segunda-feira, 8 de abril de 2024

Gupeva - IV (Era alta noite)

Maria Firmina dos Reis


Gupeva

IV 


— Era alta noite, – prosseguiu ele, com uma voz cavernosa, – o vento ciciava entre os palmares, e a lua, prateando a superfície das águas, passava melancólica por cima destas árvores anosas. A sururina desprendia o seu canto harmonioso; na mata ondulava um vento gemedor, e o mar quebrava-se nas solidões da praia. Sobre o cume deste mesmo rochedo, mancebo, a essa hora da noite, silenciosa, e erma, um jovem índio, e uma donzela americana, que o céu, ou o inferno havia unido em matrimônio, naquele mesmo dia, em confidência dolorosa, tragava até as fezes o amargor da desonra, e da ignomínia. De joelho a mulher fazia a mais custosa, e triste confissão, que jamais caiu dos lábios de uma mulher.

— Gupeva! Meu Gupeva – exclamava ela. – Assim se chamava, senhor, o jovem esposo. — Meu irmão, meu amigo, poderás perdoar-me?

— Fala! – disse-lhe Gupeva, tremendo de furor.

— Vou merecer o teu desprezo, o teu abandono; mas ao menos peço que meu pobre pai ignore tudo. Gupeva, confiei em ti; talvez minha confiança te ofenda; mas tu conheces a meu pai... ele não poderia sobreviver à minha...

— Cala-te! Cala-te, mulher, – exclamou com desespero assustador o desgraçado esposo.

— Não, – continuou ela sem se perturbar. Tens sobre mim direito de vida, ou morte, mata-me Gupeva; mas ouve-me primeiro.

— Épica! Épica, oh! Se isto fora um sonho!

— Amei, – continuou ela, – amei com esse amor ardente, e apaixonado que só o nosso clima sabe inspirar, com essa dedicação de que só é capaz a mulher americana, com essa ternura, que o homem nunca soube compreender. E sabes tu que homem era esse?

— Basta!

— Oh! É preciso que me escutes até o fim, depois mata-me.

   Esquecida, prosseguiu Épica, de que o homem de suas afeições chamava-se o conde de..., — Gupeva, eu cometi uma falta, que mais tarde devia cobrir de opróbrio o homem que me recebesse por esposa. O amor não prendeu o coração do conde, ele esqueceu os extremos de meus afetos, e desposou uma donzela nobre de sua nação, sem sequer comover-se das minhas lágrimas.
   Ah! bem tarde conheci eu a grandeza do meu sacrifício; bem tarde reconheci a perfídia, e a indignidade no coração daquele que era até então o meu ídolo. A pequenez da minha origem apagou-lhe o amor no coração... O conde de..., Gupeva, era já esposo, e eu... eu trazia em meu seio um filho, que há de envergonhar-se do seu nascimento!...
   Ao nome do conde de..., proferido pelo tupinambá, um calafrio mortal percorreu os membros do jovem Gastão, que submergido em longas cogitações, ouvia a narração do índio: no fundo do coração despontava-lhe um tormento inqualificável.
   O índio prosseguiu: — Ela estorcia-se convulsa no leito de relva a meus pés; porque, senhor, esse esposo desventurado, que na primeira noite do seu casamento, ouvia semelhante confissão, esse homem que acabara de receber a mulher impura, e maculada pelo filho da Europa, esse homem enfim que devorado por um amor louco, e apaixonado, estampada em sua fronte o ferrete da ignomínia, o cunho do opróbrio, era eu.

— Vós! – exclamou Gastão, com um sentimento indizível.

— Sim eu!... Eu mesmo, – respondeu o cacique, com voz de trovão.

   E prosseguiu: — O que se passou porém nessa noite de tão amargurada recordação, só Deus e eu sabemos. O sedutor de Épica, mancebo, era um francês, um francês é um cristão; bem, desde essa hora eu deixei de o ser. Tupã não abandona seus filhos... mancebo, eu não amo o Deus dos Cristãos. O conde de... era filho da Igreja.
   Gastão tentou interrompê-lo; mas ele continuou:
   A vergonha, a dor, bem depressa levaram ao sepulcro a desgraçada Épica. Não segui de perto essa mulher por quem houvera dado todo o meu sangue, se disso dependesse a sua ventura, porque restavam-me penosas missões a cumprir. Penosas, mancebo, e bem árduas: vivi para cumpri-las; ouvis?
   Restava-me o dever de velar por essa menina, que tem em suas veias o sangue francês, velar pela filha do conde de..., velar finalmente por Épica, essa jovem donzela a quem pretendeis seduzir.

— Oh! – Exclamou Gastão, pálido como o sudário dum morto. – Meu Deus! Meu Deus, onde estou eu!...

— Inda uma outra missão me reteve a vida, continuou Gupeva, – a vingança...

   No momento em que no seio da sepultura se escondia para sempre os restos daquela a quem eu tanto amei, de joelhos, senhor, de joelhos jurei que havia de vingá-la. Anhangá escutava os protestos da minha alma. Um guerreiro amanhã desposará a minha Épica, e hoje, daqui a um minuto, eu terei vingado a mulher que lhe deu a vida. Agora, mancebo, estás em meu poder; eu podia prender-te; aqui está a suçurrama, podia apresentar-te a minha tribo, e fazer-te morrer como meu prisioneiro, mas não quero; duas razões que me obrigam a proceder ao contrário. Para dar-te essa morte honrosa era preciso dar a causa dela; minha desonra se tornaria manifesta; e por outra: tu, covarde europeu, hás de empalidecer em face da morte: quero poupar-me a vergonha de uma confissão, quero poupar a meus irmãos o espetáculo de um covarde. Prepara-te para morrer; ou mata-me...
   O que então se passava na alma do infeliz mancebo, a quem eram dirigidas tais palavras, não pôde a pena descrever. O mais doloroso golpe acabava de traspassar-lhe o coração; golpe o mais profundo, mais dilacerante, que jamais feriu o coração de um homem. Gastão não amaldiçoou a hora do seu nascimento; mas pediu a Deus a morte, o esquecimento. Todas as suas ilusões estavam dissipadas; desfeitos todos os seus sonhos. Já não era Gupeva que se interpunha entre ele e o seu amor, era Deus, era a natureza, era a sua própria consciência. Depois do amor, a morte... ele havia dito... Seria acaso um erro?

— Da minha vingança serás tu a primeira vítima, continuou o cacique: mais tarde o conde de...

— Eis-me, – disse Gastão, interrompendo. — Gupeva, eu sou filho do conde de... não me reconheceste então? Oh! Eu sou francês, sou o filho do sedutor da vossa esposa, sou irmão de Épica...

— Infame! – rugiu o velho tupinambá. — Infame filho do conde de..., não terei compaixão de ti. E brandindo o seu tacape, o cravou com fúria no peito do jovem oficial. E batia com os pés na terra; e fazia com gritos um alarido infernal.

   Gastão, levando a mão à ferida, obrigou-o por um instante a calar-se, e disse-lhe:

— Obrigado, Gupeva, eu queria a morte.

— Covarde! – exclamou o índio.

— Não me insultes na hora do passamento, – tornou-lhe o moço empalidecendo. — Cacique, eu podia matar-te; mas para que quereria eu a vida depois do que me acabaste de narrar?... 

   Nessa hora, a lua rompendo o negrume das nuvens aclarou com sua face pálida o cimo do outeiro. Era o meio giro da lua: a hora da entrevista tinha soado.
   E uma visão angélica, uma mulher vaporosa, apareceu no cume do outeiro, como um anjo mandado pelo Senhor para receber a alma do mancebo cristão, que ia partir. Era Épica.
   Ela soltou um grito de angústia à vista da cena, que mercê da lua, se apresentou a seus olhos. Esse grito, essa voz tão conhecida, tão amada, atraindo a atenção do moribundo, fez calar o guerreiro índio, que apupava a sua vítima.
   Ela avançou alguns passos, e olhando fixamente para seu pai, disse-lhe:

— Gupeva, por que o mataste? Cruel! Sabes acaso, que este é o homem a quem adoro?

   Gupeva, esse feroz Gupeva, esse bárbaro que se ufanava da sua vingança até na presença da morte, à voz da moça, cruzou os braços sobre o peito, e com um olhar que queria dizer: Perdão, exclamou com aflição:

— Épica!...

   Ela pareceu não ouvir essa única palavra, que em si resumia quanta ternura há no coração dum homem, seus grandes olhos negros como o azeviche fitavam-se desvairados no mancebo agonizante. Ondulavam à mercê do vento suas madeixas acetinadas: e seu corpo flexível, e mimoso como o leque da palmeira, cedendo a um vertiginoso ondular, caiu inerte sobre o jovem Gastão.
   Ele olhou-a com assombro, e disse-lhe:

— É um crime.

— Monstro! – tornou ela para Gupeva, que, com os olhos fitos no chão, não se atrevia a encarar a donzela. — Monstro! Foi para me rasgares o coração que me criaste em teus braços!... E voltando-se para o jovem francês, disse-lhe:

— Gastão, meu querido Gastão, vive para a tua Épica.

   Nesses olhos em que já se estampava a morte, um átomo de vida reapareceu.

— Épica, – disse ele, – o nosso amor era um crime... Épica, eu sou teu irmão!...

continua na página 160...
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Gupeva - IV (Era alta noite)
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Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luís, no Maranhão, no dia 11 de outubro de 1825. Filha bastarda de João Pedro Esteves e Leonor Felipe dos Reis. Foi uma escritora brasileira, considerada a primeira romancista brasileira.
Em 1847, aos 22 anos, ela foi aprovada em um concurso público para a Cadeira de Instrução Primária, sendo assim a primeira professora concursada de seu Estado. Maria demonstrou sua afinidade com a escrita ao publicar “Úrsula” em 1859, primeiro romance abolicionista, primeiro escrito por uma mulher negra brasileira.
O romance “Úrsula” consagrou Maria Firmina como escritora e também foi o primeiro romance da literatura afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afrodescendente. Em 1887, no auge da campanha abolicionista, a escritora publica o livro “A Escrava”, reforçando sua postura antiescravista.

Ao aposentar-se, em 1880, fundou uma escola mista e gratuita. Maria morre aos 92 anos, na cidade de Guimarães, no dia 11 de novembro de 1917.
Em 1975, Maria recebe uma homenagem de José Nascimento Morais Filho que publica a primeira biografia da escritora, Maria Firmina: fragmentos de uma vida.
A importância da obra de Firmina, primeira escritora negra de que se tem notícia em nossa literatura, se deve ao pioneirismo na denúncia da opressão a negros e mulheres no Brasil do século XIX. Antes do Navio negreiro de Castro Alves, declamado pela primeira vez em 1868, Firmina já descrevia em seu livro Úrsula, de 1859, a crueldade do tráfico de pessoas sequestradas na África e transportadas nos porões dos “tumbeiros”. Neste mesmo romance, a crítica da escritora abrange o retrato lamentável da condição feminina da época ao delinear personagens como o pai de Tancredo ou o comendador, tiranos não só de escravos, mas também de mulheres. 
Maria Firmina foi uma voz profundamente legítima e dissonante que não encontrou acolhida e reconhecimento em seu tempo. Longe de fracassar, essa voz ressoa hoje cheia de significado, recriminando males que ainda assombram e permeiam nossa sociedade.

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