terça-feira, 16 de abril de 2024

Marcel Proust - Sodoma e Gomorra (Cap I - Decerto, se ali houvesse)

em busca do tempo perdido

volume IV
Sodoma e Gomorra



Capítulo Primeiro
Segunda Parte


continuando...

   Decerto, se ali houvesse apenas Oriane, a Sra. de Saint-Euverte não teria necessidade de incomodar-se, pois o convite fora feito de viva voz e, além disso, aceito com essa enganosa e encantadora boa vontade, no ciclo da qual triunfam os acadêmicos de cuja casa o candidato sai em nado e sem duvidar que possa contar com seu voto. Mas não havia somente ela. O príncipe de Agrigento compareceria? E a Sra. de Durfort? Aliás para vigiar sua colheita, a Sra. de Saint-Euverte julgara mais útil e conveniente transportar-se em pessoa; insinuante com uns, imperativa com outros, apresentava para todos, com palavras encobertas, divertimentos inimagináveis não poderiam ver de novo, e a cada um prometia que haveria de achar em sua casa a pessoa a quem desejava, ou o personagem que precisava encontrar. E essa espécie de função de que estava investida uma vez por ano; assim como certas magistraturas da antiguidade; de pessoa que no dia seguinte dará o mais considerável garden-party da temporada conferia-lhe momentânea autoridade. Suas listas estavam feitas e terminadas, de modo que, percorrendo os salões da princesa com lentidão para derramar sucessivamente em cada ouvido:

- Não se esqueça de mim amanhã -, ela desfrutava da glória efêmera de desviar os olhos, continuando sorrir; se percebia alguma feiosa a evitar ou algum fidalgote que uma camaradagem escolar fizera ser admitido em casa de "Gilbert", e cuja presença em seu garden-party não somaria nada. Preferia não lhe falar para por a dizer em seguida:

- Fiz meus convites de modo verbal e infelizmente não o encontrei. -

   Assim ela, simples Saint-Euverte, fazia com seus esquadrinhadores uma triagem na composição do sarau da princesa. E procedendo dessa forma, julgava-se uma verdadeira duquesa de Guermantes. É preciso dizer que esta última tampouco dispunha, como se poderia acreditar, da liberdade de seus sorrisos e cumprimentos. Por um lado sem dúvida, quando os recusava, era voluntariamente: 

- Mas ela me aborrece - dizia. - Será que vou ser obrigada a lhe falar do seu sarau que durara uma hora inteira?

   Viu-se passar uma duquesa bem morena, cuja feiura e estupidez assim como certos desvios de conduta, tinham exilado não da sociedade, mas de algumas intimidades elegantes.

- Ah! - sussurrou a Sra. Guermantes, com o golpe de vista preciso e desabusado do conhecedor a quem se mostra uma joia falsa - recebe-se isto, aqui?! -

   Pelo simples aspecto da dama meio estragada, e cujo rosto estava coberto de sinais de pelos negros, a Sra. de Guermantes avaliava a medíocre cotação daquele sarau. Fora educada com aquela dama, mas cessara todas as relações com ela; só respondeu ao seu cumprimento com uma inclinação de cabeça bastante seca.

- Não compreendo - disse-me, como para se desculpar que Marie-Gilbert nos convide com toda essa lama. Pode-se dizer que aqui há de todas as paróquias. Era muito mais bem organizado na casa Mélanie Pourtales. Podia ter o Santo Sínodo e o Templo do Oratório, se bem lhe aprouvesse, mas pelo menos não nos mandavam convidar nesses dias. -

   Mas, em grande parte, era por timidez, por medo de ter uma cena com o marido, que não queria que ela convidasse artistas, etc. ("Marie-Gilbert" protegia muitos deles, e era preciso tomar cuidado para não ser abordada por uma ilustre cantora alemã), e também por um certo receio quanto ao nacionalismo, que a duquesa, possuidora como o Sr. de Charlus do espírito dos Guermantes, desprezava do ponto de vista mundano (pois agora, para glorificar o Estado-Maior, faziam passar um general plebeu adiante de certos duques), mas ao qual, entretanto, como sabia que era considerada mal pensante, fazia amplas concessões, a ponto de recear ter de estender a mão a Swann nesse ambiente anti-semita. Sob este aspecto, logo se sentiu tranquilizada, pois soube que o príncipe não deixara Swann entrar e tivera com ele "uma espécie de altercação". Não se animava a ter de conversar em público com o "pobre Charles", a quem preferia estimar na intimidade.

- E agora aquela outra ali? - exclamou a Sra. de Guermantes ao ver uma pequena dama de ar um tanto estranho, num vestido negro de tal modo simples que se poderia dizer tratar-se de uma desgraçada, lhe fazer, bem como o seu marido, um grande cumprimento. Não a reconheceu e, tendo dessas insolências, empertigou-se como que ofendida e olhou sem responder: - Quem é essa pessoa, Basin? - indagou com ar de espanto, ao passo que o Sr. de Guermantes, para desculpar a descortesia da mulher, cumprimentava a dama e apertava a mão do marido.

- Mas é a Sra. de Chaussepierre, você foi muito descortês. Não sei o que Chaussepierre. O sobrinho da velha Chanlivault.

- Não conheço nada disso. Quem é a mulher, por que está me cumprimentando? 

- Ora, você conhece muito bem, é a filha da Sra. de Charleval, Henriette Montmorency.

- Ah, mas conheci muito bem a sua mãe, ela era encantadora, muito espirituosa. Por que se casou com essas pessoas que eu não conheço? Você disse que ela se chama Sra. de Chaussepierre? - disse Oriane, escondendo esta última palavra com ar interrogativo e como se receasse enganar-se. 

   O duque lançou-lhe um olhar duro. 

- Chamar-se Chaussepierre não é tão ridículo como você parece imaginar! O velho Chaussepierre era irmão da Charleval, de quem já falei, da Sra. de Sennecour e da viscondessa du Merlerault. São pessoas de elite. 

- Ah, chega! - exclamou a duquesa, que, como domadora, não queria dar nunca a impressão de que se intimidava com os olhares devoradores da fera. - Basin, você faz a minha alegria. Não sei aonde foi descobrir esses nomes, mas dou-lhe todos os meus cumprimentos. Se eu ignorava Chaussepierre, li Balzac, você não é o único, e li até Labiche. Aprecio Chanlivault, não odeio Charleval, mas confesso que du Merlerault é a obra-prima. Além disso, confessemos que Chaussepierre também não está! Você colecionou tudo isso, não é possível! O senhor que deseja escrever um livro - disse-me ela deveria conservar Charleval e du Merlerault; - não encontrará nada melhor. 

- Ele vai é simplesmente arranjar um processo e irá para a cadeia; você lhe dá muitos maus conselhos, Oriane. - Espero que ele tenha à sua disposição pessoas mais jovens, se tem vontade de pedir maus conselhos, e sobretudo de segui-los. Mas se não tenciona fazer coleção pior que um livro! - 

   Bem longe de nós, uma altiva e maravilhosa moça destacava suavemente num vestido branco, todo diamantes e tule. A Sra. de Guermantes a observou enquanto ela falava diante de todo um grupo fascinado pela sua beleza.

- A sua irmã por toda parte é a mais bonita e está encantadora esta noite - disse ela, enquanto pegava uma cadeira, ao príncipe de Chimay que passava. O coronel de Froberville (seu tio era o general do mesmo nome) veio sentar-se ao nosso lado, assim como o Sr. de Bréauté, ao passo que o Sr. de Vaugoubert, requebrando-se (por um excesso de polidez que conservava mesmo quando jogava tênis, onde à força de pedir licença às pessoas notáveis, antes de rebater a bola, fazia inevitavelmente com que o seu lado perdesse a partida), voltava para junto do Sr. de Charlus (até então quase embrulhado na saia imensa da condessa Molé - que ele fazia profissão de admirar entre todas as mulheres), e por acaso no momento em que vários membros de uma nova missão diplomática em Paris cumprimentavam o barão. À vista de um jovem secretário de ar particularmente inteligente, o Sr. de Vaugoubert fixou no Sr. de Charlus um sorriso onde visivelmente desabrochava uma só pergunta. De bom grado, talvez, Sr. de Charlus comprometeria alguém; mas sentir-se ele próprio comprometido por esse sorriso que partia de outro e que só podia ter um sentido; o exasperou.

- Não sei absolutamente nada; peço-lhe que guarde sua curiosidade para si mesmo, pois ela me deixa mais que frio. Além disso, neste caso particular, o senhor comete um engano lamentável. Creio que este jovem é absolutamente o contrário. -

   Aqui, o Sr. de Charlus, irritado por ter sido denunciado por um tolo, não dizia a verdade. O secretário, se o barão tivesse dito a verdade, teria feito exceção naquela embaixada. De fato, ela era composta de personalidades bem diferentes, várias extremamente medíocres, de modo que, se buscassem o motivo pelo qual tinham sido escolhidas, só poderiam descobrir a inversão. E, pondo à testa dessa pequena Sodoma diplomática um embaixador que, ao contrário, apreciava as mulheres com um exagero cômico de galã de revista e que manobrava em regra o seu batalhão de travestis, pareciam ter obedecido à lei dos contrastes. Apesar do que via, não acreditava na inversão. Disto deu provas imediatas, casando sua irmã com um encarregado de negócios a quem julgava, erroneamente, um conquistador. Desde então, tornou-se um tanto incômodo e foi em breve substituído por uma Excelência nova que assegurou a homogeneidade do conjunto. Outras embaixadas procuraram rivalizar com esta, mas não puderam disputar-lhe o prêmio (como no concurso geral, onde um certo liceu o obtém sempre), e foi necessário que se passassem mais de dez anos antes que, tendo-se introduzido adidos heterogêneos naquele todo tão perfeito, uma outra pudesse enfim arrebatar-lhe a funesta palma e andar na frente. 
   Tranquilizada quanto ao receio de ter de conversar com Swann, a Sra. de Guermantes sentia apenas curiosidade sobre o assunto da conversa que ele tivera com o dono da casa. 

- Sabe qual foi o assunto? - indagou o duque ao Sr. de Bréauté.

- Ouvi dizer - respondeu este que era a respeito de um pequeno ato que o escritor Bergotte fizera representar na casa deles. Aliás, era arrebatador. Mas parece que o ator se caracterizara de Gilbert, a quem o Sr. Bergotte quisera de fato retratar. 

- Vejam só, teria me divertido muito ao ver Gilbert ser representado - disse a duquesa sorrindo sonhadoramente. 

- Foi sobre essa pequena representação - continuou o Sr. de Bréauté, avançando sua mandíbula de roedor que Gilbert pediu explicações a Swann, que se contentou em responder, o que todo mundo achou muito espirituoso:

"- Mas de jeito nenhum, não se assemelha em nada com o senhor; o senhor é muito mais ridículo!" 

- Aliás, parece - prosseguiu o Sr. de Bréauté que aquela pecinha era deliciosa. A Sra. Molé estava presente e se divertiu bastante. 

- Como? A Sra. Molé vai lá? - perguntou a duquesa espantada. 

- Ah, certamente foi Mémé quem arrumou isso! 

- É o que sempre acaba acontecendo com esses locais. Todo mundo, um belo dia, começa a ir lá e eu, que me excluo voluntariamente por princípio, fico sozinha a me aborrecer no meu canto. - 

   Desde a narrativa que acabava de lhe fazer o Sr. de Bréauté, a duquesa de Guermantes (se não sobre o salão Swann, ao menos sobre a hipótese de encontrar-se com Swann dentro de um instante) já havia adotado, como se vê, um novo ponto de vista.

- A explicação que o senhor nos dá - disse ao Sr. de Bréauté o coronel de Froberville - é totalmente forjada. Tenho meus motivos para dizê-lo. O príncipe, pura e simplesmente, fez um escândalo diante de Swann, dando-lhe a entender, como diziam nossos pais, que não mais se mostrasse em sua casa, considerando as opiniões que defende. E, no meu parecer, o tio Gilbert teve mil vezes razão, não só de fazer aquela cena, mas deveria ter rompido há mais de seis meses com um dreyfusista confesso. 

   O pobre Sr. de Vaugoubert, transformado desta vez de péssimo jogador de tênis numa verdadeira bola de tênis que arremessamos descuidados, viu-se projetado na direção da duquesa de Guermantes, a quem, deu suas homenagens. Foi bastante mal recebido, pois Oriane convencida de que todos os diplomatas ou políticos de seu convívio eram uns palermas.

continua na página 35...
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