Estudos de Costumes
- Cenas da Vida Privada
Memórias de duas jovens esposas
SEGUNDA PARTE
LV – A CONDESSA DE L’ESTORADE À SRA. GASTÃO
15 de julho
Querida Luísa, mando-te esta carta por um mensageiro antes de eu mesma voar para o chalé. Acalma-te. Tua última carta me pareceu tão insensata que acreditei poder, em semelhante circunstância, confiar tudo a Luís; tratava-se de te salvar, a ti mesma. Se, como tu, empregamos horríveis meios, o resultado é tão feliz que tenho certeza de tua aprovação. Desci ao ponto de fazer intervir a polícia, mas isso é um segredo entre o prefeito, nós e tu. Gastão é um anjo! Eis os fatos: o irmão dele, Luís Gastão, morreu em Calcutá a serviço de uma companhia comercial, no momento em que ia regressar à França, rico, feliz e casado. A viúva de um negociante inglês era-lhe a mais brilhante fortuna. Depois de dez anos de trabalhos empreendidos, a fim de mandar o necessário para a vida do irmão, a quem adorava e a quem nunca falava de suas decepções, nas suas cartas, para não afligi-lo, ele foi tomado de surpresa pela falência do famoso Halmer. A viúva ficou arruinada. O golpe foi tão violento que Luís Gastão perdeu a cabeça. Com o enfraquecimento da moral, a doença assenhorou-se do corpo, e ele sucumbiu em Bengala, onde fora salvar os restos da fortuna de sua pobre mulher. Esse querido capitão depositara num banco uma primeira quantia de trezentos mil francos para mandá-la ao irmão, mas o banqueiro, arrastado pela falência de Halmer, tirou-lhe esse último recurso. A viúva de Luís Gastão, essa bela mulher que tomaste por tua rival, chegou a Paris com dois filhos, que são teus sobrinhos, e sem vintém. As joias da mãe mal e mal deram para pagar a passagem da família. As informações que Luís Gastão dera ao banqueiro para mandar o dinheiro a Maria-Gastão serviram à viúva para achar o antigo domicílio de teu marido. Como o teu Gastão desapareceu sem dizer para onde ia, mandaram a sra. Luís Gastão à casa de d’Arthez, a única pessoa que podia dar informações sobre Maria-Gastão. D’Arthez foi tanto mais generoso em atender às primeiras necessidades dessa jovem senhora, por ter Luís Gastão, há quatro anos, no momento de seu casamento, indagado de seu irmão junto ao nosso célebre escritor, por sabê-lo amigo de Maria. O capitão pedira a d’Arthez o meio de fazer essa importância chegar com segurança às mãos de Maria-Gastão. D’Arthez respondera que Maria-Gastão se tornara rico com o seu casamento com a baronesa de Macumer. A beleza, esse magnífico presente da mãe, salvara nas Índias como em Paris os dois irmãos de qualquer infortúnio. Não achas isso uma história comovente? D’Arthez escreveu, como era natural, ao teu marido, contando o estado em que se achavam a sua cunhada e os seus sobrinhos e informando-o das generosas intenções que o acaso fizera abortar, mas que o Gastão da Índia tivera para com o Gastão de Paris. O teu querido Gastão, como deves imaginar, acorreu precipitadamente a Paris. É essa a história de sua primeira excursão. Durante cinco anos, ele economizara cinquenta mil francos, sobre a renda que o forçaste a receber, e os empregou em duas inscrições de mil e duzentos francos de renda cada uma, em nome dos sobrinhos; depois mandou mobiliar esse apartamento, onde mora tua cunhada, prometendo-lhe três mil francos cada trimestre. Eis a história dos seus trabalhos no teatro e do prazer que lhe causou o êxito de sua primeira peça. Assim, pois, a sra. Gastão não é tua rival e usa muito legitimamente o teu nome. Um homem nobre e delicado, como Gastão, devia ocultar-te essa aventura, por temor de tua generosidade. O teu marido não considera seu o que tu lhe deste. D’Arthez leu-me a carta que ele lhe escreveu para pedir-lhe que fosse uma das testemunhas do vosso casamento: Maria-Gastão nela diz que sua felicidade seria completa se não tivesse dívidas para te deixar pagar e se fosse rico. Uma alma virgem não é senhora de não ter tais sentimentos; estes ou existem, ou não existem; e quando existem concebem-se as suas delicadezas e exigências. É muito simples que o teu Gastão tenha querido dar em segredo, ele próprio, uma existência conveniente à viúva do irmão, quando essa mulher lhe ia mandar cem mil escudos de sua própria fortuna. Ela é bonita, tem grande coração, maneiras distintas, mas não tem espírito. Essa mulher é mãe; já se deixa ver que me liguei a ela assim que a vi, vendo-a com um filho pelo braço e com o outro vestido como baby de um lorde. Tudo para os filhos! Está escrito nela nas menores coisas. Assim, longe de te zangares com o teu adorado Gastão, tudo o que tens são novos motivos para amá-lo! Entrevi-o, é o moço mais encantador de Paris. Oh! Sim, queridinha, bem compreendi ao vê-lo que uma mulher o amasse loucamente: ele tem a fisionomia da sua alma. Em teu lugar, eu levaria para o chalé a viúva e os dois filhos, fazendo construir para eles uma deliciosa casa de campo, e faria deles meus filhos! Acalma-te, pois, e por tua vez prepara essa surpresa para Gastão.
LVI – A SRA. GASTÃO À CONDESSA DE L’ESTORADE
Ah! Minha bem-amada, ouve a terrível, a fatal, a insolente frase do imbecil La Fayette ao seu senhor, ao seu rei: É demasiado tarde![1]. Oh! Minha vida, minha bela vida! Qual o médico que me restituirá? Golpeei-me mortalmente. Ai de mim! Não era eu um fogo-fátuo destinado a extinguir-se depois de ter brilhado? Meus olhos são duas torrentes de lágrimas e... não posso chorar senão longe dele... Fujo-lhe, e ele me procura. Meu desespero é todo interior. Dante esqueceu meu martírio no seu Inferno. Vem ver-me morrer.
continua pág 381...
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[1] É demasiado tarde! (ll est trop tard!): esta frase famosa foi pronunciada por La Fayette quando, presidente da comissão instalada na Prefeitura de Paris durante a Revolução de Julho de 1830, recebia a carta pela qual o rei Carlos X revogava seus decretos de 25 do mesmo mês, cujo caráter reacionário tinha provocado a revolução. Poucos dias depois, o duque de Orléans, chefe do ramo secundogênito, ocupou o trono sob o nome de Luís Filipe.
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Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844. Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).
Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava. De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)
Balzac, Honoré de, 1799-1850.
A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac; orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São Paulo: Globo, 2012.
(A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1 0.000 kb; ePUB
1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série.
12-13086 cdd-843
Índices para catálogo sistemático:
1. Romances: Literatura francesa 843
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