segunda-feira, 13 de março de 2023

O Sol é para todos: 1ª Parte (8a)

Harper Lee

O Sol é para todos


Para o sr. Lee e Alice, em retribuição ao amor e afeto


Os advogados, suponho, um dia foram crianças.
CHARLES LAMB



PRIMEIRA PARTE

8

Naquele ano, por motivos que nem os mais experientes profetas do condado de Maycomb conseguiram explicar, o outono virou inverno. Foram as duas semanas mais frias desde 1885, segundo Atticus. O sr. Avery disse que estava escrito na Pedra de Roseta que, quando os filhos desobedecessem os pais, fumassem e brigassem, as estações do ano mudariam. Jem e eu carregávamos, portanto, o peso da culpa por colaborarmos com as aberrações da natureza, causando problemas para nossos vizinhos e desconforto para nós mesmos. A velha sra. Radley morreu naquele inverno, o que não causou nenhuma comoção: ela raramente era vista, a não ser quando regava as plantas. Jem e eu concluímos que Boo tinha finalmente acabado com ela, mas quando Atticus voltou do velório, disse, para nosso desapontamento, que ela teve morte natural.

— Pergunta a ele — cochichou Jem.

— Pergunta você, que é o mais velho.

— É por isso que você devia perguntar.

— Atticus, você viu o sr. Arthur? — perguntei.

Atticus tirou os olhos do jornal e respondeu, sério:

— Não.

Jem me impediu de fazer mais perguntas. Disse que Atticus ainda estava irritado com a nossa história com os Radley e não adiantava insistir. Jem tinha a impressão de que Atticus desconfiava que, naquela fatídica noite do último verão, não tínhamos ficado só jogando strip pôquer. As suspeitas de Jem não tinham o menor fundamento, ele dizia que eram um mero palpite.
Na manhã seguinte, acordei, olhei pela janela e quase morri de susto. Meus gritos fizeram Atticus sair do banheiro com a barba feita pela metade.

— O mundo está acabando, Atticus! Por favor, faça alguma coisa… — Puxei-o até a janela e apontei.

— Não, está só nevando — ele garantiu.

Jem perguntou a Atticus até quando ia continuar nevando. Ele também nunca tinha visto neve, mas sabia como era. Atticus respondeu que entendia tanto de neve quanto Jem. E acrescentou:

— Mas acho que, se continuar assim tão úmido, vai acabar chovendo.

O telefone tocou e Atticus levantou-se da mesa do café para atender.

— Era Eula May — Atticus informou ao voltar para a mesa. — Ela avisou o seguinte: “Como não neva no condado de Maycomb desde 1885, hoje não vai haver aula.”

Eula May era a telefonista-chefe de Maycomb. Ela estava encarregada de fazer comunicados públicos, convidar para casamentos, acionar a sirene de incêndio e dar instruções sobre primeiros socorros quando o dr. Raynolds não estivesse no condado.
Quando Atticus finalmente mandou que nos concentrássemos em nossos pratos em vez de ficarmos olhando para as janelas, Jem perguntou:

— Como se faz um boneco de neve?

— Não tenho a menor ideia — respondeu Atticus. — Não quero desapontar vocês, mas acho que não vai dar para fazer nem uma bola de neve.

Calpúrnia entrou na sala e disse que achava que a neve estava se acumulando. Corremos para o quintal, que estava coberto por uma leve camada de neve enlameada.

— Não devíamos pisar nela. Olha, os seus passos estão desmanchando a neve — disse Jem.

Olhei para trás e vi minhas pegadas lamacentas. Jem disse que, se esperássemos nevar mais um pouco, podíamos juntar o suficiente para fazer um boneco de neve. Estiquei a língua e peguei um floco no ar. Queimava.

— Jem, a neve é quente!

— Não, não é, ela é tão gelada que queima. Mas não é pra comer, Scout. Vai desperdiçar. Deixa a neve cair.

— Quero andar nela.

— Tenho uma ideia, vamos andar na neve no jardim da srta. Maudie.

Jem saiu saltando pelo jardim e segui as pegadas dele. Quando chegamos à calçada em frente à casa da srta. Maudie, o sr. Avery nos cumprimentou. Tinha o rosto corado e uma barriga enorme sob o cinto.

— Viram o que vocês fizeram? — ele perguntou. — Não neva em Maycomb desde a rendição de Appomattox. As estações estão mudando por causa de crianças desobedientes como vocês.

Fiquei imaginando se o sr. Avery sabia que esperávamos ansiosamente a repetição daquela cena do verão passado e, refleti, se nosso castigo era a neve, pecar tinha lá suas vantagens. Não me perguntei de onde o sr. Avery tirava suas estatísticas meteorológicas: provavelmente vinham direto da Pedra de Roseta.

— Jem Finch, ei, Jem Finch!

— Jem, a srta. Maudie está chamando — avisei.

— Fiquem no meio do jardim. Tem plantas embaixo da neve em volta da varanda. Não pisem nelas!

— Tudo bem! — concordou Jem. — É lindo, não acha, srta. Maudie?

— Lindo nada! Se hoje à noite tiver geada, vai acabar com as minhas azáleas.

O velho chapéu de palha da srta. Maudie brilhava com cristais de neve. Ela estava debruçada sobre pequenos arbustos, protegendo-os com sacos de estopa. Jem perguntou por que ela estava fazendo aquilo. 

— Para aquecer as plantas — ela respondeu. 

— Como elas conseguem se aquecer? Não têm sistema circulatório. 

— Não sei, Jem Finch. Só sei que, se tiver geada esta noite, as plantas vão congelar, então preciso cobri-las, entendeu? 

— Entendi. Srta. Maudie? 

— O que foi? 

— Scout e eu podemos pegar um pouco da sua neve? 

— Deus seja louvado, podem levar tudo! Tem uma velha cesta de pêssego no porão, ponham a neve nela. — A srta. Maudie estreitou os olhos e perguntou: — O que vocês vão fazer com a minha neve, Jem Finch? 

— A senhora vai ver — respondeu Jem, em seguida carregamos toda a neve que conseguimos do quintal dela para o nosso, uma operação bastante lamacenta. 

— O que vamos fazer, Jem? — perguntei. 

— Você vai ver — ele respondeu. E recomendou: — Agora pegue a cesta e carregue toda a neve que puder do pátio dos fundos para o jardim da frente. Mas pise sempre nos mesmos lugares, está bem? 

— Vamos fazer um boneco de neve bebê, Jem? 

— Não, um homem de neve de verdade. Agora, temos muito trabalho a fazer.

Jem correu para o quintal, pegou a enxada e começou a cavar rápido ao lado da pilha de lenha, colocando de lado as minhocas que encontrava. Foi até lá dentro, pegou o cesto de roupa suja, encheu-o de terra e levou-o para o jardim. 
Depois que juntamos cinco cestos de terra e dois de neve, Jem disse que podíamos começar. 

— Você não acha que está meio bagunçado? — perguntei. 

— Agora parece, mas depois vai ficar bom.

Jem pegou um monte de terra e fez um monte, juntou mais um pouco de terra, depois mais outro e outro até formar um torso. 

— Jem, nunca ouvi falar de um boneco de neve negro — observei. 

— Daqui a pouco ele vai ficar branco — resmungou ele.

Jem pegou alguns galhos de pessegueiro no quintal, dobrou-os para serem os ossos que ele ia cobrir de terra. 

— Está parecendo a srta. Stephanie Crawford com as mãos na cintura — eu disse. — Gorda, com bracinhos finos. 

— Vou aumentar os braços.

Jem jogou água no homem de lama e colocou mais terra. Pensou por um instante e então fez uma grande barriga na cintura dele. Virou-se para mim, com os olhos brilhando:

— O sr. Avery parece um pouco com um boneco de neve, não acha?

Jem pegou um pouco de neve e começou a cobrir o boneco com ela. Ele me deixou cobrir só a parte de trás, a frente ficou para ele. Aos poucos, o sr. Avery foi ficando branco.
Com pedaços de madeira, Jem fez os olhos, o nariz, a boca, os botões da roupa. Jem conseguiu que o sr. Avery parecesse zangado e completou a figura com um pedaço de lenha. Deu um passo atrás e apreciou sua obra. 

— Está ótimo, Jem. Só falta falar — elogiei. 

— Está, não está? — concordou, tímido.

Estávamos tão ansiosos para mostrar o boneco a Atticus quando ele viesse comer que telefonamos avisando que tínhamos uma grande surpresa. Ele pareceu um pouco surpreso ao ver quase todo o quintal no jardim, mas aprovou o nosso trabalho. 

— Filho, eu não sabia como você ia se virar, mas de agora em diante não vou mais me preocupar. Você sempre dá um jeito.

Jem ficou com as orelhas vermelhas por causa do elogio, mas olhou intrigado quando Atticus deu um passo atrás e examinou o boneco de neve por um momento. Ele sorriu depois deu uma risada. 

— Filho, não sei o que você vai ser na vida: engenheiro, advogado ou pintor. Mas fez quase uma difamação aqui no jardim. Temos que disfarçar esse boneco.

Atticus sugeriu que Jem diminuísse um pouco a barriga, trocasse o pedaço de lenha por uma vassoura e colocasse um avental no boneco. 
Jem argumentou que assim o homem de neve ia ficar enlameado e deixar de ser um homem de neve. 

— Não importa o que vai fazer, mas tem que fazer alguma coisa — ordenou Atticus. — Não pode sair por aí fazendo caricatura dos vizinhos. 

— Não é uma caractetura. É só parecido com ele — disse Jem. 

— O sr. Avery pode discordar. 

— Já sei! — exclamou Jem. Correu pela rua, sumiu no quintal da srta. Maudie e depois voltou todo satisfeito. Colocou o chapéu de palha dela na cabeça do boneco e a tesoura de poda na dobra do braço. Atticus aprovou.

A srta. Maudie abriu a porta da frente e apareceu na varanda. Olhou para nós do outro lado da rua. De repente, sorriu.

— Jem Finch, devolva o meu chapéu, seu diabinho!

Jem olhou para Atticus, que balançou a cabeça. 

— Ela só está brincando. Na verdade, ela gostou muito da sua… obra.

Atticus atravessou a rua e foi até a casa da srta. Maudie, onde os dois começaram uma conversa cheia de gestos da qual a única frase que consegui ouvir foi:

—… fez um verdadeiro hermafrodita no jardim! Atticus, você nunca vai conseguir educar essas crianças!



continua página 053...
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Copyright © 1960 by Harper Lee, renovado em 1988 
Copyright da tradução © José Olympio
Título do original em inglês 
TO KILL A MOCKINGBIRD 
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Um dos romances mais adorados de todos os tempos, O sol é para todos conta a história de duas crianças no árido terreno sulista norte-americano da Grande Depressão no início dos anos 1930. 

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