volume V
A Prisioneira
continuando...
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Albertine calçava sapatos pretos, ornados de brilhantes, que Françoise, com raiva, chamava de tamancos, semelhantes aos que, pela janela do salão, ela vira que a Sra. de Guermantes usava em casa à noite, assim como, tempos depois, Albertine usou sandálias, umas de pele de cabrito, douradas, outras de chinchila, e cuja vista lhe satisfazia porque umas e outras eram como sinais (que outros calçados não seriam) de que ela morava comigo. Também possuía coisas que não provinham de mim, como um belo anel de ouro, no qual eu admirava as asas abertas de uma águia.
- Foi presente da minha tia - disse ela. - Apesar de tudo, ela às vezes é gentil. Isto me envelhece,
pois ganhei-o quando fiz vinte anos.
Por todas essas lindas coisas, Albertine era de um gosto bem mais vivo do que a duquesa,
porque, como todo obstáculo aplicado a uma posse (como, para mim, a doença, que me tornava as
viagens tão difíceis e tão desejáveis), a pobreza, mais generosa que a opulência, concede às mulheres
bem mais do que o vestido que elas não podem comprar, o desejo desse vestido, e que é conhecimento
verdadeiro, detalhado e aprofundado dele. Ela, porque não pudera comprar essas coisas, eu, porque,
mandando fazê-las, procurava lhe dar prazer, éramos como esses estudantes que conhecem de antemão
os quadros que anseiam ver em Dresde ou em Viena. Ao passo que as mulheres ricas, no meio da
multiplicidade de seus chapéus e vestidos, são como esses visitantes a quem a ida a um museu, não
sendo precedida de qualquer desejo, dá somente uma sensação de entorpecimento, fadiga e tédio.
Aquela touca, aquela capa de zibelina, aquele peignoir de Doucet com mangas de forro cor-de-rosa assumiam para Albertine, que os avistara, cobiçara e, graças ao exclusivismo e à minúcia que
caracterizam o desejo, os havia a um tempo isolado do resto num vazio sobre o qual se destacava às
maravilhas o forro ou a écharpe, e conhecido em todas as suas partes-e para mim, que fora à casa da
Sra. de Guermantes tentar fazer-me explicarem que consistia a particularidade, a superioridade e o
chique da coisa, e o feitio inimitável do grande fabricante -, uma importância, um encanto que certamente
não tinham para a duquesa, saciada antes mesmo de estar com apetite, ou mesmo para mim se os
houvesse visto alguns anos antes, acompanhando esta ou aquela mulher elegante numa de suas
aborrecidas turnês pelas lojas de costureiras. Decerto, Albertine se tornava, aos poucos, uma mulher
elegante. Pois, se cada coisa que eu assim mandava fazer para ela era no gênero a mais bonita, com
todos os refinamentos que nela poriam a Sra. de Guermantes ou a Sra. Swann, dessas coisas ela
começava a ter muitas. Mas pouco importava, desde que ela as havia amado primeiro e isoladamente.
Quando nos apaixonamos por um pintor, depois por outro, podemos afinal ter por todo o museu uma
admiração que não é glacial, pois composta de amores sucessivos, cada qual exclusivo em seu tempo, e
que por fim se reuniram e se reconciliaram.
Aliás, ela não era frívola; lia muito quando estava sozinha e também lia para mim quando estava
comigo. Tornara-se extremamente inteligente. Dizia, aliás enganando-se:
- Fico assombrada ao pensar que sem você teria permanecido estúpida. Não negue; você me
abriu um mundo de ideias de que eu nem suspeitava, e o pouquinho em que me tornei devo-o apenas a
você.
Da mesma forma, aliás, referira-se à minha influência sobre Andrée. Uma ou outra sentiriam algo
por mim? E, em si mesmas, quem eram Albertine e Andrée? Para sabê-lo, seria preciso imobilizar-vos,
não viver nesta espera perpétua de vós em que passais sempre outras, seria preciso não mais amar-vos
para vos fixar, não mais conhecer vossa interminável e sempre desconcertante chegada, ó jovens, ó raio
sucessivo no turbilhão em que palpitamos ao tornar a ver-vos reaparecer, ao mal reconhecer-vos na
vertiginosa velocidade da luz. Talvez ignorássemos essa velocidade e tudo nos pareceria imóvel, caso
uma atração sexual não nos fizesse correr para vós, gotas de ouro sempre dissemelhantes e que sempre
ultrapassam a nossa expectativa. De cada vez, uma moça se assemelha tão pouco ao que era na vez
anterior (fazendo em pedaços, desde que a vemos, a lembrança que havíamos conservado e o desejo
que nos propúnhamos) que a estabilidade de natureza que lhe atribuímos é apenas fictícia e para a
comodidade da linguagem. Disseram-nos que uma jovem é terna, amorosa, dotada dos mais delicados
sentimentos. Nossa Imaginação acredita-o sob palavra e, quando nos aparece pela primeira vez, na
moldura ondulada dos cabelos louros, o disco do seu rosto rosado, quase chegamos a temer que essa
irmã excessivamente virtuosa nos arrefeça por sua própria virtude, e jamais possa ser para nós a amante
com que havíamos sonhado. Pelo menos, quantas confidências lhe fazemos desde o primeiro momento,
fiados nessa nobreza de coração, quantos projetos feitos em conjunto! Porém, alguns dias depois,
lamentamos ter confiado tanto, pois a jovem rosada nos surge, da segunda vez, com expressões de
deslavada sensualidade. Nas faces sucessivas que, após a pulsação de alguns dias, apresenta-nos a
rósea luz interceptada, nem mesmo é garantido que um movimento exterior a essas moças não haja
modificado o seu aspecto, e isso poderia ter ocorrido com as minhas jovens de Balbec. Elogiam para nós
a doçura e a pureza de uma virgem.
Mas, depois disso, sentimos que algo mais apimentado nos saberia melhor e aconselhamo-la a se
mostrar mais picante. Em si própria, qual das duas ela era mais? Talvez nem uma nem outra, mas capaz
de aceder a tantas possibilidades diversas na corrente vertiginosa da vida. Com outra, cujo atrativo
residia em algo de implacável (que contávamos dobrar à nossa maneira), como, por exemplo, a terrível
saltadora de Balbec, que nos seus pulos passava raspando pelas cabeças dos velhos apavorados, que
decepção quando, na nova face mostrada por essa figura, no momento em que lhe dizíamos umas
ternuras exaltadas pela recordação de tantas durezas para com os outros, nós a ouvíamos dizer, para
início de conversa, que era tímida, que nunca sabia dizer nada sensato a alguém da primeira vez, de
tanto medo que tinha, e que só depois de quinze dias é que poderia conversar tranquilamente conosco! O
aço se transformara em algodão, já não teríamos nada para tentar dobrar visto que por si mesma ela
perdera toda consistência. Por si mesma, mas talvez por culpa nossa, pois as palavras ternas que
havíamos dirigido à Dureza talvez lhe houvessem, mesmo que não o tivesse feito por cálculo interessado,
sugerido fazer-se meiga. (O que nos desolava, contudo, mas enfim não era tão desajeitado, pois o
reconhecimento por tanta doçura ia talvez nos forçar a mais que o enlevo diante da crueldade domada.)
Não digo que não há de chegar um dia em que, mesmo a essas moças luminosas, não atribuamos
caracteres tão marcantes, mas é que elas terão deixado de nos interessar, que a sua entrada já não será
para o nosso coração o aparecimento que ele aguardava fosse diferente e que o deixa perturbado a cada
vez por encarnações novas. Sua imobilidade decorrerá da nossa indiferença, que as entregará ao
julgamento do espírito.
Este, aliás, não decidirá de modo muito mais categórico, pois, após ter julgado que tal defeito
predominante numa, estava felizmente ausente da outra, verá que tal defeito possuía, em contrapartida,
uma qualidade preciosa. De modo que, do julgamento falso da inteligência, a qual só entra em jogo
quando deixamos de nos interessar, sairão definidas certas naturezas de moças, estáveis, mas que não
nos informarão mais que as surpreendentes fisionomias aparecidas a cada dia, quando, na velocidade
estonteante da nossa espera, nossas amigas se apresentavam todos os dias, todas as semanas,
diversas demais para nos permitir, visto que jamais se interrompe a corrida, classificar, estabelecer
posições. Quanto aos nossos sentimentos, já falamos demais deles para repetir que, muitas vezes, um
amor não passa da associação de uma imagem de moça (que sem isso se nos tornaria rapidamente
insuportável) às batidas de coração inseparáveis de uma vã espera interminável, e de um "bolo" que a tal
senhorita nos deu. Tudo isso é verdade apenas para os jovens imaginativos que lidam com moças
mutáveis.
Desde o tempo a que chegou a nossa narrativa, parece, soube-o depois, que a sobrinha de Jupien
havia mudado de opinião sobre Morel e o Sr. de Charlus. Meu chofer, vindo em reforço do amor que ela
sentia por Morel, gabara-lhe, como se de fato as houvesse no violinista, delicadezas infinitas nas quais,
de resto, ela estava bastante inclinada a acreditar. E, por outro lado, Morel não cessava de lhe comentar
o papel de carrasco que o Sr. de Charlus exercia sobre ele e que ela atribuía à malvadez, sem adivinhar
que era amor. Aliás, via-se obrigada a constatar que o Sr. de Charlus assistia tiranicamente a todas as
suas entrevistas. E, corroborando isto, ela ouvia as senhoras elegantes falarem da maldade atroz do
barão. Ora, não fazia muito que seu julgamento mudara completamente. Descobrira em Morel (sem por
isso deixar de amá-lo) abismos de maldade e de perfídia, aliás compensadas por uma doçura frequente e
uma real sensibilidade, e, no Sr. de Charlus, uma insuspeitada e imensa bondade, mesclada a durezas
que ela não conhecia. Assim, não pudera fazer um juízo mais definido sobre o que eram, cada um em si
mesmo, o violinista e seu protetor, do que eu sobre Andrée, a quem no entanto via todos os dias, e sobre
Albertine, que morava comigo.
continua na página 27...
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Leia também:
Volume 1
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
A Prisioneira (Prefácio)A Prisioneira (Albertine calçava sapatos pretos)
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