quarta-feira, 17 de abril de 2024

Marcel Proust - A Fugitiva (Mágoa e Esquecimento - j)

em busca do tempo perdido

volume VI
A Fugitiva

Capítulo I
Mágoa e Esquecimento


continuando...

   Mas, depois de ter mandado essa carta, veio-me de súbito a suspeita: que, quando Albertine me escrevera: Eu teria ficado muito feliz por voltar se me tivesse escrito diretamente, só o fizera porque eu não lhe escrevera diretamente e, mesmo que eu o tivesse feito, ainda assim ela não teria voltado; que ficasse contente por saber que Andrée estava em minha casa, e depois seria minha mulher.
   Contanto que ela, Albertine, ficasse livre, pois agora podia, há oito dias já, eliminando as precauções de cada dia que eu havia tomado durante mais de seis meses em Paris, entregar-se a seus vícios e fazer aquilo que, minuto após minuto, eu tinha impedido. Eu dizia comigo que provavelmente, lá longe, ela empregava mal sua liberdade, e é claro que essa ideia que eu formava me parecia triste, mas continuava geral, nada me mostrando de particular e, pelo número indefinido das amantes possíveis que ela me fazia supor, sem me deixar fixar-me em nenhuma, arrastava o meu espírito numa espécie de movimento perpétuo não isento de dor, porém de uma dor que, pela ausência da imagem concreta, tornava-se suportável. Mas deixou de sê-lo e se tornou atroz à chegada de Saint-Loup. Antes de contar por que as suas palavras me fizeram tão infeliz, devo narrar um incidente que se coloca imediatamente antes de sua visita e cuja recordação a seguir me perturbou de tal modo que enfraqueceu, se não a impressão penosa que me causou a conversa com Saint-Loup, ao menos o alcance prático dessa conversa. Tal incidente consistiu no que se segue.
   Ardendo de impaciência por ver Saint-Loup, eu o esperava na escada (o que não teria podido fazer se minha mãe estivesse presente, pois isso era o que ela mais detestava no mundo depois de "falar da janela"), quando ouvi as seguintes palavras:

- Como, não sabe despedir alguém que lhe desagrada? Não é difícil. Por exemplo, não tem mais que esconder os objetos que ele deve levar; então, no momento em que seus patrões o chamam, e estão com pressa, ele não acha nada e perde a cabeça; minha tia dirá a você, furiosa: "Mas o que é que ele está fazendo?" Quando ele chegar atrasado, todos estarão enfurecidos, e ele não trará o que é preciso. Depois de quatro ou cinco vezes, pode ficar certo de que ele será despedido, principalmente se você tiver o cuidado de sujar às escondidas o que ele deve manter limpo; e mil outros ardis desse tipo... - Eu permanecia mudo de espanto, pois essas palavras maquiavélicas e cruéis eram pronunciadas pela voz de Saint-Loup. Ora, eu sempre o considerara como um sujeito tão bom, tão piedoso para com os desgraçados, que aquilo me causava o efeito de que ele estivesse representando o papel de Satanás; mas não podia estar falando no seu próprio nome.

- Mas sempre é necessário que todos ganhem a sua vida - disse o seu interlocutor, que então avistei e que era um dos lacaios da duquesa de Guermantes.

- Que lhe importa, desde que você se saia bem? - respondeu maldosamente Saint-Loup. - Você, além disso, terá o prazer de arranjar um bode expiatório. Poderá muito bem derramar-lhe o tinteiro na libré, quando ele estiver servindo um jantar de gala, enfim, não lhe dar um minuto de trégua, de tal modo que ele acabará preferindo ir embora. De resto, vou lhe dar uma mãozinha: direi a minha tia que admiro a paciência de você em servir com um moleirão daqueles e tão mal vestido. -

   Apresentei-me, Saint-Loup veio ao meu encontro, porém minha confiança nele estava abalada do que acabara de ouvir, tão diferente daquele que eu conhecia. E me perguntei se alguém é capaz de agir tão cruelmente com um infeliz não havia representado o papel de traidor a meu respeito, em sua missão junto à Sra. Bontemps. A reflexão serviu, sobretudo, para não me fazer considerar o seu fracasso como o de que eu não podia ter êxito, se ele me deixasse. Mas, enquanto ele estava a meu lado, era todavia no Saint-Loup de outrora e principalmente ao amigo que de deixar a Sra. Bontemps, que eu pensava. Primeiro, ele me disse:  

- Acho que deveria ter te telefonado mais vezes, mas diziam sempre que não estavas.

   Mas onde meu sofrimento se tornou insuportável, foi quando ele me disse:

- Vou começar por onde o meu último despacho te deixou, depois de ter passado uma espécie de galpão, entrei na casa e, no fim de um longo corredor, fizera entrar numa sala. -

   A essas palavras de galpão, corredor e sala, e antes mesmo que acabassem de ser pronunciadas, meu coração foi atravessado com mais rápido do que se estivesse em contato com uma corrente elétrica, pois a força que às vezes dá volta à Terra em um segundo não é a eletricidade, mas a dor. Repeti, renovando com prazer o choque, essas palavras de galpão, corredor depois que Saint-Loup foi embora! Num galpão a gente pode se esconder. E, naquela sala, quem sabe o que Albertine fazia quando a tia se ausentava. Mas como? Eu então me havia representado a casa em que morava Albertine não podendo ter galpão nem sala? Não, eu absolutamente não a representara a mim, a não ser como um lugar vago. Tinha sofrido uma primeira vez quando individualizara geograficamente o lugar em que ela estava, quando soubera em vez de estar em dois ou três locais possíveis, ela se achava na Touraine; palavras da porteira de seu apartamento haviam marcado em meu coração, num mapa, o lugar onde enfim era preciso sofrer. Mas uma vez habituado à idéia que ela se encontrava numa casa da Touraine, eu não tinha visto essa casa; nunca me viera à imaginação esta horrível idéia de sala, de galpão e de corredor; agora pareciam estar à minha frente, na retina de Saint-Loup que os vira; os cômodos em que Albertine passava, andava, vivia, esses cômodos em particular não tinham uma infinidade de cômodos possíveis que se haviam destruído uns aos outros. À essas palavras de galpão, corredor e sala, pareceu-me loucura ter deixado Albertine, oito dias nesse lugar maldito cuja existência (e não a simples possibilidade)estava prestes de me ser revelada. Ai de mim! Quando Saint-Loup me disse, igualmente naquela sala, ouvira cantarem a meia voz num aposento ao lado, e que era Albertine quem cantava, compreendi desesperado que, livre de mim, afinal, ela era livre. Havia reconquistado a sua liberdade. E eu, que pensava que ela viria tomar o lugar de Andrée! Minha dor se transformou em cólera contra Saint-Loup.

- Foi tudo o que pedi que evitasses, que ela soubesse que ias!

- Se achas que era fácil! Tinha assegurado que ela não se achava lá. Oh, sei muito bem que não estás contrariado comigo, senti-o perfeitamente nos teus telegramas. Porém és injusto; fiz o que pude. - 

   Solta de novo, tendo deixado a jaula de onde, em minha casa, eu ficava dias inteiros sem chamá-la ao meu quarto, ela retomara para mim todo o seu brio; tornara-se outra vez aquela que todos seguiam, o pássaro maravilhoso dos primeiros dias.

- Enfim, resumamos. Quanto ao dinheiro, não sei o que te dizer. Falei a uma senhora que me pareceu tão delicada que receei ofendê-la. Ora, ela não exclamou "Oh!" quando falei em dinheiro. E até, um pouco depois, disse-me que estava comovida por ver que nos compreendíamos tão bem. No entanto, tudo o que ela disse a seguir era tão delicado, tão sublime, que me parecia impossível que ela tivesse dito, quanto ao dinheiro que lhe oferecia: "Nós nos compreendemos tão bem", pois no fundo eu agia como um patife. 

- Mas talvez ela não tenha te compreendido, talvez não haja escutado, deverias ter repetido, pois certamente isto é que daria certo. 

- Mas como queres que ela não tenha escutado? Falei-lhe como te falo agora, ela não era surda nem louca.

- E ela não fez nenhuma observação?

- Nenhuma.

- Deverias ter-lhe dito mais uma vez. 

- Como querias que eu lhe dissesse mais uma vez? Logo ao entrar, vendo a fisionomia dela, disse comigo que te havias enganado, que me mandavas fazer uma tremenda gafe, e era extremamente difícil oferecer-lhe dinheiro assim. Fi-lo todavia para te obedecer, convencido de que me poria porta a fora.

- Mas ela não o fez. Portanto, ou não tinha ouvido e seria necessário recomeçar, ou poderias continuar a esse respeito. 

- Dizes: "Ela não tinha ouvido" porque estás aqui, mas, repito, se tivesses assistido à nossa conversa... Não havia nenhum rumor. E eu falei brutalmente. Não é possível que ela não tenha compreendido. 

- Mas afinal, ela está bem persuadida de que sempre quis desposar a sua sobrinha?

- Não; quanto a isso, se queres a minha opinião, ela não acreditava que tivesses em absoluto a intenção de casar. Disse-me que tu mesmo havias confessado à sobrinha que desejavas abandoná-la. Não sei nem mesmo se agora ela esteja bem convencida de que desejas casar. 

   Isto me tranquilizava um pouco, mostrando que eu estava menos humilhado, logo, capaz de ser amado ainda, mais livre para tentar um passo decisivo. Contudo, sentia-me atormentado. 

- Estou aborrecido, pois vejo que não estás satisfeito.

- Sim, estou comovido, reconhecido pela tua gentileza, mas me parece que terias podido...

- Fiz o melhor que pude. Outro qualquer não poderia ter feito mais, nem mesmo o que fiz. Experimenta outra pessoa.

- Não, de jeito nenhum. Mas, se soubesse, não teria te enviado, mas o fracasso de tua providência não me impede de tentar outra.-

   Fazia-lhe censuras: ele tentara prestar-me um serviço e não lograra êxito. Ao sair, Saint-Loup tinha cruzado com algumas moças que entravam. Eu já havia suposto muitas vezes que Albertine conhecia moças naquele lugar, mas era a primeira vez que isso me torturava. É preciso crer de fato que a Natureza concede ao nosso espírito a secreção de um contraveneno natural que aniquila as suposições que fazemos a um tempo sem trégua e sem perigo; porém coisa alguma me imunizava contra aquelas moças que Saint-Loup tinha encontrado.  

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