quarta-feira, 14 de setembro de 2022

O Sol é para todos (1b)

Harper Lee

O Sol é para todos


Para o sr. Lee e Alice, em retribuição ao amor e afeto


Os advogados, suponho, um dia foram crianças.
CHARLES LAMB



PRIMEIRA PARTE

1

continuando...

Dill era fascinado pela Residência Radley. Apesar dos nossos avisos e explicações, o lugar o atraía como a lua atrai a água, mas ele não ia além do poste da esquina, que ficava a uma boa distância do portão dos Radley. Ele ficava lá, abraçando o grosso poste, olhando e pensando.
A casa dos Radley ficava pouco depois da nossa, numa curva fechada. Ao andar para o sul, passava-se diante da varanda; a calçada fazia a curva e acompanhava o terreno. A casa era baixa e um dia tinha sido branca, com uma grande varanda na frente e janelas verdes, mas havia muito tinha escurecido e ficado da cor do quintal cinzento que a rodeava. O telhado da varanda tinha os beirais apodrecidos pela chuva; os carvalhos não deixavam o sol entrar. Os resquícios de uma cerca de estacas que pareciam bêbadas de tão tortas protegiam o pátio da frente (que ninguém jamais varria), onde cresciam grama e ervas-daninhas.
Na casa morava um fantasma do mal. As pessoas garantiam que ele existia, mas Jem e eu nunca o vimos. Diziam que ele saía à noite, quando a lua estava alta, e espiava pelas janelas. Quando as azáleas nos jardins do condado congelavam em uma noite muito fria, era por que ele tinha soprado sobre elas. Ele era o culpado de todos os pequenos delitos furtivos em Maycomb. Uma vez, a cidade foi aterrorizada por vários fatos mórbidos ocorridos à noite: galinhas e animais domésticos foram encontrados mutilados. Embora o culpado fosse Addie Maluco, que acabou se afogando na correnteza do riacho Barker, as pessoas continuavam a olhar para a casa dos Radley, recusando-se a abandonar suas primeiras suspeitas. Nenhum negro passava na frente da casa à noite: ia para o outro lado da rua e ficava assoviando enquanto caminhava. O pátio da escola de Maycomb dava para os fundos do terreno dos Radley; os frutos das altas nogueiras do galinheiro deles caíam no pátio da escola, mas nenhuma criança pegava, porque as nozes dos Radley eram letais. Se uma bola de beisebol caía no quintal deles, era considerada perdida e não se falava mais nisso.
A maldição da casa começou muitos anos antes de Jem e eu nascermos. Os Radley, que eram muito bem-vindos na cidade, não se relacionavam com ninguém, o que era imperdoável em Maycomb. Não iam à igreja, a principal diversão local, cumprindo suas devoções religiosas em casa; a sra. Radley raras vezes ou nunca atravessava a rua para tomar um café com as vizinhas e jamais participou de uma reunião dos missionários. Já o sr. Radley ia à cidade todos os dias às onze e meia da manhã e voltava pontualmente ao meio-dia, às vezes carregando um saco de papel pardo que as pessoas supunham que fossem mantimentos para a casa. Eu nunca soube do que o velho sr. Radley vivia (Jem dizia que “vivia de algodão”, o que era uma forma delicada de dizer que ele não fazia nada), apesar de ele e a sra. Radley morarem ali com os dois filhos desde sempre.
As janelas e as portas da Residência Radley ficavam fechadas aos domingos, o que era outra esquisitice para os hábitos locais: só se fechavam janelas por motivo de doença ou nos dias frios. O domingo à tarde era justamente o dia para fazer visitas: as mulheres punham espartilho; os homens usavam paletó; as crianças calçavam sapatos. Mas subir a escada da frente dos Radley e chamar “olá” num domingo à tarde era algo que os vizinhos jamais fizeram. A casa não tinha portas de tela. Um dia, perguntei a Atticus se alguma vez teve e ele disse que sim, mas antes de eu nascer.
Rezava a lenda que, quando o caçula dos Radley era adolescente, fez amizade com os Cunningham de Old Sarum, uma família enorme e desordeira que morava no norte do condado. Com eles, o jovem Radley formou a coisa mais próxima de uma gangue que já se tinha visto em Maycomb. Os rapazes não faziam muita coisa, mesmo assim eram assunto na cidade e foram advertidos publicamente nos três púlpitos. Eles ficavam rondando a barbearia; aos domingos, iam de ônibus até Abbotsville para ir ao cinema; frequentavam os bailes no antro de jogatina à margem do rio, a Pousada e Campo de Pesca Dew Drop e bicavam uísque ilegal. Ninguém em Maycomb tinha coragem de dizer ao sr. Radley que o filho dele estava se metendo com más companhias.
Certa noite, após beber bastante, os garotos pegaram um calhambeque emprestado e ficaram dando voltas na praça. Receberam voz de prisão do sr. Conner, o velho oficial de justiça de Maycomb, mas resistiram e ainda o trancaram no banheiro do tribunal. A cidade então decidiu que alguma providência precisava ser tomada; o sr. Conner disse que reconhecera cada um deles e estava determinado a não deixar aquilo passar em branco. Então, os rapazes foram levados diante do juiz, acusados de perturbação da ordem e da paz, agressão e uso abusivo de linguagem profana na presença de senhoras. O juiz perguntou por que o sr. Conner fez essa última acusação, e ele respondeu que os rapazes praguejaram tão alto que com certeza todas as senhoras de Maycomb tinham escutado. O juiz decidiu mandar os rapazes para a escola industrial do estado, para onde outros jovens às vezes eram enviados com a única finalidade de dar-lhes comida e um teto decente: não se tratava de uma prisão, nem de uma desonra. Mas o sr. Radley achava que era. Se o juiz soltasse seu filho Arthur, garantia que ele não causaria mais problemas. Como sabia que o sr. Radley era um homem de palavra, o juiz aceitou a proposta de bom grado.
Os outros rapazes frequentaram a escola industrial e tiveram a melhor educação secundária do estado; um deles acabou cursando engenharia em Auburn. As portas da casa dos Radley passaram a ficar fechadas a semana inteira, de domingo a domingo, e o filho do sr. Radley não foi mais visto durante quinze anos.
Mas um dia, meio apagado na memória de Jem, muitas pessoas ouviram a voz de Boo Radley e o viram, mas não Jem. Ele dizia que Atticus não falava muito nos Radley; quando Jem perguntava, Atticus dizia apenas para ele cuidar da própria vida e deixar os Radley cuidarem da deles, pois tinham esse direito. Nesse tal dia, porém, Jem disse que Atticus balançou a cabeça e fez hum, hum, hum.
Jem sabia de quase tudo pela srta. Stephanie Crawford, uma vizinha megera que dizia conhecer toda a história. Segundo ela, Boo estava sentado na sala cortando artigos do Maycomb Tribune para colar em seu caderno de recortes quando o pai entrou. Quando passou por Boo, ele enfiou a tesoura na perna do pai, tirou-a, limpou-a nas próprias calças e voltou a recortar o jornal.
A sra. Radley saiu correndo para a rua, berrando que Arthur estava matando todos eles, mas, quando o xerife chegou, Boo continuava sentado na sala, recortando o Tribune. Tinha então trinta e três anos.
A srta. Stephanie contou também que, quando sugeriu-se que seria bom para Boo passar uma temporada em Tuscaloosa, o velho sr. Radley dissera que nenhum Radley iria parar em um manicômio. O rapaz não era maluco, ele às vezes ficava irritado, só isso. O sr. Radley aceitou que prendessem Boo, mas insistiu para que não o acusassem de nada, pois ele não era um criminoso. O xerife não teve coragem de colocá-lo numa cela junto com os negros, então Boo ficou preso no porão do tribunal.
Jem não lembrava direito como Boo tinha sido levado do porão para casa. A srta. Stephanie Crawford disse que alguém do conselho municipal avisou ao sr. Radley que, se não tirasse o filho de lá, ele iria morrer por causa do mofo causado pela umidade. Além do mais, Boo não podia viver o resto da vida à custa do condado.
Ninguém sabia de que tipo de intimidação o sr. Radley lançava mão para manter Boo fora de vista, mas Jem achava que ele ficava acorrentado à cama quase todo o tempo. Atticus dizia que não, que não era nada disso, que havia outras maneiras de fazer alguém virar um fantasma.
Lembro de ver, às vezes, a sra. Radley abrir a porta da frente, ir até a beira da varanda e molhar as plantas. Mas todo dia Jem e eu víamos o sr. Radley indo e vindo da cidade. Era um homem magro, de pele dura e olhos sem cor, tão baços que não refletiam a luz. Tinha os ossos da face pontudos e a boca larga, com o lábio superior fino e o inferior carnudo. A srta. Stephanie Crawford dizia que ele era tão rigoroso que tinha a palavra de Deus como única lei, e nós acreditamos, pois o sr. Radley andava reto como uma vareta de espingarda.
Ele nunca falava conosco. Quando passava por nós, olhávamos para o chão e dizíamos:

— Bom dia, senhor.

E ele, em resposta, tossia. O filho mais velho do sr. Radley morava em Pensacola; ele passava o Natal na casa dos pais e era uma das poucas pessoas que víamos entrar e sair de lá. Dizia-se que a casa morreu quando o sr. Radley levou Arthur para lá.
Um dia Atticus nos disse que, se fizéssemos barulho no quintal, ele acabava com a gente. Quando saiu de casa, encarregou Calpúrnia de nos vigiar para que não desobedecêssemos. O sr. Radley estava morrendo.
Ele custou a morrer. Fecharam a rua com cavaletes nas duas extremidades do terreno dos Radley, jogaram palha nas calçadas e desviaram o trânsito para a rua de trás. Sempre que era chamado, o dr. Reynolds estacionava o carro na frente da nossa casa e andava até a casa dos Radley. Jem e eu nos arrastamos pelo quintal por dias a fio até que finalmente os cavaletes foram retirados e assistimos da varanda o sr. Radley passar pela última vez diante da nossa casa.

— Lá vai o pior homem que Deus já botou no mundo — resmungou Calpúrnia, dando uma boa cuspida no quintal. Olhamos para ela surpresos, pois raramente fazia algum comentário a respeito dos brancos.

Quando o sr. Radley morreu, os vizinhos pensaram que Boo ia sair de casa, mas não foi o que aconteceu: o filho mais velho do sr. Radley voltou de Pensacola e assumiu o lugar do pai. A única diferença entre os dois era a idade. Jem dizia que o sr. Nathan Radley também “vivia de algodão”. Mas ele respondia aos nossos cumprimentos e às vezes voltava da cidade com uma revista na mão.
Quanto mais coisas contávamos a Dill sobre os Radley, mais ele queria saber, quanto mais tempo ficava abraçado ao poste na esquina, mais imaginava.

— Fico me perguntando o que ele faz lá dentro — ele murmurava. — Ele deve pelo menos colocar a cabeça para fora de casa.

Jem disse:

— Tem razão, ele deve sair quando está bem escuro. A srta. Stephanie Crawford disse que uma vez acordou no meio da noite e ele estava na janela, olhando fixamente para ela… e que a cabeça dele parecia uma caveira. Você nunca acordou à noite e ouviu, Dill? Ele anda assim… — Jem arrastou os pés no cascalho. — Por que acha que a srta. Rachel tranca a casa inteira à noite? Várias vezes vi as pegadas dele no nosso quintal de manhã; uma noite, eu o ouvi arranhando a porta telada dos fundos, mas, quando Atticus foi lá, ele tinha ido embora.

— Como ele é? — perguntou Dill.

Jem fez uma boa descrição de Boo. A julgar pelas pegadas, ele tinha uns dois metros de altura; comia carne crua de esquilo e de qualquer gato que conseguisse pegar, por isso tinha as mãos manchadas de sangue (quem come animais crus nunca consegue limpar o sangue). No rosto tinha uma grande cicatriz irregular e seus poucos dentes eram amarelos e podres; os olhos eram saltados e ele estava sempre babando.

— Vamos tentar fazê-lo sair — disse Dill. — Quero ver como ele é.

Jem disse que, se Dill queria morrer, bastava subir a escada da casa e bater na porta.
Nossa primeira incursão só aconteceu porque Dill apostou um exemplar de O fantasma cinzento contra dois da série Tom Swift que Jem não passaria do portão da casa. Jem nunca recusou uma aposta na vida.
Passou três dias pensando no caso. Acho que ele prezava mais a honra do que a própria vida, porque Dill convenceu-o facilmente:

— Você está apavorado — disse Dill no primeiro dia.

— Não tenho medo, tenho respeito — reagiu Jem.

No dia seguinte, Dill insistiu:

— Você está tão apavorado que não bota nem o dedão do pé no pátio da frente.

E Jem repetiu que não estava, pois passava diante da casa desde que tinha começado a ir à escola.

— Sempre correndo — acrescentei.

Dill pegou-o de jeito no terceiro dia, quando disse que as pessoas em Meridian não eram tão medrosas quanto em Maycomb, que ele nunca tinha visto gente tão amedrontada como ali.
Foi o bastante para Jem ir até a esquina, encostar-se no poste e olhar o portão da casa, que estava meio bambo nas frágeis dobradiças.

— Espero que esteja claro na sua cabeça que ele vai matar todos nós, Dill Harris — disse Jem quando nos juntamos a ele. — Não ponha a culpa em mim quando ele arrancar os seus olhos. Lembre-se que foi você que começou.

— Você continua apavorado — murmurou Dill, paciente.

Jem queria que Dill entendesse de uma vez por todas que ele não tinha medo de nada.

— Só não consigo pensar em uma maneira de fazer ele sair da casa sem pegar a gente.

Além do mais, Jem precisava pensar na irmãzinha.
Quando disse isso, eu soube que estava com medo, porque também tinha de pensar na irmãzinha quando apostei que ele não tinha coragem de pular do telhado de casa. “O que vai ser de você se eu morrer?”, perguntou para mim. Em seguida pulou, não sofreu um arranhão e esqueceu a responsabilidade até se ver diante do desafio da Residência Radley.

— Vai fugir do desafio? — perguntou Dill. — Se vai, então…

— Dill, essas coisas têm que ser bem pensadas — disse Jem. — Me deixe pensar um minuto… É como fazer uma tartaruga sair do casco…

— Como assim? — perguntou Dill.

— É só acender um fósforo embaixo dela.

Eu disse a Jem que, se ele pusesse fogo na casa dos Radley, eu ia contar para Atticus.
Dill disse que acender um fósforo embaixo de uma tartaruga era uma coisa horrível.

— Não é horrível, é só para convencer o bicho, ninguém vai assá-lo vivo — resmungou Jem.

— Como você sabe que a tartaruga não sente o fósforo?

— Tartarugas não sentem nada, burro — disse Jem.

— Você já foi tartaruga?

— Que droga, Dill! Me deixe ver… Podemos jogar uma pedra…

Jem pensou durante tanto tempo que Dill fez uma pequena concessão:

— Não vou contar para ninguém que você fugiu da raia e ainda dou O fantasma cinzento se você subir a escada e tocar na casa.

Jem se animou.

— Só tocar na casa?

Dill concordou com a cabeça.

— Tem certeza que é só isso? Não vale dizer outra coisa quando eu voltar.

— É só isso — concordou Dill. — Ele provavelmente vai sair quando avistar você no quintal, então Scout e eu pulamos em cima dele e o seguramos até ele entender que não queremos machucá-lo.

Saímos da esquina, atravessamos a rua lateral que dava em frente à casa dos Radley e paramos no portão.

— Anda, vai — insistiu Dill. — Scout e eu estamos bem atrás de você.

— Já vou. Não me apressa — pediu Jem.

Ele seguiu até a extremidade do terreno e voltou, como se estivesse avaliando a melhor maneira de entrar, franzindo o cenho e coçando a testa.
Zombei dele.
Jem então escancarou o portão e correu até a lateral da casa, bateu com a palma da mão na parede e passou correndo por nós, sem ver se sua investida tinha dado certo. Dill e eu corremos atrás dele. Quando estávamos a salvo em nossa varanda, ofegantes e sem fôlego, olhamos para trás.
A velha casa estava igual, sombria e feia, mas enquanto olhávamos para ela, tivemos a impressão de ver um movimento em uma das cortinas. Um movimento leve, quase imperceptível, e a casa continuou quieta


continua página 016...

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O Sol é para todos (1b)
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Copyright © 1960 by Harper Lee, renovado em 1988 
Copyright da tradução © José Olympio
Título do original em inglês 
TO KILL A MOCKINGBIRD 

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Um dos romances mais adorados de todos os tempos, O sol é para todos conta a história de duas crianças no árido terreno sulista norte-americano da Grande Depressão no início dos anos 1930. Jem e Scout Fincher testemunham a ignorância e o preconceito em sua cidade, Maycomb – símbolo dos conservadores estados do sul dos EUA, empobrecidos pela crise econômica, agravante do clima de tensão social. A esperta e sensível Scout, narradora da trama, e Jem, seu irmão mais velho, são filhos do advogado Atticus Finch, encarregado de defender Tom Robinson, um homem negro acusado de estuprar uma jovem branca. Mas não é só nessa acusação e no julgamento de Robinson que os irmãos percebem o racismo do pequeno município do Alabama onde moram. Nos três anos em que se passa a narrativa, deparam-se com diversas situações em que negros e brancos se confrontam. Ao longo do livro, os dois irmãos e seu pequeno amigo de férias, Dill, passam por tensas aventuras, grandes surpresas e importantes descobertas. Nos episódios vividos ao lado de personagens cativantes, como Calpúrnia, Boo Radley e Dolphus Raymond, aprendem e ensinam sobre a empatia, a tolerância, o respeito ao próximo e a necessidade de se estar sempre aberto a novas idéias e perspectivas. O sol é para todos é o único livro de Harper Lee. Sucesso instantâneo de vendas nos EUA, que se tornou um grande best-seller mundial. Recebeu muitos prêmios desde sua publicação, em 1960, entre eles, o Pulitzer. Traduzido em 40 idiomas, vendeu mais de 30 milhões de exemplares em todo o mundo e, em 1962, foi levado às telas com Gregory Peck – ganhador do Oscar por sua interpretação de Atticus Finch – Brock Peters, Robert Duvall e outros. O Librarian Journal dos EUA deu sua maior honraria à história elegendo-a o melhor romance do século XX. Em 2006, uma pesquisa na Inglaterra colocou O sol é para todos no primeiro lugar da lista de livros mais importantes, seguido da Bíblia e de O senhor dos anéis, de J. R. R. Tokien. Também entrou para a lista da Time Magazine dos Cem Melhores Romances de Todos os Tempos.

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