Maria Firmina dos Reis
Gupeva
IV
— Era alta noite, – prosseguiu ele, com uma voz cavernosa, – o vento
ciciava entre os palmares, e a lua, prateando a superfície das águas, passava
melancólica por cima destas árvores anosas. A sururina desprendia o seu
canto harmonioso; na mata ondulava um vento gemedor, e o mar quebrava-se
nas solidões da praia. Sobre o cume deste mesmo rochedo, mancebo, a essa
hora da noite, silenciosa, e erma, um jovem índio, e uma donzela americana,
que o céu, ou o inferno havia unido em matrimônio, naquele mesmo dia, em
confidência dolorosa, tragava até as fezes o amargor da desonra, e da ignomínia. De joelho a mulher fazia a mais custosa, e triste confissão, que jamais
caiu dos lábios de uma mulher.
— Gupeva! Meu Gupeva – exclamava ela. – Assim se chamava, senhor,
o jovem esposo. — Meu irmão, meu amigo, poderás perdoar-me?
— Fala! – disse-lhe Gupeva, tremendo de furor.
— Vou merecer o teu desprezo, o teu abandono; mas ao menos peço que
meu pobre pai ignore tudo. Gupeva, confiei em ti; talvez minha confiança te
ofenda; mas tu conheces a meu pai... ele não poderia sobreviver à minha...
— Cala-te! Cala-te, mulher, – exclamou com desespero assustador o
desgraçado esposo.
— Não, – continuou ela sem se perturbar. Tens sobre mim direito de
vida, ou morte, mata-me Gupeva; mas ouve-me primeiro.
— Épica! Épica, oh! Se isto fora um sonho!
— Amei, – continuou ela, – amei com esse amor ardente, e apaixonado
que só o nosso clima sabe inspirar, com essa dedicação de que só é capaz a mulher americana, com essa ternura, que o homem nunca soube compreender. E sabes tu que homem era esse?
— Basta!
— Oh! É preciso que me escutes até o fim, depois mata-me.
Esquecida, prosseguiu Épica, de que o homem de suas afeições chamava-se o conde de..., — Gupeva, eu cometi uma falta, que mais tarde devia
cobrir de opróbrio o homem que me recebesse por esposa. O amor não
prendeu o coração do conde, ele esqueceu os extremos de meus afetos,
e desposou uma donzela nobre de sua nação, sem sequer comover-se das
minhas lágrimas.
Ah! bem tarde conheci eu a grandeza do meu sacrifício; bem tarde reconheci a perfídia, e a indignidade no coração daquele que era até então o meu
ídolo. A pequenez da minha origem apagou-lhe o amor no coração... O conde
de..., Gupeva, era já esposo, e eu... eu trazia em meu seio um filho, que há de
envergonhar-se do seu nascimento!...
Ao nome do conde de..., proferido pelo tupinambá, um calafrio mortal
percorreu os membros do jovem Gastão, que submergido em longas cogitações, ouvia a narração do índio: no fundo do coração despontava-lhe um
tormento inqualificável.
O índio prosseguiu: — Ela estorcia-se convulsa no leito de relva a meus
pés; porque, senhor, esse esposo desventurado, que na primeira noite do
seu casamento, ouvia semelhante confissão, esse homem que acabara de
receber a mulher impura, e maculada pelo filho da Europa, esse homem
enfim que devorado por um amor louco, e apaixonado, estampada em sua
fronte o ferrete da ignomínia, o cunho do opróbrio, era eu.
— Vós! – exclamou Gastão, com um sentimento indizível.
— Sim eu!... Eu mesmo, – respondeu o cacique, com voz de trovão.
E prosseguiu: — O que se passou porém nessa noite de tão amargurada
recordação, só Deus e eu sabemos. O sedutor de Épica, mancebo, era um
francês, um francês é um cristão; bem, desde essa hora eu deixei de o ser.
Tupã não abandona seus filhos... mancebo, eu não amo o Deus dos Cristãos.
O conde de... era filho da Igreja.
Gastão tentou interrompê-lo; mas ele continuou:
A vergonha, a dor, bem depressa levaram ao sepulcro a desgraçada Épica.
Não segui de perto essa mulher por quem houvera dado todo o meu sangue, se disso dependesse a sua ventura, porque restavam-me penosas missões a
cumprir. Penosas, mancebo, e bem árduas: vivi para cumpri-las; ouvis?
Restava-me o dever de velar por essa menina, que tem em suas veias
o sangue francês, velar pela filha do conde de..., velar finalmente por Épica,
essa jovem donzela a quem pretendeis seduzir.
— Oh! – Exclamou Gastão, pálido como o sudário dum morto. – Meu
Deus! Meu Deus, onde estou eu!...
— Inda uma outra missão me reteve a vida, continuou Gupeva, – a
vingança...
No momento em que no seio da sepultura se escondia para sempre os
restos daquela a quem eu tanto amei, de joelhos, senhor, de joelhos jurei
que havia de vingá-la. Anhangá escutava os protestos da minha alma. Um
guerreiro amanhã desposará a minha Épica, e hoje, daqui a um minuto, eu
terei vingado a mulher que lhe deu a vida. Agora, mancebo, estás em meu
poder; eu podia prender-te; aqui está a suçurrama, podia apresentar-te a
minha tribo, e fazer-te morrer como meu prisioneiro, mas não quero; duas
razões que me obrigam a proceder ao contrário. Para dar-te essa morte honrosa era preciso dar a causa dela; minha desonra se tornaria manifesta; e
por outra: tu, covarde europeu, hás de empalidecer em face da morte: quero
poupar-me a vergonha de uma confissão, quero poupar a meus irmãos o
espetáculo de um covarde. Prepara-te para morrer; ou mata-me...
O que então se passava na alma do infeliz mancebo, a quem eram dirigidas tais palavras, não pôde a pena descrever. O mais doloroso golpe acabava de traspassar-lhe o coração; golpe o mais profundo, mais dilacerante,
que jamais feriu o coração de um homem. Gastão não amaldiçoou a hora
do seu nascimento; mas pediu a Deus a morte, o esquecimento. Todas as
suas ilusões estavam dissipadas; desfeitos todos os seus sonhos. Já não era
Gupeva que se interpunha entre ele e o seu amor, era Deus, era a natureza,
era a sua própria consciência. Depois do amor, a morte... ele havia dito...
Seria acaso um erro?
— Da minha vingança serás tu a primeira vítima, continuou o cacique:
mais tarde o conde de...
— Eis-me, – disse Gastão, interrompendo. — Gupeva, eu sou filho do
conde de... não me reconheceste então? Oh! Eu sou francês, sou o filho
do sedutor da vossa esposa, sou irmão de Épica...
— Infame! – rugiu o velho tupinambá. — Infame filho do conde de..., não
terei compaixão de ti. E brandindo o seu tacape, o cravou com fúria no peito do
jovem oficial. E batia com os pés na terra; e fazia com gritos um alarido infernal.
Gastão, levando a mão à ferida, obrigou-o por um instante a calar-se, e
disse-lhe:
— Obrigado, Gupeva, eu queria a morte.
— Covarde! – exclamou o índio.
— Não me insultes na hora do passamento, – tornou-lhe o moço empalidecendo. — Cacique, eu podia matar-te; mas para que quereria eu a vida
depois do que me acabaste de narrar?...
Nessa hora, a lua rompendo o negrume das nuvens aclarou com sua
face pálida o cimo do outeiro. Era o meio giro da lua: a hora da entrevista
tinha soado.
E uma visão angélica, uma mulher vaporosa, apareceu no cume do
outeiro, como um anjo mandado pelo Senhor para receber a alma do mancebo cristão, que ia partir. Era Épica.
Ela soltou um grito de angústia à vista da cena, que mercê da lua, se
apresentou a seus olhos. Esse grito, essa voz tão conhecida, tão amada,
atraindo a atenção do moribundo, fez calar o guerreiro índio, que apupava
a sua vítima.
Ela avançou alguns passos, e olhando fixamente para seu pai, disse-lhe:
— Gupeva, por que o mataste? Cruel! Sabes acaso, que este é o homem
a quem adoro?
Gupeva, esse feroz Gupeva, esse bárbaro que se ufanava da sua vingança até na presença da morte, à voz da moça, cruzou os braços sobre o
peito, e com um olhar que queria dizer: Perdão, exclamou com aflição:
— Épica!...
Ela pareceu não ouvir essa única palavra, que em si resumia quanta
ternura há no coração dum homem, seus grandes olhos negros como o azeviche fitavam-se desvairados no mancebo agonizante. Ondulavam à mercê
do vento suas madeixas acetinadas: e seu corpo flexível, e mimoso como o
leque da palmeira, cedendo a um vertiginoso ondular, caiu inerte sobre o
jovem Gastão.
Ele olhou-a com assombro, e disse-lhe:
— É um crime.
— Monstro! – tornou ela para Gupeva, que, com os olhos fitos no
chão, não se atrevia a encarar a donzela. — Monstro! Foi para me rasgares
o coração que me criaste em teus braços!... E voltando-se para o jovem
francês, disse-lhe:
— Gastão, meu querido Gastão, vive para a tua Épica.
Nesses olhos em que já se estampava a morte, um átomo de vida
reapareceu.
— Épica, – disse ele, – o nosso amor era um crime... Épica, eu sou teu
irmão!...
continua na página 160...
Gupeva - IV (Era alta noite)
___________________
Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luís, no Maranhão, no dia 11 de outubro de 1825. Filha bastarda de João Pedro Esteves e Leonor Felipe dos Reis. Foi uma escritora brasileira, considerada a primeira romancista brasileira.
Em 1847, aos 22 anos, ela foi aprovada em um concurso público para a Cadeira de Instrução Primária, sendo assim a primeira professora concursada de seu Estado. Maria demonstrou sua afinidade com a escrita ao publicar “Úrsula” em 1859, primeiro romance abolicionista, primeiro escrito por uma mulher negra brasileira.
O romance “Úrsula” consagrou Maria Firmina como escritora e também foi o primeiro romance da literatura afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afrodescendente. Em 1887, no auge da campanha abolicionista, a escritora publica o livro “A Escrava”, reforçando sua postura antiescravista.
Ao aposentar-se, em 1880, fundou uma escola mista e gratuita. Maria morre aos 92 anos, na cidade de Guimarães, no dia 11 de novembro de 1917.
Em 1975, Maria recebe uma homenagem de José Nascimento Morais Filho que publica a primeira biografia da escritora, Maria Firmina: fragmentos de uma vida.
A importância da obra de Firmina, primeira escritora negra de que se tem notícia em nossa literatura, se deve ao pioneirismo na denúncia da opressão a negros e mulheres no Brasil do século XIX. Antes do Navio negreiro de Castro Alves, declamado pela primeira vez em 1868, Firmina já descrevia em seu livro Úrsula, de 1859, a crueldade do tráfico de pessoas sequestradas na África e transportadas nos porões dos “tumbeiros”. Neste mesmo romance, a crítica da escritora abrange o retrato lamentável da condição feminina da época ao delinear personagens como o pai de Tancredo ou o comendador, tiranos não só de escravos, mas também de mulheres.
Maria Firmina foi uma voz profundamente legítima e dissonante que não encontrou acolhida e reconhecimento em seu tempo. Longe de fracassar, essa voz ressoa hoje cheia de significado, recriminando males que ainda assombram e permeiam nossa sociedade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário