Elias Canetti
MASSAS DE ACOSSAMENTO
A massa de fuga constitui-se a partir da ameaça. É próprio dela que todos fujam, que todos sejam arrastados por ela. O perigo de que se sente ameaçada é o mesmo para todos. Ele se concentra num determinado lugar e não faz distinções: pode ameaçar os habitantes de uma cidade, todos os que professam uma mesma crença ou todos os falantes de uma única e mesma língua.
As pessoas fogem juntas porque assim fogem melhor. A excitação é a
mesma: a energia de um intensifica a dos outros, e as pessoas compelem-se todas adiante, na mesma direção. Enquanto estão juntas, sentem o
perigo distribuído por todos. Uma noção antiquíssima crê que o perigo
atacará em um único ponto. Enquanto o inimigo se apodera de um, os
outros todos poderão escapar. Os flancos da fuga apresentam-se abertos, mas alongados como são é inconcebível que o perigo ataque todos ao
mesmo tempo. Em meio a tantas pessoas, ninguém supõe que venha a
ser ele a vítima. Uma vez que todos se movem rumo à salvação, cada um
sente-se inteiramente impregnado da possibilidade de obtê-la.
O que mais chama a atenção na fuga em massa é precisamente a força
de sua direção. A própria massa transformou-se inteiramente em
direção, por assim dizer — uma direção que significa longe do perigo. Uma vez que importa apenas a meta, na qual se está salvo — isto é, o
percurso específico até lá, e nada mais —, as distâncias anteriormente
existentes entre os homens são irrelevantes. Criaturas bastante
singulares e opostas, que jamais se aproximaram uma da outra, podem
aí subitamente reunir-se. É certo que, na fuga, não se anulam as suas
diferenças, mas anulam-se nela todas as distâncias que as separavam. De
todas as formas da massa, a de fuga é a mais abrangente. Contudo, o quadro desigual que ela oferece não é produzido apenas pela
participação de absolutamente todos, mas faz-se ainda mais confuso
pelas velocidades bastante diversas de que os homens são capazes em sua
fuga. Dentre eles há jovens e velhos, fortes e fracos, pessoas levando
consigo cargas maiores ou menores. A variedade desse quadro pode
confundir um observador externo. Ela é casual e — comparada à força
avassaladora da direção — absolutamente insignificante.
A energia da fuga multiplica-se na medida em que cada participante
reconheça os demais: ele pode impeli-los adiante, mas não empurrá-los
para o lado. No momento em que passa a preocupar-se apenas consigo
próprio e a sentir os que o circundam tão somente como um obstáculo,
o caráter da fuga em massa altera-se completamente, transformando-se
em seu oposto: ela se transforma em pânico, uma luta de cada um contra
todos os demais que lhe barram o caminho. Na maioria das vezes, uma
tal reviravolta ocorre quando a direção da fuga é reiteradamente
perturbada. Basta que se obstrua o caminho da massa para que ela
irrompa em outra direção. Obstruindo-se lhe seguidamente o caminho,
ela logo não saberá mais que rumo tomar. Confundir-se-á em sua
direção, o que fará com que sua consistência se modifique. O perigo,
que até então produzira um efeito acelerador e unificador, coloca uns
como inimigos dos outros, de modo que cada um tentará salvar-se por si
só.
Contrariamente ao pânico, porém, a fuga em massa extrai sua energia
de sua coesão. Enquanto ela não se deixar dispersar por coisa alguma,
enquanto persistir em seu caráter irrompível, qual uma portentosa
torrente que não se subdivide, também o medo que a impele
permanecerá suportável. Tão logo ela se põe em marcha, uma espécie
de exaltação caracteriza a fuga em massa: a exaltação do movimento
conjunto. Ninguém se encontra menos em perigo do que o outro, e embora cada um corra ou cavalgue a não mais poder, a fim de pôr-se em
segurança, cada um tem o seu lugar no todo — um lugar que reconhece
e ao qual, em meio à agitação geral, se aferra.
No decorrer da fuga, que pode estender-se por dias ou semanas,
muitos ficam para trás — seja porque sua força os abandonou ou porque
o inimigo os atingiu. Cada um que cai constitui um estímulo para que
os outros prossigam. A sorte que o vitimou excetuou os demais. O
atingido é um sacrifício oferecido ao perigo. Por mais importante que
tenha sido para alguém em particular, como companheiro de fuga, na
condição daquele que caiu ele se faz importante para todos. Sua visão
dá nova força aos exaustos. Ele era mais fraco que eles; era a ele que o
perigo visava. O isolamento desse seu ficar para trás, o isolamento no
qual os demais ainda o veem por um breve instante, aumenta para estes
o valor de sua coesão. Nunca é demais enfatizar o significado para a
consistência da fuga daquele que tombou.
O término natural da fuga é o alcance de sua meta. Em segurança, a
massa volta a dissolver-se. O perigo, porém, pode também ser
aniquilado em sua fonte. Decreta-se uma trégua, e a cidade da qual se
fugiu já não está mais em perigo. Se antes haviam fugido em conjunto,
agora as pessoas retornam separadamente; apresentam-se novamente
tão apartadas quanto antes. Contudo, há ainda uma terceira
possibilidade, a que se pode chamar o escoar-se da fuga na areia. A meta
encontra-se demasiado distante; o meio é hostil; os homens têm fome,
tornam-se fracos e exaustos. Em vez de um único, centenas, milhares
jazem no chão. Essa desintegração física estabelece-se paulatinamente, e
o movimento inicial mantém-se por um tempo infinitamente longo. Os
homens arrastam-se adiante, tendo já desaparecido qualquer perspectiva
de salvação. De todas as formas da massa, a de fuga é a mais tenaz; seus
últimos integrantes permanecem juntos até o instante derradeiro.
Exemplos de fuga em massa efetivamente não faltam. Nossa época
fez-se novamente bastante farta nesse fenômeno. Até os acontecimentos
da última guerra, ter-se-ia pensado primeiramente no destino da
Grande Armada de Napoleão, por ocasião de sua retirada da Rússia.
Trata-se do exemplo mais grandioso: a composição desse exército de
homens de tantas e tão diversas línguas e países, o inverno terrível, a
distância gigantesca, que tinha de ser percorrida a pé pela maioria —
conhece-se em todos os seus detalhes essa retirada que tinha,
necessariamente, de degenerar numa fuga em massa. — A fuga de uma
metrópole foi provavelmente vivenciada pela primeira vez, nas
proporções em que se deu, em 1940, quando os alemães se aproximavam
de Paris. O famoso “êxodo” não durou muito tempo, uma vez que logo
se estabeleceu a trégua. Contudo, a intensidade e a amplitude desse
movimento foram tais que ele se converteu para os franceses na
principal lembrança relacionada à massa da última guerra.
Não cabe enumerar aqui os exemplos de tempos mais recentes. Sua
lembrança apresenta-se fresca ainda na mente de todos. Importante
afigura-se, porém, destacar que a fuga em massa era já, desde sempre,
conhecida dos homens, mesmo quando estes viviam ainda em grupos
bastante reduzidos. Ela desempenhou um papel em sua imaginação
antes mesmo de ser-lhes numericamente possível. Basta lembrar aquela
visão de um xamã esquimó: “O espaço celeste está repleto de seres nus
que vagam pelo ar. Seres humanos, homens nus, mulheres nuas que
voam, atiçando a tempestade e a nevasca. Ouvis o zunido? O vento lá
em cima zune feito o bater de asas de pássaros enormes. Esse é o medo
dos seres humanos nus, a fuga dos seres nus!”.
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Leia também:
Massa e Poder - A Massa (Massa Aberta e Massa Fechada)
Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht
Massa e Poder - A Massa (Massas de Fuga)
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994.
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) e O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de Marrakech, Festa sob as bombas e Sobre a morte.
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Título original Masse und Macht
"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."
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