentino afastou meus ressentimentos. A srta. Caroline estava no meio da sala, com cara de puro pavor. Pelo jeito, tinha resolvido persistir na profissão.

— Está vivo! — ela berrou.

A população masculina da classe correu para acudi-la. Meu Deus, pensei, ela está com medo de um ratinho. O Little Chuck Little, que tinha enorme paciência com todos os seres, perguntou:

— Para que lado ele foi, srta. Caroline? Diga, rápido! — Virou-se para um menino atrás dele e ordenou: — D.C., feche a porta e nós o pegamos. Rápido, senhora, para onde ele foi?

A srta. Caroline apontou um dedo trêmulo não para o chão ou para uma carteira, mas para um garoto grandalhão que eu não conhecia. Little Chuck franziu a cara e disse, cuidadoso:

— A senhora quer dizer ele? É verdade, está vivo. Ficou assustada?

A srta. Caroline explicou, desesperada:

— Eu ia entrando na sala quando a coisa foi saindo do cabelo dele… simplesmente saindo. Little Chuck abriu um sorriso.

— Não precisa ter medo de piolho, senhora. Nunca viu um? Não tenha medo, volte para a sua mesa e continue a dar aula para a gente.

Little Chuck Little era outro membro da população que não sabia de onde ia vir sua próxima refeição, mas era um cavalheiro nato. Segurou a srta. Caroline pelo braço e levou-a até a frente da sala.

— Não tenha medo, senhora. Não precisa ter medo de piolho. Vou pegar um copo de água fresca.

O hospedeiro do piolho não demonstrou a menor preocupação com o caos que tinha causado. Passou a mão na testa, localizou o intruso e esmagou-o entre o polegar e o indicador.
A srta. Caroline assistiu à cena com um fascínio horrorizado. Little Chuck trouxe água num copo de papel e ela bebeu, agradecida. Finalmente, recuperou a voz.

— Como se chama, filho? — perguntou, delicada.

O garoto do piolho piscou.

— Quem? Eu?

Ela concordou com a cabeça.

— Burris Ewell.

A srta. Carolina consultou a lista de chamada.

— Tem um Ewell aqui, mas sem o primeiro nome… Pode soletrar para mim?

— Não sei soletrar, mas em casa me chamam de Burris.

— Bem, Burris, acho melhor dispensá-lo pelo resto do dia. Quero que vá para casa e lave a cabeça.

Ela pegou em sua mesa um volume grosso, folheou as páginas e leu por um momento.

— Um bom remédio caseiro para… Burris, quero que você vá para casa e lave a cabeça com sabão de lixívia. Depois, esfregue a cabeça com querosene.

— Para que, dona?

— Para se livrar dos, hum, piolhos. Sabe, as outras crianças podem pegar. Você não quer isso, não é?

O garoto se levantou. Era a pessoa mais suja que eu já tinha visto. O pescoço era cinza escuro, o dorso das mãos parecia manchado de ferrugem e as unhas eram pretas até a raiz. Espiou a srta. Caroline por um espaço limpo na cara pouco maior que um punho fechado. Ninguém tinha notado a presença dele antes, provavelmente porque a professora e eu tínhamos mantido a classe entretida quase a manhã inteira.

— E, Burris, por favor, tome banho antes de vir amanhã — pediu a srta. Caroline.

O garoto deu um riso grotesco.

— Não é a senhora que está me mandando para casa não, eu já estava indo. Por esse ano, chega.

A srta. Caroline pareceu confusa.

— O que você quer dizer?

O garoto não respondeu, apenas fez um muxoxo de desprezo.
Um dos alunos mais velhos da classe disse:

— Ele é um Ewell, senhora.

Fiquei pensando se a explicação seria tão inútil quanto a que dei antes. Mas a srta. Caroline se dispôs a ouvir.

— A escola está cheia deles. Assistem à primeira aula e não voltam mais. A inspetora os obriga a vir ameaçando chamar o xerife, mas desistiu de fazer eles continuarem vindo. Acha que cumpre a lei só de colocar o nome deles na lista de chamada e fazer com que venham no primeiro dia de aula. A senhora pode marcar falta para ele no resto do ano...

— Mas e os pais deles? — perguntou a srta. Caroline, realmente preocupada.

— Eles não têm mãe e o pai não liga para escola.

Burris Ewell ficou orgulhoso da própria história.

— Faz três anos que venho para a primeira aula. Se eu ficar esperto, acho que dessa vez me passam para o segundo ano… — disse ele, à vontade.

A srta. Caroline mandou:

— Por favor, Burris, sente-se.

E assim que ela disse isso vi que tinha cometido um grande erro. O desprezo do garoto se transformou em raiva.

— Tente me obrigar, senhora.

Little Chuck ficou de pé.

— Deixa ele ir, senhora — pediu. — Ele é ruim, ruim e marrento. Pode criar caso e aqui tem crianças pequenas.

Little Chuck era um dos menores da classe, mas quando Burris Ewell virou-se para ele, levou a mão direita ao bolso e avisou:

— Cuidado, Burris. Mato você num piscar de olhos. Agora vai para casa — ameaçou.

Burris parecia com medo de um garoto que tinha a metade do tamanho dele e a srta. Caroline aproveitou sua indecisão.

— Burris, vá para casa senão eu chamo a diretora — ela disse. — De todo jeito, terei de dar parte disso.

O garoto bufou e foi andando para a porta sem pressa, arrastando os pés. Quando estava fora de alcance, virou-se e berrou:

— Pode dar parte, que se dane! Está para nascer a porcaria de professora metida que vai me obrigar a fazer alguma coisa! Não está me obrigando a ir embora, senhora. Lembre-se disso: não está me obrigando a ir para lugar nenhum!

Esperou até ter certeza de que ela estava chorando e saiu arrastando os pés.
Fomos então até a mesa dela e tentamos consolá-la de todos os jeitos. Ele era ruim mesmo… Demais da conta… A senhora não foi chamada para ensinar gente assim… Nem todo mundo em Maycomb é desse jeito, professora, não mesmo... Não ligue para isso. Por que não lê uma história para nós? Aquela dos gatos que a senhora leu de manhã era muito boa…
A srta. Caroline sorriu, assoou o nariz e disse:

— Obrigada, queridos.

Pediu que voltássemos para as carteiras, abriu um livro e deixou o primeiro ano encantado com a longa história de um sapo que vivia numa sala.
Quando passei pela Residência Radley pela quarta vez naquele dia (duas, a toda velocidade) meu ânimo estava igual ao da casa. Se o resto do ano fosse tão dramático quanto o primeiro dia de aula, talvez fosse até divertido, mas pensar em ficar nove meses me controlando para não ler nem escrever me deu vontade de fugir.
No final da tarde os meus planos de fuga estavam quase prontos. Quando Jem e eu apostamos corrida na calçada para encontrar Atticus vindo do trabalho, eu nem me esforcei muito. Nós costumávamos sair correndo até Atticus assim que o víamos dobrando a esquina do correio, lá longe. Ele parecia ter esquecido meu mau comportamento no almoço e fez muitas perguntas a respeito da escola. Respondi com monossílabos e ele não insistiu.
Vai ver que Calpúrnia percebeu que o meu dia não tinha sido dos melhores, porque me deixou acompanhar os preparativos do jantar.

— Fecha os olhos e abre a boca, vou te dar uma surpresa — ela disse.

Não era sempre que ela fazia pão de torresmo, dizia que nunca tinha tempo, mas com nós dois na escola, o dia tinha sido calmo. Ela sabia que eu adorava pão de torresmo.

— Senti sua falta hoje — confessou ela. — A casa ficou tão vazia que lá pelas duas da tarde tive de ligar o rádio.

— Por quê? Jem e eu só ficamos dentro de casa quando chove.

— Eu sei — ela disse —, mas é só eu chamar que aparecem. Nem sei quantas vezes chamo vocês todo dia. Bom — ela continuou, levantando da cadeira da cozinha —, deu tempo de fazer pão de torresmo. Vá saindo agora e deixa eu colocar o jantar na mesa.

Calpúrnia inclinou-se e me deu um beijo. Saí correndo, pensando no que teria dado nela. Vai ver que estava querendo ficar de bem comigo. Sempre foi muito dura comigo, deve ter percebido a própria rabugice e se arrependeu, mas era teimosa demais para admitir. Eu estava exausta dos problemas do dia.
Depois do jantar, Atticus sentou-se com o jornal e me chamou:

— Scout, quer ler?

Deus tinha me dado um fardo maior do que eu aguentava, por isso fui para a varanda da frente. Atticus foi atrás.

— O que houve, Scout?

Respondi que não estava me sentindo bem e que, se ele concordasse, não ia mais voltar à escola.
Atticus se sentou na cadeira de balanço e cruzou as pernas. Apalpou o bolso do paletó e pegou o relógio; dizia que só assim conseguia pensar. Esperou, fazendo um silêncio amistoso, e insisti, reforçando minha posição:

— Você nunca foi à escola e está muito bem de vida, então eu também não vou. Você pode me ensinar como o vovô ensinou você e o tio Jack.

— Não, não posso. Tenho que trabalhar. Além disso, eu seria preso se deixasse você ficar sem ir à escola. Tome uma colher de leite de magnésia esta noite e amanhã você vai — explicou.

— Na verdade, estou me sentindo muito bem — eu disse.

— Foi o que eu pensei. Então, qual é o problema?

Aos poucos, contei as desgraças do dia.

— … e ela disse que você me ensinou tudo errado, então nunca mais podemos ler juntos, nunca. Por favor, não me mande de novo para a escola.

Atticus se levantou e foi até a beira da varanda. Quando acabou de examinar as glicínias, voltou para o meu lado.

— Em primeiro lugar, Scout — ele disse —, se aprender um truque simples, vai se relacionar melhor com todo o tipo de gente. Você só consegue entender uma pessoa de verdade quando vê as coisas do ponto de vista dela.

— É?

— Precisa se colocar no lugar dela e dar umas voltas.

Atticus disse que eu tinha aprendido muitas coisas naquele dia, e a srta. Caroline, por sua vez, tinha aprendido outras tantas. Havia aprendido a não oferecer nada a um Cunningham, mas, por outro lado, se Walter e eu tivéssemos nos colocado no lugar dela, veríamos que foi um erro bem-intencionado. Não podíamos esperar que ela aprendesse tudo sobre Maycomb num único dia e não podíamos culpá-la por isso.

— Essa, não! — reclamei. — Eu não sabia que não podia ler e ela botou a culpa em mim. Escute, Atticus, não sou obrigada a ir à escola. — De repente, tive uma ideia. — Lembra do Burris Ewell? Ele só vai à escola no primeiro dia. A inspetora acha que cumpriu a lei só de colocar o nome dele na lista de chamada…

— Você não pode fazer isso, Scout — disse Atticus. — Às vezes, em casos especiais, é melhor desrespeitar a lei um pouco. Mas no seu caso, a lei permanece rígida. Você tem de ir à escola.

— Não sei por que eu sou obrigada e ele não.

— Então, escute...

Atticus contou que os Ewell eram a desgraça de Maycomb havia três gerações. Nunca trabalharam um só dia na vida. E que, quando ele fosse jogar fora a árvore de Natal, me levaria para mostrar como eles viviam. Eram gente, mas viviam como bichos.

— Eles podem ir à escola quando quiserem, desde que mostrem que querem estudar — explicou Atticus. — Existem maneiras de obrigá-los a ficar na escola, mas é bobagem botar gente como os Ewell num novo ambiente…

— Se eu não for à escola amanhã, você vai me obrigar a ir.

— Vamos combinar uma coisa — propôs Atticus, seco. — Você, srta. Scout Finch, é gente comum. Tem de obedecer à lei.

Ele explicou que os Ewell eram uma sociedade à parte, formada só por eles mesmos. Em determinadas situações, as pessoas davam a eles alguns privilégios, fazendo vista grossa para algumas de suas atividades. Os Ewell não tinham de ir à escola, por exemplo. Outro exemplo: o sr. Bob Ewell, pai de Burris, podia caçar e montar armadilhas fora da temporada de caça.

— Atticus, isso é muito errado — considerei. No condado de Maycomb, caçar fora da temporada era contra a lei e um crime grave aos olhos de todos.

— É ilegal, é verdade — disse meu pai —, além de errado, sem dúvida. Mas quando um homem compra uísque com os vales fornecidos pelo governo, os filhos acabam chorando de fome. Não conheço nenhum proprietário de terras por aqui que impeça aquelas crianças de comerem um animal caçado pelo pai delas.

— O sr. Ewell não devia fazer isso… — eu concluí.

— Claro que não, mas ele não vai mudar. Vai culpar os filhos pelos erros do pai?

— Não, senhor — murmurei, e dei o golpe final: — Mas se eu continuar indo à escola, não vamos poder mais ler…

— Você está muito aborrecida com isso, não é?

— É, sim.

Atticus olhou para mim com aquela cara que sempre me fazia esperar por alguma coisa.

— Sabe o que é um compromisso, Scout?

— É burlar a lei?

— Não, é um acordo com concessões de ambas as partes. Funciona assim: se você aceitar que tem que ir à escola, continuaremos lendo todas as noites — prometeu Atticus.

— Combinado!

— Consideremos que o acordo está feito, sem necessidade das formalidades de praxe — disse Atticus ao ver que eu estava me preparando para cuspir.

Quando abri a porta telada, ele disse:

— Aliás, Scout, é melhor você não comentar nada sobre nosso acordo na escola.

— Por que não?

— Temo que as autoridades mais instruídas demonstrem profunda desaprovação por nossas atividades.

Jem e eu estávamos acostumados com o palavreado jurídico que nosso pai usava e tínhamos permissão para interrompê-lo e pedir a tradução quando não conseguíamos entender.

— Como é, pai?

— Nunca fui à escola, mas tenho a impressão de que, se você contar à srta. Caroline que nós lemos todas as noites, ela vai vir atrás de mim, e não quero ela atrás de mim.

Naquela noite, Atticus prendeu nossa atenção ao ler com ar sério a notícia de um homem que subiu num mastro sem qualquer motivo aparente, o que foi o bastante para Jem passar o sábado seguinte na casa da árvore, do café da manhã até o entardecer, e teria dormido lá, se Atticus não tivesse interrompido o fornecimento de comida. Fiquei o dia todo subindo e descendo da árvore, fazendo coisas para ele, levando livros, água e comida, e já estava levando uma colcha para ele passar a noite quando Atticus disse que, se eu não desse atenção, ele ia descer. Papai estava certo.


continua página 028...
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Leia também:

O Sol é para todos: 1ª Parte (3)
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Copyright © 1960 by Harper Lee, renovado em 1988 
Copyright da tradução © José Olympio
Título do original em inglês 
TO KILL A MOCKINGBIRD 

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Um dos romances mais adorados de todos os tempos, O sol é para todos conta a história de duas crianças no árido terreno sulista norte-americano da Grande Depressão no início dos anos 1930. Jem e Scout Fincher testemunham a ignorância e o preconceito em sua cidade, Maycomb – símbolo dos conservadores estados do sul dos EUA, empobrecidos pela crise econômica, agravante do clima de tensão social. A esperta e sensível Scout, narradora da trama, e Jem, seu irmão mais velho, são filhos do advogado Atticus Finch, encarregado de defender Tom Robinson, um homem negro acusado de estuprar uma jovem branca. Mas não é só nessa acusação e no julgamento de Robinson que os irmãos percebem o racismo do pequeno município do Alabama onde moram. Nos três anos em que se passa a narrativa, deparam-se com diversas situações em que negros e brancos se confrontam. Ao longo do livro, os dois irmãos e seu pequeno amigo de férias, Dill, passam por tensas aventuras, grandes surpresas e importantes descobertas. Nos episódios vividos ao lado de personagens cativantes, como Calpúrnia, Boo Radley e Dolphus Raymond, aprendem e ensinam sobre a empatia, a tolerância, o respeito ao próximo e a necessidade de se estar sempre aberto a novas idéias e perspectivas. O sol é para todos é o único livro de Harper Lee. Sucesso instantâneo de vendas nos EUA, que se tornou um grande best-seller mundial. Recebeu muitos prêmios desde sua publicação, em 1960, entre eles, o Pulitzer. Traduzido em 40 idiomas, vendeu mais de 30 milhões de exemplares em todo o mundo e, em 1962, foi levado às telas com Gregory Peck – ganhador do Oscar por sua interpretação de Atticus Finch – Brock Peters, Robert Duvall e outros. O Librarian Journal dos EUA deu sua maior honraria à história elegendo-a o melhor romance do século XX. Em 2006, uma pesquisa na Inglaterra colocou O sol é para todos no primeiro lugar da lista de livros mais importantes, seguido da Bíblia e de O senhor dos anéis, de J. R. R. Tokien. Também entrou para a lista da Time Magazine dos Cem Melhores Romances de Todos os Tempos.


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