terça-feira, 16 de abril de 2024

Marcel Proust - O Caminho de Guermantes (1a.Parte - O silêncio... )

em busca do tempo perdido

volume III
O Caminho de Guermantes


Primeira Parte


continuando...


   O silêncio, bem mais relativo, que reinava no pequeno quarto militar onde me achava há pouco foi quebrado: a porta se abriu, e Saint-Loup, deixando cair o monóculo, entrou vivamente.

- Ah, Robert, como a gente passa bem no seu aposento. - disse-lhe eu -; como seria bom se me fosse permitido jantar e dormir aqui.

   E, com efeito, se isso não fosse proibido, que repouso sem tristeza eu teria desfrutado ali, protegido por aquela atmosfera de tranquilidade, vigilância e alegria que entrelinham mil vontades reguladas e sem inquietação, mil espíritos despreocupados, nessa grande comunidade que é uma caserna onde, tendo o tempo tomado a forma da ação, o triste sino das horas era substituído pela mesma alegre fanfarra desses apelos cuja sonora lembrança estava permanentemente em suspensão, difusa e pulverulenta, sobre as calçadas da cidade voz segura de ser ouvida, e musical, porque não era apenas o comando da autoridade à obediência, mas também da sabedoria à felicidade.

- Ah, você gostaria mais de dormir aqui, junto a mim, do que sair sozinho para o hotel. - disse Saint-Loup rindo.

- Oh, Robert, você é cruel por levar isso na ironia. - disse eu -, pois sabe que é impossível e que lá vou sofrer tanto.

- Muito bem! Você me lisonjeia. -tornou ele -, pois justamente agora tive essa ideia por mim mesmo, e sei que você gostaria de ficar aqui esta noite. Era precisamente isto o que eu tinha ido pedir ao capitão.

- E ele permitiu?! exclamei.

- Sem nenhuma dificuldade.

- Oh, eu o adoro! 

- Não; é demais. Agora, deixe-me chamar meu ordenança para que ele se ocupe do nosso jantar. - acrescentou, enquanto eu me desviava para ocultar as lágrimas.

   Várias vezes entraram um ou outro dos companheiros de Saint-Loup. Ele os enxotava:

- Vamos, deem o fora!

   Eu lhe pedia que os deixasse ficar.

- Não, vão aborrecê-lo; são criaturas completamente ignorantes que só sabem falar de corridas, quando não do tratamento dos animais. E depois, mesmo para mim, estragariam estes instantes tão preciosos que tanto desejei. Note bem que, se falo da mediocridade dos meus camaradas, não é que todo militar seja desprovido de intelectualidade. Bem longe disso. Temos um comandante que é um homem admirável. Deu um curso em que a história militar é tratada como uma demonstração, como uma espécie de álgebra. Mesmo esteticamente, é de uma beleza alternativamente indutiva e dedutiva e à qual você não seria insensível.

- Não é o capitão que me permitiu ficar aqui?

- Não, graças a Deus, pois o homem que você "adora" por tão pouco é o maior idiota que a Terra já suportou. É perfeito para se ocupar do rancho e do uniforme de seus comandados; passa horas com o sargento-mor e o alfaiate. Eis a sua mentalidade. Aliás, despreza muito, como todos, o admirável comandante de que lhe falo. Ninguém frequenta este, porque é franco-maçom e não vai ao confessionário. Jamais o príncipe de Borodino receberia em sua casa este pequeno-burguês. O que é também um grande atrevimento da parte de um homem cujo bisavô era um pobre sitiante e que, sem as guerras de Napoleão, seria igualmente granjeiro. De resto, ele percebe um pouco a situação dúbia de que desfruta na sociedade. Mal vai ao Jockey este pretenso príncipe, de tanto que se sente constrangido. - acrescentou Robert, que, levado pelo mesmo espírito de imitação a adotar as teorias sociais de seus mestres e os preconceitos mundanos dos parentes, sem o perceber, ao amor da democracia o desdém pela nobreza do Império. 

   Eu examinava a foto de sua tia, e a ideia de que Saint-Loup, possuindo esse retrato, talvez me pudesse dá-lo me fez querer-lhe ainda mais e desejar prestar-lhe mil serviços, que me pareciam uma ninharia em troca dessa foto. Pois ela era como um encontro a mais, acrescentando aos que já tivera com a Sra. de Guermantes; melhor ainda, um encontro prolongado como se, por um brusco progresso de nossas relações, ela parasse ao meu lado, de chapéu de jardineiro, e tivesse me deixado olhar, pela primeira vez, com atenção, aquela polpa de rosto, aquela curva da nuca, o ângulo de sobrancelhas (até então ocultas para mim pela rapidez de sua passagem, pelo aturdimento de minhas impressões, pela inconsistência da lembrança); e sua contemplação, tanto como a do colo e dos braços de uma mulher que eu nunca houvesse visto senão de vestido afogado, representava para mim uma descoberta voluptuosa, um favor. Essas linhas que me parecia quase ser proibido olhar, poderia estudá-las ali como num tratado da única geometria que valesse para mim. Mais tarde, encarando Robert, percebi que ele era também um pouco feito a foto de sua tia, e por um mistério quase tão emocionante para mim, visto que, se seu rosto não fora diretamente produzido pelo rosto dela, ambos todavia possuíam uma origem comum. As feições da duquesa de Guermantes que estavam arquivadas na minha visão de Combray, o nariz em bico de falcão, os olhos penetrantes, pareciam ter servido igualmente para recortar - em outro exemplar análogo e delgado, de pele mais fina o rosto de Robert, quase possível de se sobrepor ao de sua tia. Observava nele, com inveja, os traços característicos dos Guermantes, dessa raça que permanecera tão particular no meio do mundo, onde ela não se perde e se conserva isolada em sua glória divinamente ornitológica, pois parece surgida, nas eras mitológicas, da união de uma deusa com um pássaro.
   Robert, sem atinar com o motivo, estava comovido com a minha emoção. Esta, aliás, aumentava com o bem-estar causado pelo calor do fogo e pelo champanhe que, ao mesmo tempo, orvalhava de gotas de suor a minha testa e de lágrimas os meus olhos; ele regava perdizes; eu as comia com o encanto de um profano qualquer, quando encontra, numa certa existência que não conhecia, aquilo que achara incompatível com ela (por exemplo, um livre-pensador preparando um jantar requintado num presbitério). E, na manhã seguinte, ao despertar, fui lançar pela janela de Saint-Loup, que, situada bem alto, dava para toda a região, um olhar de curiosidade para travar conhecimento com minha vizinha, a campina, que não pudera observar na véspera por ter chegado muito tarde, à hora em que ela já dormia na noite. Porém, por mais cedo que ela tivesse despertado, entretanto não a vi ao abrir o postigo, como se pode vê-la da janela de um castelo, para os lados do brejo, ainda meio envolta no branco e suave manto matinal de névoa, que não me deixava perceber quase nada. Mas sabia que, antes que os soldados que se ocupavam dos cavalos no pátio tivessem terminado a sua tarefa, ela o teria despido. Enquanto esperava, só podia ver uma delgada colina, erguendo contra o quartel o seu dorso já desprovido de sombras, esguio e rugoso. Através das cortinas borrifadas de geada, não tirava os olhos dessa estranha que me encarava pela primeira vez. Mas, quando tomei o hábito de ir ao quartel, a consciência de que a colina ali se achava, por conseguinte mais real, mesmo quando não a via, do que o hotel de Balbec, do que nossa casa em Paris, nos quais pensava como se pensa nos ausentes, nos mortos, isto é, sem quase acreditar em sua existência, fez com que, mesmo sem me aperceber de tal, sua forma reverberada sempre se perfilasse acima das menores impressões que recebi em Doncieres e, para começar por aquela manhã, acima da boa impressão de calor que me proporcionou o chocolate preparado pelo ordenança de Saint-Loup naquele quarto confortável, que tinha o aspecto de um centro ótico para olhar a colina (a idéia de fazer coisa diversa de olhá-la e passear por ela tornara-se impossível devido à mesma névoa que ali havia). Embebendo a forma da colina, associado ao gosto do chocolate e à trama inteira de meus pensamentos de então, aquele nevoeiro, sem que eu absolutamente pensasse nele, vinha molhar todos os meus pensamentos com aquele tempo, como determinado ouro inalterável e maciço ficara aliado às minhas impressões de Balbec, ou como a presença vizinha das escadas exteriores de grés enegrecido conferiam algo de grisalho às minhas impressões de Combray. Aliás, o nevoeiro não permaneceu até muito tarde pela manhã, pois o sol começou a lançar inutilmente contra ele algumas setas que o cobriram de brilhantes, acabando por vencê-lo. A colina pôde oferecer o seu cimo acinzentado aos raios que, uma hora depois, quando desci para a cidade, davam aos vermelhos das folhas das árvores; aos rubros e azuis dos cartazes eleitorais pregados nos muros, uma exaltação que a mim mesmo me reanimava e me fazia bater, cantando, as pedras do calçamento, sobre as quais me continha para não pular de alegria.
   Mas, desde o segundo dia, precisei ir dormir no hotel. E já sabia, por antecipação, que fatalmente iria sentir-me triste. A tristeza era como um aroma irrespirável que, desde o meu nascimento, exalava para mim todo quarto novo, ou seja, todo quarto: naquele que de ordinário ocupava, eu não me achava presente, meu pensamento permanecia em outra parte, e, em seu lugar, enviava apenas o Hábito. Mas não podia encarregar esse criado menos sensível de se ocupar de meus assuntos em uma região nova, onde eu o precedia, onde chegava sozinho, onde me era necessário fazer entrar em contato com as coisas aquele "Eu" que só encontrava com anos de intervalo, mas sempre o mesmo, não tendo crescido desde Combray, desde minha primeira chegada a Balbec, chorando, sem poder ser consolado, junto de uma mala desfeita.
   Ora, eu me enganara. Não tive tempo de ficar triste, pois não estive sozinho um só instante. É que me restava do palácio antigo um excedente de luxo, inaproveitável num hotel moderno, e que, destacado de toda utilidade prática, adquirira em sua ociosidade uma espécie de vida: corredores que arrepiavam caminho, dos quais a gente cruzava a todo momento as idas e vindas sem qualquer objetivo, vestíbulos compridos como corredores e ornamentados como salões, que tinham antes o aspecto de morar ali do que de fazer parte da casa, que fora impossível fazer entrar em algum apartamento, mas que rondavam o meu e logo vieram oferecer-me a sua companhia espécie de vizinhos ociosos, mas não barulhentos, fantasmas subalternos do passado a quem haviam permitido residir sem rumor à porta dos quartos que se alugavam, e que, cada vez que os encontrava em meu caminho, davam mostras de uma silenciosa deferência. Em suma, a ideia de uma residência, simples continente da nossa vida atual e que só nos preserva do frio e da vista dos outros, era absolutamente inaplicável àquela morada, conjunto de peças tão reais como uma colônia de pessoas, é verdade que de uma vida silenciosa, mas que a gente era obrigado a encontrar, a evitar e a acolher quando voltava. Procurava-se não importunar, e não se podia olhar sem respeito o grande salão que adquirira, desde o século XVIII, o hábito de se estender entre suas colunas de ouro velho, sob as nuvens de teto pintado. E a gente era tomado de uma curiosidade mais familiar pelas pequenas peças que, sem nenhum cuidado de simetria, corriam ao redor dele, inumeráveis, espantadas, fugindo em desordem até o jardim, para onde desciam tão facilmente por três degraus embotados.
   Se quisesse sair ou entrar sem tomar o elevador, nem ser visto na escada principal, uma outra, menor, privativa, que não servia mais, estendia-me seus degraus tão habilmente dispostos, um após o outro, que parecia haver em sua gradação uma proporção perfeita do tipo daquela que nas cores, nos perfumes e nos sabores muitas vezes nos excitam uma sensualidade peculiar. Mas a que existe em subir e descer, fora-me preciso vir até aqui para conhecê-la, como outrora a uma estância alpestre para saber que o ato de respirar, habitualmente não percebido, pode constituir uma volúpia permanente. Recebi essa isenção de esforço que apenas nos proporcionam as coisas que usamos longamente, quando pousei os pés pela primeira vez nesses degraus, familiares antes de serem conhecidos, como se possuíssem, talvez depositada, a eles incorporada pelos senhores de antigamente a quem acolhiam todos os dias, a antecipada suavidade de hábitos que eu ainda não adquirira e que até só poderiam se enfraquecer quando os tivesse tornado meus. Abri um quarto, a porta dupla se fechou atrás de mim, os cortinados fizeram entrar um silêncio sobre o qual senti uma espécie de embriagadora realeza; uma lareira de mármore ornada de cobres cinzelados, que seria errôneo pensar estivesse representando unicamente a arte do Diretório, me proporcionava fogo, e uma pequena poltrona de pés baixos me ajudou a aquecer-me tão confortavelmente como se estivesse sentado no tapete. As paredes estreitavam a peça, separando-a do resto do mundo e, para deixar entrar nela e nela encerrar o que a tornava completa, afastavam-se diante da biblioteca, reservavam o vão da cama a cujos lados umas colunas sustentavam ligeiramente o teto elevado da alcova. E o quarto se prolongava no sentido da profundidade em dois gabinetes tão amplos como ele, o último dos quais tinha suspenso à parede, para perfumar o recolhimento que se vinha buscar, um voluptuoso rosário de grãos de íris; as portas, se as deixava abertas enquanto me retirava para este último refúgio, não se contentavam em triplicá-lo, sem que deixasse de ser harmonioso, e não proporcionavam ao meu olhar apenas o prazer da extensão, mas ainda acrescentavam ao prazer de minha solidão, que permanecia inviolável e deixava de ser confinada, o sentimento de liberdade. Esse reduto dava para um pátio, belo, solitário, que me senti feliz de ter como vizinho quando, na manhã seguinte, o descobri cativo entre seus altos muros para onde não dava nenhuma janela, e tendo apenas duas árvores amareladas, suficientes para conferir uma suave doçura ao céu puro.
   Antes de me deitar, quis sair do quarto para explorar todo o meu feérico domínio. Caminhei seguindo uma galeria longa que, sucessivamente, me fez homenagem de tudo o que possuía para me ofertar, caso eu estivesse sem sono, uma poltrona colocada a um canto, uma espineta, um vaso de faiança azul cheio de cinerárias sobre um consolo, e, em um quadro antigo, o fantasma de uma dama de outrora, os cabelos empoados entrelaçados de flores azuis e tendo na mão um buquê de cravos. Tendo chegado ao fim, sua parede maciça, onde não se abria porta alguma, disse-me singelamente: "Agora é preciso voltar, mas vês que estás em tua casa", ao passo que o tapete macio ajuntava, para não ficar atrás, que, se eu não dormisse aquela noite, poderia muito bem vir descalço, e que as janelas sem postigos que olhavam para a campina me asseguravam que passariam uma noite em claro e que, voltando à hora que eu quisesse, não tinha a temer acordar alguém. E por trás de uma cortina descobri apenas um pequeno gabinete que, detido pela parede e não podendo se salvar, ali se escondera, todo embaraçado, e olhava-me assustado com seu olho de boi que o luar tornara azul. Deitei-me, mas a presença do edredom, das colunatas, da pequena lareira, pondo minha atenção num grau em que ela não estava em Paris, impediu-me de me entregar ao ramerrão habitual de meus devaneios. E como é esse estado particular de atenção o que envolve o sono e age sobre ele, modifica-o e o põe no mesmo plano de tal ou qual série de nossas recordações, as imagens que encheram meus sonhos naquela primeira noite foram tomadas de empréstimo a uma memória inteiramente diversa daquela a que de hábito meu sono recorria. Se fosse tentado, ao adormecer, a deixar-me arrastar de novo para a minha memória de costume, a cama à qual não estava habituado, a suave atenção que era obrigado a prestar às minhas posições quando me revirava bastariam para retificar ou manter o novo fio de meus sonhos. Ocorre com o sono o mesmo que se dá com a percepção do mundo exterior. Basta uma alteração em nossos hábitos para fazê-lo poético, basta que, ao nos despirmos, adormeçamos sem querer sobre a cama, para que as dimensões do sono sejam mudadas e que se sinta a sua beleza. A gente desperta, vê que são quatro horas no relógio, são apenas quatro horas da manhã, mas acreditamos que o dia inteiro já passou, de tanto que aquele sono de minutos, e que não buscamos, nos pareceu descer do céu, em virtude de algum direito divino, enorme e pleno como o globo de ouro de um imperador. De manhã, aborrecido com a ideia de que meu avô estava pronto e que me esperavam para ir para os lados de Méséglise, despertei com a fanfarra de um regimento que todos os dias passava debaixo de minhas janelas. Mas duas ou três vezes e o afirmo, pois não se pode descrever muito bem a vida dos homens se esta não for banhada no sono em que mergulha e que, noite após noite, a contorna como uma península é rodeada pelo mar -, o sono interposto foi em mim bastante resistente para sustentar o choque da música, e não ouvi nada. Nos outros dias, ele cedeu um instante; mas, ainda aveludada por ter dormido, minha consciência, como esses órgãos previamente anestesiados, para os quais uma cauterização, primeiramente insensível, só é percebida no fim e feito uma leve queimadura, apenas era tocada suavemente pelas pontas agudas dos pífaros que a acariciavam como um vago e fresco chilreio matinal; e, depois dessa breve interrupção em que o silêncio se fizera música, recomeçava ele com o meu sono, antes mesmo que os dragões tivessem acabado de passar, ocultando-me as últimas florações desabrochadas do ramalhete sonoro e impetuoso. E a zona da minha consciência a que haviam aflorado seus caules jorrantes era tão estreita, tão cercada de sono, que mais tarde, quando Saint-Loup me perguntava se havia escutado a música, eu não tinha certeza de que o som da fanfarra não fosse tão imaginário como o que eu ouvia durante o dia erguer-se, ao menor ruído, sobre o calçamento da cidade. Talvez o tivesse ouvido somente em sonhos, pelo receio de ser acordado ou, ao contrário, de não acordar e não ver o desfile. Pois muitas vezes, quando eu permanecia dormindo no momento em que, ao contrário, pensava que o ruído me despertaria, julgava estar acordado, durante uma hora, enquanto dormia, e representava para mim mesmo, sobre a tela diminuta do meu sono, os diversos espetáculos de que ele me privava, mas aos quais eu tinha a ilusão de estar assistindo.

continua na página 37...
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