terça-feira, 24 de setembro de 2024

Gupeva - V (Ao alvorecer do dia)

Maria Firmina dos Reis


Gupeva

V 


      Ao alvorecer do dia rebentou a tempestade há tanto ameaçada. O mar rugia com assustadora fúria, o vento raivoso sibilava por entre as enxárcias do infante de Portugal que, não obstante as ordens recebidas, não podia levantar âncora sem grande perigo de despedaçar-se todo de encontro a algum arrecife. Abrigado no ancoradouro ainda o comandante temia o furor da tempestade. O navio arfava inquieto: joguete das ondas, ele estalava como se houvera de desjuntar-se todo. Um sopro mais violento da tempestade e o pobre lenho seria aniquilado. A chuva desprendia-se em torrentes; o raio sibilava ameaçador; o mar era um lençol negro, e de sinistro aspecto. O mais corajoso tremia; só Alberto parecia insensível à voz do temporal. Sua fronte ardente, seus olhos requeimados pela vigília da noite, seu coração opresso pelo pressentimento de terrível sucesso, inquieto pelo temor de alguma desgraça irremediável, abatido, angustiado pela não aparição de seu louco e infeliz amigo, parecia não compreender a grandeza do perigo que os ameaçava. O mar cuspia-lhe, irritando as faces, o vento insinuava-se, rumorejando, por entre as madeixas de seus negros cabelos, e ele não atendia, nem aos insultos do mar, nem o raivoso perpassar do vento.
      Alberto pensava em Gastão. Tinha visto amanhecer sem que Gastão voltasse ao navio: era preciso que já não existisse para assim deixar de cumprir sua promessa!
      Alberto comunicou ao comandante seus receios, e o desassossego da sua alma: toda a oficialidade, e toda a marinhagem sentiram interesse pelo jovem francês.
     Ao meio-dia a tempestade serenou: o mar tornou-se calmo e pacífico, o vento conteve-se nos seus limites. Agora o azul das nuvens refletia-se nas águas da imensa baía, e as vagas se moviam mansamente, aniladas, e risonhas, como um ligeiro sorriso. Então o comandante deu suas ordens; um escaler bem tripulado recebeu o oficial português, que um momento depois pesquisava ansioso vestígios do seu infeliz colega. Incansável, devassava o moço todos os subúrbios da pequena habitação, incansável, percorria ele todas as sendas, todas as devesas, todos os recônditos lugares daquele vasto terreno; era embalde. Extenuaram de cansaço, ele e um velho marinheiro, que o seguia; enquanto outros investigavam outros lugares. Alberto chegou ao alto do outeiro, onde na noite antecedente deu-se a cena que acabamos de narrar.
     Oh! Que doloroso espetáculo!
     Sentado no tronco de uma árvore estava um velho tupinambá; brandia em suas mãos um tacape ensanguentado: a seus pés estavam dois cadáveres!... Reclinadas as faces ambas para a terra, Alberto não pôde reconhecer seu amigo, senão pelo uniforme de Marinha, que o sangue tingira, e que as águas, que se desprenderam à noite, haviam ensopado, e enxovalhado. O outro cadáver era o de uma mulher... Bela devia ser ela; porque seus cabelos longos, e ondeados, fáceis aos beijos da viração da tarde, esparsos assim sobre o seu corpo, davam-lhe o aspecto de uma Madalena.
     Alberto exclamou: — que horror! e cobriu o rosto com as mãos, caiu por terra.
     Depois erguendo-se com ímpeto raivoso e aproximando-se do índio, que imóvel parecia aguardá-lo, disse-lhe, apontando para o seu infeliz amigo:

 — Bárbaro!... Por que o assassinaste?

     Gupeva, pois era ele, soltou uma gargalhada, estridente, e descomposta, que lhe tornou o aspecto sinistro, e medonho, e disse:

 — Ah! Minha filha... não a vedes? – E de novo pôs-se a brincar com o tacape.

— Louco! – murmurou Alberto, – a minha vingança seria um crime.

     Os seus companheiros de pesquisa foram-se pouco e pouco reunindo, ele voltou pálido, e com a mágoa no coração para junto do cadáver do desditoso Gastão.
     Ninguém curou mais do louco.
    Quando iam porém deitar os cadáveres nas sepulturas, e viram o rosto da mulher adormecida ao lado do jovem oficial, voltaram para cima, todos os circunstantes agruparam-se, e curiosos procuravam ver tanta formosura. Alberto, surpreso, exclamou:

— Que extraordinária semelhança!

 — Eles não podiam deixar de ser irmãos, – exclamaram unanimemente os companheiros de Alberto.

     Ah! Era Épica, era a virgem das florestas, era o anjo dos sonhos mentirosos de Gastão; era ela que acabava de conduzi-lo a Deus, e que ia descer com ele à sepultura. Formosa ainda na palidez de morte, Épica levou Alberto a perdoar os extremos de seu infeliz amigo.
     Alberto ajoelhou-se à orla da sepultura, e orou; todos imitaram, e aquelas regiões selvagens guardaram respeitoso silêncio enquanto durou o ato religioso, enquanto a oração subiu da terra ao trono do Senhor.
     E quando eles deixaram no sepulcro aqueles que tão extremamente se adoravam, e quando lembraram-se novamente do velho tupinambá, e o olharam, ele tinha a face em terra, e o tacape lhe havia escapado das mãos.
    Então um velho marinheiro, tocando-o com a ponta do pé, e voltando--lhe o corpo para o lado, disse:

— Está morto!
Fim...

continua na página 163...
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Gupeva - V (Ao alvorecer do dia)
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Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luís, no Maranhão, no dia 11 de outubro de 1825. Filha bastarda de João Pedro Esteves e Leonor Felipe dos Reis. Foi uma escritora brasileira, considerada a primeira romancista brasileira.
Em 1847, aos 22 anos, ela foi aprovada em um concurso público para a Cadeira de Instrução Primária, sendo assim a primeira professora concursada de seu Estado. Maria demonstrou sua afinidade com a escrita ao publicar “Úrsula” em 1859, primeiro romance abolicionista, primeiro escrito por uma mulher negra brasileira.
O romance “Úrsula” consagrou Maria Firmina como escritora e também foi o primeiro romance da literatura afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afrodescendente. Em 1887, no auge da campanha abolicionista, a escritora publica o livro “A Escrava”, reforçando sua postura antiescravista.

Ao aposentar-se, em 1880, fundou uma escola mista e gratuita. Maria morre aos 92 anos, na cidade de Guimarães, no dia 11 de novembro de 1917.
Em 1975, Maria recebe uma homenagem de José Nascimento Morais Filho que publica a primeira biografia da escritora, Maria Firmina: fragmentos de uma vida.
A importância da obra de Firmina, primeira escritora negra de que se tem notícia em nossa literatura, se deve ao pioneirismo na denúncia da opressão a negros e mulheres no Brasil do século XIX. Antes do Navio negreiro de Castro Alves, declamado pela primeira vez em 1868, Firmina já descrevia em seu livro Úrsula, de 1859, a crueldade do tráfico de pessoas sequestradas na África e transportadas nos porões dos “tumbeiros”. Neste mesmo romance, a crítica da escritora abrange o retrato lamentável da condição feminina da época ao delinear personagens como o pai de Tancredo ou o comendador, tiranos não só de escravos, mas também de mulheres. 
Maria Firmina foi uma voz profundamente legítima e dissonante que não encontrou acolhida e reconhecimento em seu tempo. Longe de fracassar, essa voz ressoa hoje cheia de significado, recriminando males que ainda assombram e permeiam nossa sociedade.

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