terça-feira, 25 de abril de 2023

O Sol é para todos: 1ª Parte (8b)

Harper Lee

O Sol é para todos


Para o sr. Lee e Alice, em retribuição ao amor e afeto


Os advogados, suponho, um dia foram crianças.
CHARLES LAMB



PRIMEIRA PARTE

8

continuando...

À tarde, parou de nevar, a temperatura baixou e ao anoitecer as piores previsões do sr. Avery se confirmaram: Calpúrnia acendeu todas as lareiras da casa e ainda assim ficamos com frio. Naquela noite, quando Atticus chegou, disse para nos prepararmos, pois o tempo ia piorar, e perguntou a Calpúrnia se queria passar a noite na nossa casa. Ela deu uma olhada no teto alto e nas janelas largas e disse que achava que ia ficar mais aquecida na casa dela. Atticus levou-a de carro.
Antes de eu me deitar, Atticus colocou mais carvão na lareira do meu quarto. Disse que o termômetro marcava nove graus abaixo de zero e que era a noite mais fria de que se recordava. Nosso boneco de neve lá fora tinha congelado e estava completamente sólido.
Minutos depois, ou pelo menos foi o que me pareceu, acordei com alguém me sacudindo. O casacão de Atticus estava estendido sobre mim.

— Já é de manhã? — perguntei.

— Querida, levante.

Atticus tinha nas mãos o meu roupão de banho e o meu casacão.

— Vista primeiro o roupão — ele disse.

Jem estava ao lado de Atticus, sonolento e descabelado. Uma das mãos estava fechando o casaco até o pescoço e a outra estava enfiada no bolso. Parecia estranhamente gordo.

— Anda, querida. Aqui os seus sapatos e as meias — disse Atticus.

Confusa, vesti tudo:

— Já é de manhã?

— Não, é pouco mais de uma da madrugada. Ande logo.

Finalmente me dei conta de que havia alguma coisa errada.

— O que aconteceu?

A essa altura, ele não precisava dizer nada. Da mesma maneira que os pássaros sabem aonde ir para se proteger da chuva, percebi que alguma coisa tinha acontecido na nossa rua. Vozes abafadas e os sons de passos apressados passando pela calçada me deixaram apavorada.

— É a casa de quem?

— Da srta. Maudie, querida — respondeu Atticus, gentil.

Pela porta da frente, vimos o fogo saindo pelas janelas da sala de jantar da srta. Maudie. Como para confirmar o que estávamos vendo, o alarme de incêndio da cidade soava cada vez mais agudo, até atingir uma nota alta e trêmula, que se prolongou como um longo lamento.

— Não tem jeito, não é? — resmungou Jem.

— Acho que não — respondeu Atticus. — Ouçam, vocês dois. Desçam a rua e fiquem na frente da casa dos Radley. Saiam do caminho, entenderam? Estão vendo para onde o vento está soprando?

— Atticus, acha que devemos trazer os móveis para a rua? — perguntou Jem.

— Ainda não, filho. Façam o que eu disse, vão. Cuide da Scout, ouviu? Não a perca de vista.

Atticus nos deu um empurrão de leve e saímos em direção ao portão dos Radley. Ficamos olhando a rua se encher de homens e carros enquanto o fogo devorava silenciosamente a casa da srta. Maudie.

— Por que eles não andam mais rápido, por que não correm… — resmungava Jem.

Vimos por quê. Por causa do frio, o velho carro dos bombeiros tinha enguiçado e estava sendo empurrado por vários homens desde a cidade. Quando ligaram a mangueira num hidrante, a água espirrou, se espalhando pela calçada.

— Ai, meu Deus, Jem…

Jem pôs o braço em volta de mim.

— Calma, Scout. Ainda não é hora de se preocupar. Eu digo quando for.

Os homens de Maycomb, meio vestidos e meio despidos, tiravam os móveis da casa da srta. Maudie e os levavam para um terreno do outro lado da rua. Vi Atticus carregando a pesada cadeira de balanço e achei sensato ele salvar o que ela mais gostava.
Às vezes ouvíamos gritos. De repente a cara do sr. Avery apareceu numa janela do andar superior. Ele jogou um colchão pela janela e ficou atirando móveis lá de cima até os homens gritarem:

— Desça daí, Dick! A escada está cedendo! Desça, sr. Avery!

O sr. Avery começou a descer pela janela.

— Scout, ele está preso, ai, meu Deus… — exclamou Jem.

O sr. Avery ficou preso na janela. Enfiei a cabeça embaixo do braço de Jem e só olhei de novo quando ele gritou:

— Ele se soltou, Scout! Ele está bem!

Olhei e vi o sr. Avery descendo a varanda superior. Ele passou por cima da grade e ia deslizar por uma coluna quando escorregou. Caiu, deu um grito e aterrissou nas trepadeiras da srta. Maudie.
De repente, notei que os homens estavam se afastando da casa e vindo na nossa direção. Não estavam mais carregando a mobília. O fogo tinha tomado o segundo andar e chegava ao telhado: os caixilhos das janelas estavam negros contra o laranja das labaredas.

— Jem, parece uma abóbora…

— Scout, olha!

Rolos de fumaça saíam da nossa casa e da casa da srta. Rachel como neblina na margem de um rio e os homens direcionavam as mangueiras para lá. Atrás de nós, o carro de bombeiros de Abbottsville virou a esquina com a sirene a toda e parou na frente da nossa casa.

— Aquele livro… — lembrei.

— Qual? — perguntou Jem.

— Aquele, de Tom Swift. Não é meu, é de Dill...

— Não se preocupe, Scout, ainda não é hora de se preocupar — disse Jem. Ele apontou e disse: — Olha lá.

Atticus estava no meio dos vizinhos, com as mãos nos bolsos do casaco. Ele poderia estar assistindo a um jogo de futebol. A srta. Maudie estava ao lado dele.

— Veja, ele ainda não está preocupado.

— Por que não está no telhado de uma das casas?

— Ele é velho demais para fazer isso. Pode quebrar o pescoço — explicou Jem.

— Acha que devemos pedir para ele tirar nossas coisas de casa?

— Não vamos incomodá-lo, ele vai saber quando for a hora — disse Jem.

O carro de bombeiros de Abbottsville começou a jogar água sobre a nossa casa; de pé no telhado, um homem mostrava onde havia fogo para apagar. Vi o nosso Hermafrodita Absoluto ficar escuro e desmoronar; o chapéu da srta. Maudie ficou por cima da sujeira. Não vi as tesouras de poda dela. Por causa do calor que fazia entre a nossa casa, a da srta. Rachel e a da srta. Maudie, os homens tinham jogado no chão os casacos e roupões de banho. Trabalhavam de pijama ou com os camisolões enfiados nas calças, mas me dei conta de que eu estava congelando lentamente. Jem tentou me aquecer, mas o abraço dele não bastou. Desvencilhei-me, encolhi os ombros e dancei um pouco para sentir os pés.
Mais um carro de bombeiros chegou e parou na frente da casa da srta. Stephanie Crawford. Não havia hidrante sobrando para a mangueira e os homens tentaram encharcar a casa com extintores de incêndio.
O telhado de zinco da srta. Maudie impedia que as chamas se espalhassem. Com um estrondo, a casa desabou, o fogo jorrou por toda a parte e em seguida vários homens no telhado das casas próximas começaram a agitar cobertores para combater as fagulhas e os pedaços de madeira em brasa.
Os homens só começaram a ir embora ao amanhecer, primeiro um a um, depois em grupos. Empurraram o carro de bombeiros de Maycomb de volta para a cidade, o de Abbottsville foi embora e o terceiro ficou. Descobrimos no dia seguinte que tinha vindo de Clark’s Ferry, que ficava a uns noventa quilômetros de distância.
Jem e eu atravessamos a rua. A srta. Maudie estava olhando para o buraco negro e fumegante que tinha sido a casa dela e Atticus fez sinal com a cabeça para nos dizer que ela não queria conversa. Ele nos levou para casa, segurando nossos ombros para atravessarmos a rua escorregadia e gelada. Contou que, por enquanto, a srta. Maudie ficaria na casa da srta. Stephanie.

— Querem um chocolate quente? — perguntou ele.

Estremeci quando ele acendeu o fogão da cozinha.
Enquanto tomávamos nosso chocolate, notei que papai me olhava, primeiro com curiosidade e depois sério.

— Achei que eu tinha dito para você e Jem ficarem onde estavam — ele disse.

— Nós ficamos. Ficamos…

— Então de quem é esse cobertor?

— Cobertor?

— Sim, senhora. Não é nosso.

Olhei para baixo e vi que estava com um cobertor de lã marrom jogado nos ombros, como uma índia.

— Não sei, Atticus… eu…

Olhei para Jem em busca de uma resposta, mas ele estava mais espantado que eu. Disse que não sabia de onde tinha saído o cobertor, tínhamos feito exatamente o que Atticus mandara, tínhamos ficado na frente do portão dos Radley, longe de todo mundo, não nos afastamos um centímetro... Jem parou de falar.

— O sr. Nathan estava no incêndio, estava arrastando aquele colchão… Atticus, eu juro… — continuou Jem, confuso.

— Está bem, filho — aos poucos, Atticus abriu um sorriso. — Acho que o condado inteiro estava na rua esta noite, de uma forma ou de outra. Jem, tem um papel de embrulho na despensa, eu acho. Vá pegar, assim nós…

— Não vou, Atticus!

Jem parecia ter enlouquecido. Começou a contar todos os nossos segredos, sem nenhuma consideração pela minha segurança, sem falar da dele mesmo. Contou tudo, do buraco na árvore, das calças que ele perdeu, tudo.

—… O sr. Nathan cimentou aquela árvore, Atticus, e fez isso para nós não acharmos mais nada… O outro é doido, eu sei, como dizem, mas juro por Deus que ele nunca nos fez nada, nunca nos machucou, podia ter cortado meu pescoço de orelha a orelha naquela noite, mas em vez disso tentou remendar a minha calça… Ele nunca fez nada conosco, Atticus…

— Eu sei, filho — Atticus disse tão suavemente que me acalmei. Era evidente que ele não tinha entendido nada do que Jem tinha dito, porque acrescentou apenas: — Tem razão. Vamos deixar essa história e o cobertor entre nós. Um dia, quem sabe, Scout pode agradecer por ele ter colocado o cobertor nos ombros dela.

— Agradecer a quem? — perguntei.

— Boo Radley. Você estava prestando tanta atenção ao incêndio que não reparou quando ele pôs o cobertor no seu ombro.

Meu estômago embrulhou e eu quase vomitei quando Jem apontou o cobertor e veio devagar na minha direção.

— Boo saiu de casa de fininho… deu uma volta… sem fazer barulho, foi até nós, depois voltou do mesmo jeito!

Atticus disse, ríspido:

— Não vá deixar que isso o inspire a fazer novas proezas, Jeremy.

Jem zangou-se:

— Não vou fazer nada. — Mas vi a faísca de mais uma aventura se apagar nos olhos dele. — Pensa só, Scout. Bastava você virar para trás que teria visto ele.

No dia seguinte, Calpúrnia nos acordou ao meio-dia. Atticus disse que não precisávamos ir à escola; sem dormir, não íamos aprender nada. Calpúrnia pediu que déssemos um jeito de limpar o jardim.
O chapéu de palha da srta. Maudie estava envolto por uma fina camada de gelo, como uma mosca fossilizada no âmbar, e precisamos cavar para encontrar a tesoura de poda. Encontramos a srta. Maudie no quintal, olhando suas azáleas queimadas e congeladas.

— Trouxemos as suas coisas, srta. Maudie. Sentimos muito — disse Jem.

A srta. Maudie olhou à volta e a sombra do antigo sorriso atravessou seu rosto.

— Eu sempre quis uma casa menor, Jem Finch. Agora vou poder ter um jardim maior. Imagine só, agora vou ter mais espaço para as minhas azáleas!

— Não está triste, srta. Maudie? — perguntei, surpresa. Atticus tinha dito que a casa era quase tudo o que ela possuía.

— Triste, filha? Não, eu detestava aquele velho estábulo. Pensei em botar fogo nela muitas vezes, mas, se eu fizesse isso, seria presa.

— Mas…

— Não se preocupe comigo, Jean Louise Finch. Há maneiras de resolver as coisas que você ignora. Vou construir uma casinha, alugar uns dois quartos e… pode ter certeza, terei o jardim mais lindo do Alabama. Os jardins dos Bellingraths vão ficar no chinelo!

Jem e eu nos entreolhamos. Ele perguntou:

— Como o fogo começou, srta. Maudie?

— Não sei, Jem. Provavelmente na chaminé da cozinha. Deixei o fogo aceso na noite passada para aquecer as minhas plantas. Ouvi dizer que você teve um acompanhante inesperado na noite passada, srta. Jean Louise.

— Como soube?

— Atticus me contou quando estava indo para a cidade hoje de manhã. Para ser sincera, gostaria de estar lá com você. E teria o bom senso de olhar para trás também.

Eu ficava intrigada com a srta. Maudie. Mesmo depois de perder quase tudo e de seu amado jardim ter virado cinzas, ela continuava a demonstrar um vívido e cordial interesse pelos nossos assuntos.
Ela deve ter notado a minha perplexidade, por isso continuou:

— A única coisa que me preocupou na noite passada foi o perigo e o prejuízo que causou o incêndio. O fogo podia ter se espalhado por toda a vizinhança. O sr. Avery vai ficar uma semana de cama, está todo chamuscado. Eu disse a ele que estava muito velho para fazer aquilo. Assim que eu puder, e quando Stephanie Crawford não estiver vendo, vou fazer um bolo recheado para ele. Há trinta anos que ela quer a minha receita, e se pensa que vou dar só porque estou na casa dela, está muito enganada.

Concluí que, mesmo que a srta. Maudie mudasse de ideia e desse a receita, a srta. Stephanie não ia conseguir prepará-la. Uma vez, a srta. Maudie me deixou ver a receita: entre outros ingredientes, levava uma xícara cheia de açúcar.
Ainda estava claro. O ar estava tão puro e tão frio que ouvíamos as engrenagens do relógio do tribunal vibrarem, chocalharem e distenderem antes de bater a hora. O nariz da srta. Maudie estava de uma cor que eu nunca tinha visto, e perguntei por que.

— Estou aqui desde as seis da manhã, meu nariz deve estar congelado — explicou. Ela mostrou as mãos: as palmas estavam cobertas de linhas sujas de terra e sangue seco.

— A senhora estragou suas mãos — constatou Jem. — Por que não chama um negro para ajudar? — Não havia nenhum tom de sacrifício em sua voz quando ele acrescentou: — Scout e eu também podemos ajudar.

A srta. Maudie apontou o nosso quintal:

— Obrigada, mas vocês já têm muito o que fazer lá.

— A senhora se refere ao Hermafrodita? Ah, nós passamos o ancinho nele num piscar de olhos — avaliei.

A srta. Maudie olhou bem para mim e mexeu os lábios sem dizer nada. De repente, pôs as mãos na cabeça e deu uma risada. Quando fomos embora, ela continuava rindo.
Jem disse que não sabia o que tinha acontecido. Ela era assim mesmo.


continua página 058...
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O Sol é para todos: 1ª Parte (8b)
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Copyright © 1960 by Harper Lee, renovado em 1988 
Copyright da tradução © José Olympio
Título do original em inglês 
TO KILL A MOCKINGBIRD 
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Um dos romances mais adorados de todos os tempos, O sol é para todos conta a história de duas crianças no árido terreno sulista norte-americano da Grande Depressão no início dos anos 1930. 

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