A Hora da Estrela
continuando...
– Você endoidou, criatura? Pintar-se como uma endemoniada?
Você até parece mulher de soldado.
– Sou moça virgem! Não sou mulher de soldado e marinheiro.
– Me desculpe eu perguntar: ser feia dói?
– Nunca pensei nisso, acho que dói um pouquinho. Mas eu lhe
pergunto se você que é feia sente dor.
– Eu não sou feia!!! — gritou Glória.
Depois tudo passou e Macabéa continuou a gostar de não
pensar em nada. Vazia, vazia. Como eu disse, ela não tinha anjo da
guarda. Mas se arranjava como podia. Quanto ao mais, ela era quase
impessoal. Glória perguntou-lhe:
– Por que é que você me pede tanta aspirina? Não estou
reclamando, embora isso custe dinheiro.
– É para eu não me doer.
– Como é que é? Hein? Você se dói?
– Eu me doo o tempo todo.
– Aonde?
– Dentro, não sei explicar.
Aliás cada vez mais ela não se sabia explicar. Transformara-se
em simplicidade orgânica. E arrumara um jeito de achar nas coisas
simples e honestas a graça de um pecado. Gostava de sentir o tempo passar. Embora não tivesse relógio, ou por isso mesmo, gozava o
grande tempo. Era supersônica de vida. Ninguém percebia que ela
ultrapassava com sua existência a barreira do som. Para as pessoas
outras ela não existia. A sua única vantagem sobre os outros era
saber engolir pílulas sem água, assim a seco. Glória, que lhe dava
aspirinas, admirava-a muito, o que dava a Macabéa um banho de
calor gostoso no coração. Glória advertiu-a:
– Um dia a pílula te cola na parede da garganta que nem
galinha de pescoço meio cortado, correndo por aí.
Um dia teve um êxtase. Foi diante de uma árvore tão grande
que no tronco ela nunca poderia abraça-la. Mas apesar do êxtase ela
não morava com Deus. Rezava indiferentemente. Sim. Mas o
misterioso Deus dos outros lhe dava às vezes um estado de graça.
Feliz, feliz, feliz. Ela de alma quase voando. E também vira o disco-voador. Tentara contar a Glória mas não tivera jeito, não sabia falar e
mesmo contar o quê? O ar? Não se conta tudo porque o tudo é um
oco nada.
Às vezes a graça a pegava em pleno escritório. Então ela ia ao
banheiro para ficar sozinha. De pé e sorrindo até passar (parece-me
que esse Deus era muito misericordioso com ela: dava-lhe o que lhe
tirava). Em pé pensando em nada, os olhos moles.
Nem Glória era uma amiga: só colega. Glória roliça, branca e
morna. Tinha um cheiro esquisito. Porque não se lavava muito, com
certeza. Oxigenava os pelos das pernas cabeludas e das axilas que
ela não raspava. Olímpico: será que ela é loura embaixo também?
Em relação a Macabéa, Glória tinha um vago senso de
maternidade. Quando Macabéa lhe parecia murcha demais, dizia:
– E esse ar é por causa de?
Macabéa, que nunca se irritava com ninguém, arrepiava-se
com o hábito que Glória tinha de deixar a frase inacabada. Glória
usava uma forte água-de-colônia de sândalo e Macabéa, que tinha
estômago delicado, quase vomitava ao sentir o cheiro. Nada dizia porque Glória era agora a sua conexão com o mundo. Este mundo
fora composto pela tia, Glória, o Seu Raimundo e Olímpico — e de
muito longe as moças com as quais repartia o quarto. Em
compensação se conectava com o retrato de Greta Garbo quando
moça. Para minha surpresa, pois eu não imaginava Macabéa capaz
de sentir o que diz um rosto como esse. Greta Garbo, pensava ela
sem se explicar, essa mulher deve ser a mulher mais importante do
mundo. Mas o que ela queria mesmo ser não era a altiva Greta
Garbo cuja trágica sensualidade estava em pedestal solitário. O que
ela queria, como eu já disse era parecer com Marylin. Um dia, em
raro momento de confissão, disse a Glória quem ela gostaria de ser.
E Glória caiu na gargalhada:
– Logo ela, Maca? Vê se te manca!
Glória era toda contente consigo mesma: dava-se grande valor.
Sabia que o sestro molengole de mulata, uma pintinha marcada
junto da boca, só para dar uma gostosura, e um buço forte que ela
oxigenava. Sua boca era loura. Parecia até um bigode. Era uma
safadinha esperta mas tinha força de coração. Penalizava-se com
Macabéa mas ela que se arranjasse, quem mandava ser tola? E
Glória pensava: não tenho nada a ver com ela.
continua pág 68...
"Clarice Lispector deixou vários depoimentos sobre a sua produção literária. Em alguns, parecia se defender do estranhamento que causava em leitores e críticos.
Ela tinha consciência de sua diferença. Desde pequena, ao ver recusadas as histórias que mandava para um jornal de Recife, pressentia que era porque nenhuma “contava os fatos necessários a uma história”, nenhuma relatava um acontecimento. Sabia também, já adulta, que poderia tornar mais “atraente” o seu texto se usasse, “por exemplo, algumas das coisas que emolduram uma vida ou uma coisa ou romance ou um personagem”.
Entretanto, mesmo arriscando-se ao rótulo de escritora difícil, mesmo admitindo ter um público mais reduzido, ela não conseguiria abrir mão de seu traçado: “Tem gente que cose para fora, eu coso para dentro”. Ela se afastou dos “escritores que por opção e engajamento defendem valores morais, políticos e sociais, outros cuja literatura é dirigida ou planificada a fim de exaltar valores, geralmente impostos por poderes políticos, religiosos etc., muitas vezes alheios ao escritor”, em nome de uma outra forma de questionar a realidade e nela intervir, através da literatura."
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"Clarice Lispector deixou vários depoimentos sobre a sua produção literária. Em alguns, parecia se defender do estranhamento que causava em leitores e críticos.
Ela tinha consciência de sua diferença. Desde pequena, ao ver recusadas as histórias que mandava para um jornal de Recife, pressentia que era porque nenhuma “contava os fatos necessários a uma história”, nenhuma relatava um acontecimento. Sabia também, já adulta, que poderia tornar mais “atraente” o seu texto se usasse, “por exemplo, algumas das coisas que emolduram uma vida ou uma coisa ou romance ou um personagem”.
Entretanto, mesmo arriscando-se ao rótulo de escritora difícil, mesmo admitindo ter um público mais reduzido, ela não conseguiria abrir mão de seu traçado: “Tem gente que cose para fora, eu coso para dentro”. Ela se afastou dos “escritores que por opção e engajamento defendem valores morais, políticos e sociais, outros cuja literatura é dirigida ou planificada a fim de exaltar valores, geralmente impostos por poderes políticos, religiosos etc., muitas vezes alheios ao escritor”, em nome de uma outra forma de questionar a realidade e nela intervir, através da literatura."
Clarisse Fukelman, Professora de Literatura Brasileira da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
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A Hora da Estrela - Esqueci de dizer
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