sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

O Sol é para todos: 1ª Parte (7)

Harper Lee

O Sol é para todos


Para o sr. Lee e Alice, em retribuição ao amor e afeto


Os advogados, suponho, um dia foram crianças.
CHARLES LAMB



PRIMEIRA PARTE

7

Jem ficou sério e calado por uma semana. Como Atticus tinha sugerido uma vez, tentei me colocar no lugar de Jem: se eu tivesse ido sozinha à casa dos Radley às duas da manhã, seria morte certa e na tarde seguinte seria meu funeral. Então deixei Jem em paz e tentei não incomodá-lo.
As aulas começaram. O segundo ano era tão ruim quanto o primeiro, só que ainda pior: continuavam mostrando fichas e nos proibindo de ler ou escrever. As risadas frequentes na sala de aula ao lado mostravam o progresso da classe da srta. Caroline. Era a turma de sempre repetindo o primeiro ano e ajudando a manter a ordem. A única coisa boa no segundo ano era que eu saía no mesmo horário de Jem e voltávamos juntos para casa às três da tarde.
Uma tarde, quando cruzávamos o pátio da escola em direção a nossa casa, Jem disse, de repente:

— Preciso contar uma coisa.

Como foi a primeira frase completa que ele disse depois de dias calado, eu o encorajei.

— Sobre o quê?

— Sobre aquela noite.

— Até hoje você não contou nada sobre aquela noite — reclamei.

Jem dispensou minhas palavras com um gesto como se estivesse espantando mosquitos. Ficou em silêncio por um tempo e então disse:

— Quando fui buscar minha calça… que tinha ficado enroscada, porque eu não consegui soltá-la da cerca… Quando fui buscar — Jem respirou fundo —, ela estava dobrada do outro lado da cerca… como se estivesse à minha espera.

— Do outro lado da cerca…

— E tem mais — disse Jem baixando a voz. — Vou mostrar quando chegarmos em casa. Alguém costurou a calça. Não como uma mulher, mas como eu tentaria fazer. Tudo torto. Como se…

—… alguém soubesse que você ia voltar para buscar.

Jem estremeceu.

— Como se alguém tivesse lido os meus pensamentos… e soubesse o que eu ia fazer. Mas ninguém pode saber o que eu vou fazer a não ser que me conheça, não é, Scout?

A pergunta de Jem era uma súplica. Confirmei:

— Ninguém pode saber o que você vai fazer a não ser que more com você, e mesmo assim eu às vezes não sei.

Estávamos passando pela nossa árvore. No buraco no tronco havia uma bola de barbante cinza.

— Não pegue, Jem. Esse lugar é o esconderijo de alguém — eu disse.

— Acho que não, Scout.

— É, sim. Alguém como Walter Cunningham vem aqui no recreio e esconde uma coisa no buraco, e nós passamos e levamos. Olha, vamos deixar aí e esperar uns dias. Se o barbante continuar no mesmo lugar, nós pegamos, certo?

— Certo. Talvez você tenha razão — considerou Jem. — Algum aluno mais novo pode esconder as coisas aqui para os maiores não verem. Nós só achamos coisas durante o período de aulas.

— É, mas não passamos por aqui nas férias de verão.

Fomos para casa. Na manhã seguinte, o barbante cinza estava no mesmo lugar. No terceiro dia, como ainda continuava lá, Jem pegou-o e guardou-o no bolso. Desse dia em diante, passamos a considerar nosso tudo o que achávamos ali.


O segundo ano da escola foi lamentável, mas Jem me garantiu que ia melhorando à medida que eu crescesse, que com ele tinha sido assim, só no sexto ano os professores começaram a ensinar coisas que prestassem. Jem gostou do sexto ano desde o começo: passou por um curto “período egípcio” que me deixou desconcertada. Ele passou um bom tempo tentando andar com um braço dobrado na frente e outro dobrado para trás, pondo um pé atrás do outro, pois dizia que era assim que os egípcios andavam. Observei que, se isso fosse verdade, não sabia como eles conseguiam fazer as coisas. Mas Jem argumentou que os egípcios tinham feito muito mais coisa do que os americanos, inventaram o papel higiênico e a arte de embalsamar, e onde estaríamos hoje sem isso? Atticus disse para eu esquecer os adjetivos e me concentrar nos fatos.
No sul do Alabama as estações do ano não são muito definidas; o verão se estende pelo outono, às vezes o outono não é sucedido pelo inverno, mas se torna uma primavera tardia que se desfaz no verão outra vez. Aquele outono foi longo, mas não fez um frio que exigisse mais do que um casaco leve. Numa amena tarde de outono, Jem e eu vínhamos pelo nosso caminho de sempre quando nosso buraco na árvore nos fez parar mais uma vez. Tinha uma coisa branca lá dentro.
Jem deixou que eu pegasse: eram duas pequenas esculturas em sabão. Uma, de um menino e outra que deveria ser uma menina, com um vestido simples.
Antes de me lembrar que essas coisas de vodu não existem, dei um grito e joguei-as no chão.
Jem pegou-as.

— O que há com você? — berrou e limpou as figuras. — São muito bem-feitas. Nunca vi nenhuma tão boa.

Ele as estendeu para que eu visse. Eram miniaturas quase perfeitas de duas crianças. O menino estava de calças curtas e tinha uma mecha de cabelo caindo sobre as sobrancelhas. Olhei para Jem. Uma mecha caía de seus cabelos repartidos. Eu nunca havia notado.
Jem olhou da figura para mim. A figura tinha franja. Eu também.

— Somos nós — concluiu.

— Quem você acha que fez?

— Alguém sabe esculpir por aqui?

— O sr. Avery.

— O que o sr. Avery faz não conta. Estou falando de esculpir.

O sr. Avery gastava em média uma acha de lareira por semana, que ia desbastando até fazer um palito, que depois punha na boca e mastigava.

— Tem também o velho namorado da srta. Stephanie — lembrei.

— É verdade, mas ele mora no campo. Nunca prestou atenção em nós.

— Vai ver que fica lá na varanda olhando para nós, e não para a srta. Stephanie. Era o que eu faria, se fosse ele.

Jem ficou me olhando por tanto tempo que perguntei qual era o problema, mas ele disse que não era nada. Quando chegamos em casa, Jem guardou as duas figuras no baú.
Menos de duas semanas depois, achamos um pacote inteiro de goma de mascar, que adoramos. Jem esqueceu completamente o fato de que tudo na casa dos Radley devia estar envenenado.
Na semana seguinte, uma medalha reluzia no buraco da árvore. Jem mostrou-a a Atticus, que nos disse que era uma medalha de um concurso de soletrar, que antes de nascermos, as escolas do condado de Maycomb promoviam concursos assim e davam medalhas aos vencedores. Atticus disse que alguém devia ter perdido a medalha, nós tínhamos perguntado pela vizinhança? Jem me deu um discreto chute quando eu ia dizer onde a achamos. Depois, Jem perguntou se Atticus se lembrava de alguém que tivesse ganhado um daqueles concursos, mas ele respondeu que não.
Nosso maior prêmio apareceu quatro dias depois. Era um relógio de bolso parado com uma corrente e um canivete de alumínio.

— Você acha que isso é ouro branco, Jem?

— Não sei. Vou mostrar a Atticus.

Atticus disse que, se aquilo tudo — o relógio, a corrente e o canivete — fosse novo, devia valer uns dez dólares.

— Vocês trocaram com alguém na escola? — ele quis saber.

— De jeito nenhum! — respondeu Jem, tirando o relógio do nosso avô que Atticus deixava-o usar uma vez por semana, desde que tomasse cuidado. Quando ficava com o relógio, Jem parecia pisar em ovos.

— Atticus, se você não se importar, prefiro ficar com este. Vou tentar consertar.

Quando o relógio do nosso avô deixou de ser novidade e levá-lo consigo se tornou uma tarefa penosa, Jem parou de ficar consultando a hora a cada cinco minutos.
Ele fez um bom trabalho, só sobraram uma mola e duas peças bem pequenas, mas o relógio não voltou a funcionar.

— Ah, isso não vai funcionar nunca. Scout…

— O que foi?

— Acha que devemos escrever uma carta para quem está nos dando essas coisas?

— Seria ótimo, Jem, podemos agradecer… Que mal pode fazer?

Jem tinha tapado os ouvidos e estava balançando a cabeça de um lado para o outro.

— Eu não entendo, simplesmente não entendo. Não sei por que, Scout. — Ele olhou na direção da sala de estar. — Acho melhor contar para Atticus. Não, melhor não.

— Eu conto a ele para você.

— Não faça isso, Scout. Scout?

— O quê?

Ele tinha estado a ponto de me dizer alguma coisa durante toda a tarde; seu rosto se iluminava e ele se inclinava na minha direção, então mudava de ideia. E mudou de ideia novamente.

— Ah, nada.

— Pronto, vamos escrever a carta — eu disse, colocando um papel e um lápis na frente dele.

— Está bem. “Prezado Senhor…”

— Como você sabe que é um homem? Aposto que é a srta. Maudie. Estou desconfiada disso há um bom tempo.

— Hum… a srta. Maudie não gosta de goma de mascar… — Jem deu uma risada. — Ela às vezes diz cada coisa: um dia, perguntei se queria uma goma de mascar, e ela agradeceu e explicou que grudava no céu da boca e ela não conseguia falar. Não é engraçado? — perguntou Jem.

— É, às vezes ela diz coisas engraçadas. De qualquer forma, ela não teria um relógio de corrente.

— “Prezado Senhor” — prosseguiu Jem. — “Gostamos do”, não, “gostamos de tudo que o senhor deixou na árvore para nós. Sinceramente, Jeremy Atticus Finch.”

— Se assinar assim, ele não vai saber quem você é.

Jem apagou o nome com a borracha e escreveu “Jem Finch”. Embaixo do nome dele, eu assinei “Jean Louise Finch (Scout)”. Jem pôs a carta num envelope.
Na manhã seguinte, a caminho da escola, ele correu na minha frente e parou na árvore. Quando virou na minha direção, estava branco como papel.

— Scout!

Corri até ele. Alguém tinha tapado o buraco com cimento.

— Não chore, Scout… Não chore, não se preocupe — ele murmurou o tempo todo enquanto caminhávamos até a escola.

Quando voltamos para casa, Jem engoliu a comida, correu para a varanda e sentou-se na escada. Fui atrás.

— Ainda não passou — ele disse.

No dia seguinte, Jem ficou de novo na varanda e dessa vez conseguiu o que queria.

— Como vai, sr. Nathan? — cumprimentou.

— Bom dia, Jem e Scout — respondeu o sr. Nathan Radley, ao passar.

— Sr. Radley — chamou Jem.

O sr. Radley se virou.

— Sr. Radley, o senhor colocou cimento no buraco da árvore lá adiante?

— Sim, tapei o buraco.

— Por que fez isso, senhor?

— Aquela árvore está morrendo. Quando adoecem, as árvores precisam ser cimentadas. Você devia saber disso, Jem. Jem não disse mais nada até o final da tarde. Quando passamos pela árvore, ele deu um tapinha no cimento e ficou imerso em pensamentos. Parecia estar de péssimo humor em alguns momentos e preferi manter distância.

Como sempre, naquela tarde fomos encontrar Atticus na volta do trabalho. Estávamos na escada de casa quando Jem disse:

— Atticus, dê uma olhada naquela árvore, por favor.

— Que árvore, filho?

— Aquela da esquina dos Radley, na direção de quem vem da escola.

— Por quê?

— Ela está morrendo?

— Acho que não, filho. Veja as folhas, estão verdes e viçosas, sem manchas marrons…

— Não está nem doente?

— Aquela árvore está tão saudável quanto você, Jem. Por quê?

— O sr. Nathan Radley disse que ela está morrendo.

— Bem, pode ser que esteja. Tenho certeza de que o sr. Radley conhece melhor as árvores dele do que nós.

Atticus nos deixou na varanda. Jem se encostou numa coluna e começou a esfregar os ombros nela.

— Está com coceira, Jem? — perguntei da forma mais gentil possível. Ele não respondeu. — Vamos entrar, Jem — chamei.

— Daqui a pouco eu vou.

Ele ficou lá até o anoitecer e eu o esperei. Quando entramos, vi que ele tinha chorado; estava com o rosto manchado de lágrimas e achei estranho eu não ter ouvido nada.


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Copyright © 1960 by Harper Lee, renovado em 1988 
Copyright da tradução © José Olympio
Título do original em inglês 
TO KILL A MOCKINGBIRD 
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Um dos romances mais adorados de todos os tempos, O sol é para todos conta a história de duas crianças no árido terreno sulista norte-americano da Grande Depressão no início dos anos 1930. 

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