quinta-feira, 18 de abril de 2024

Marcel Proust - O Tempo Recuperado (Ah, se Albertine tivesse vivido)

em busca do tempo perdido

volume VII
O Tempo Recuperado



continuando...

   Ah, se Albertine tivesse vivido, como seria doce, nas noites em que eu fosse jantar no centro da cidade, marcar um encontro ao ar livre, sob as arcadas! A princípio, eu não distinguiria nada, teria a emoção de crer que ela faltara ao encontro; quando, de repente, veria destacar-se da parede negra um de seus caros vestidos grises, seus olhos risonhos que tinham me avistado, e poderíamos passear abraçados sem que ninguém nos visse ou incomodasse, e a seguir voltar para casa. Ai de mim!, estava sozinho, com a impressão de ir fazer uma visita de vizinho no campo, como as visitas que Swann nos fazia após o jantar, sem dar com transeuntes na escuridão de Tansonville, no pequeno caminho de sirga, até a rua do Saint-Esprit, mais do que eu agora, em ruas transformadas em sinuosos caminhos rústicos, entre Sainte-Clotilde e a rua Bonaparte. Além disso, como nenhuma moldura, tornada invisível, constrangia mais esses fragmentos de paisagem, à noite, quando o vento soprava rajadas glaciais, eu me julgava, bem mais do que em Balbec, à beira do mar revolto dos meus sonhos de antigamente; e mesmo outros elementos da natureza, que até então não existiam em Paris, davam a ilusão de que, ao descer do trem, acabava-se de chegar para as férias no campo. Por exemplo: o contraste de luz e sombra, bem próximo, no chão, nas noites de luar. Este compunha efeitos que as cidades não conhecem, e até em pleno inverno; seus raios estendiam-se na neve, que nenhum trabalhador removia mais, no bulevar Haussmann, tal como nas geleiras dos Alpes. As silhuetas das árvores refletiam-se, nítidas e puras, sobre essa neve de ouro azulado, com a delicadeza que têm em certas pinturas japonesas ou em determinados fundos das telas de Rafael; alongavam-se no chão, ao pé da própria árvore, como as vemos com frequência ao vivo, pelo ocaso, quando o sol poente inunda e torna espelhantes as campinas em que as árvores se erguem a intervalos regulares. Mas, por um requinte de delicadeza deliciosa, a campina em que se desenvolviam essas sombras de árvores, leves como almas, era um prado paradisíaco, não verde, mas de um branco tão brilhante, devido aos raios de luar que incidiam sobre a neve de jade, que dir-se-ia que essa campina era tecida unicamente de pétalas de pereiras em flor. E, nas praças, as divindades das fontes públicas, com o jato gelado a lhes sair das mãos, pareciam estátuas de matéria dupla, para cuja execução o artista quisera juntar, exclusivamente, o bronze ao cristal. Naqueles dias excepcionais, todas as casas estavam às escuras. Mas ao contrário, na primavera, de vez em quando, burlando os regulamentos da polícia, uma residência particular, ou apenas o andar de um prédio, ou até somente um aposento num hotel, sem ter fechado seus postigos, dando a impressão de sustentar-se sozinho sobre as trevas impalpáveis, como projeção puramente luminosa, uma aparição sem consistência. Se a mulher de alguém erguesse bem alto os olhos, se distinguia nessa penumbra dourada, nessa noite em que se perdia o observador e ela própria parecia reclusa num misterioso encanto velado de uma visão oriental. Depois, seguia-se em frente nada mais interrompia a higiênica e monótona passada rústica na escuridão.
   Lembrei-me de que há muito não revia nenhuma das pessoas de que trato nesta obra. Apenas, em 1914, durante os dois meses que passara em Paris tinha avistado o Sr. de Charlus e visto Bloch e Saint-Loup, este último somente por duas vezes. A segunda vez fora com certeza aquela em que se mostrara mais natural, desmanchando todas as impressões pouco agradáveis de insinceridade que me causara na minha estadia em Tansonville, a que me referi, e reconhecera - todas as belas qualidades de outrora. Na primeira vez em que o vi após a declaração de guerra, ou seja, no começo da semana imediata, enquanto Bloch exibia o exaltado nacionalismo, Saint-Loup, assim que Bloch nos deixou, excedera em auto ironias, porque não voltara ao serviço, e eu fiquei meio chocado com a violência do seu tom. Saint-Loup voltava de Balbec. Soube mais tarde, indiretamente, que as tentativas baldadas junto ao gerente do restaurante. Este último devia sua posição ao que herdara do Sr. Nissim Bernard. Com efeito, não era outro senão o anterior jovem empregado que o tio de Bloch "protegia". Mas a riqueza lhe trouxera a virtude. De modo que foi em vão que Saint-Loup tentara seduzi-lo. Assim, em compensação enquanto os jovens se deixam levar, com a idade, pelas paixões; depois, afinal tomaram consciência, os adolescentes fáceis se tornam homens de princípios, contra os quais os Charlus, confiando em antigos relatos, porém demasiadamente tarde, se chocam desagradavelmente. Tudo é uma questão de cronologia.
   A falsidade não faz mais prudentes a quem os acreditou quando surge um novo rumor de bodas, de divórcio, ou um rumor político, para lhe dar crédito e difundi-lo. Não tinham acontecido quarenta e oito horas quando certos feitos me demonstraram que estava absolutamente equivocado na interpretação das palavras de Robert:

- Não! - exclamou ele com força, alegremente. -Todos os que não estão no fronte, seja qual for o motivo que deem, é porque não desejam ser mortos, é porque têm medo! - E, com o mesmo gesto de afirmação, mais enérgico ainda do que com que sublinhara o temor alheio, acrescentou: - E eu, se não me apresento ao serviço, é certamente por medo, e nada mais! -

   Eu já havia reparado, em pessoas, que a afetação de sentimentos louváveis não é a única desculpa, mas que são malvados, sendo que um pretexto mais novo é a exibição destes, de forma que ao menos não pareça ocultá-los. Além do mais, em Saint-Loup tal tendência fortalecida pelo seu hábito, quando cometia uma indiscrição ou fazia uma que lhe poderiam censurar, de proclamá-las dizendo que fora de propósito. Acredito, lhe viera de algum professor da Escola de Guerra em cujo interior vivera, pelo qual professava enorme admiração. Portanto, não senti qualquer constrangimento em interpretar essa tirada como a ratificação verbal de um sentimento que Saint-Loup preferia proclamar abertamente, visto que lhe ditara a conduta e sua abstenção na guerra que principiava.

- Quer dizer que ouviste dizer - perguntou-me ao ir embora que a tia Oriane ia se divorciar? Pessoalmente, não sei de nada. De vez em quando se fala disso, e eu ouvi anunciarem esse divórcio tão amiúde que espero que aconteça, para crer. Acrescento que seria perfeitamente compreensível; meu tio é um homem encantador, não só na sociedade, mas para os amigos, os parentes. E até, sob certos aspectos, tem mais coração que minha tia, que é uma santa, mas fá-lo sentir isso de maneira terrível. Apenas, é um marido péssimo, que nunca deixou de enganar a esposa, insultá-la, tratá-la com brutalidade, privá-la de dinheiro. Seria tão natural que ela o deixasse, que essa é uma razão para que a notícia seja verdadeira, mas também para que o não seja, pois sobram motivos para que a inventem e divulguem. E aliás, já que ela o suportou portanto tempo! Agora sei muito bem que existem coisas que anunciam erradamente, que são desmentidas, e que mais tarde se tornam verdadeiras. -

   Aquilo me fez pensar em perguntar-lhe se alguma vez cogitara casar-se com a Srta. de Guermantes. Teve um sobressalto e afirmou que não, que isso fora apenas um boato da sociedade, desses que nascem de tempos em tempos, ninguém sabe por quê, desaparecem como surgiram, e cuja falsidade não torna mais prudentes os que nele acreditaram; tão logo aparecem novos rumores de noivado ou divórcio, ou um boato político, eles creem e os divulgam.
   Saint-Loup dissera isto para brilhar na conversação, para ostentar originalidade psicológica, enquanto não estava certo de que seu alistamento seria aceito. Mas, nesse meio tempo, fazia o possível para que o fosse, revelando-se assim menos original, no sentido que julgava ser preciso emprestar ao termo, porém mais profundamente francês de Saint-André-des-Champs, mais em conformidade com tudo o que, por essa época, havia de melhor nos franceses de Saint-André-des-Champs, senhores, burgueses e servos submissos aos senhores ou revoltados contra eles, duas divisões igualmente francesas da mesma família, sub-ramificação Françoise e sub-ramificação Morel, de onde partiam duas flechas, para se reunirem de novo numa só direção, que era a fronteira.
   Bloch ficara encantado com a confissão de covardia de um nacionalista (que, aliás, o era bem pouco) e, como Saint-Loup lhe indagasse se iria partir, assumira ares de sumo sacerdote para responder: - Míope.
   Mas Bloch mudara completamente de opinião sobre a guerra alguns dias depois, quando veio me visitar, muito aflito. Apesar de "míope", fora dado como bom para o serviço militar. Acompanhava-o até sua casa quando Saint-Loup, que, para ser apresentado, no Ministério da Guerra, a um coroamento; tinha um encontro marcado com um antigo oficial:

- "O Sr. de Cambremer", disse-me a verdade, é de um velho conhecido de quem te falo. Tu conheces Cancan tão bem quanto eu. -

   Respondi que o conhecia, de fato, e também à sua esposa, e que apreciava muito. Mas estava de tal modo habituado, desde que os vira pela vez, a considerar a mulher como uma pessoa notável, apesar de tudo, conhecedora de Schopenhauer, pertencente, em suma, a um meio intelectual mais do que a seu grosseiro marido, que, a princípio, fiquei assombrado ao ouvir me responder:

- A mulher dele é idiota, abandono-a a ti. Mas ele é um homem excelente, bem dotado, e continua bastante agradável.-

   Pela "idiotice" de Saint-Loup sem dúvida entendia o desejo alucinado de frequentar a alta sociedade, o que esta não perdoa. Pelas qualidades do marido, sem dúvida, algumas lhe reconhecia a mãe ao proclamá-lo o melhor da família. A ele, pelo menos, interessavam as duquesas, mas, na verdade, tratava-se de uma inteligência diferente tanto da que caracteriza os pensadores, como a "inteligência" atribuída em público a um determinado homem rico "por ter sabido fazer sua fortuna". As palavras de Saint-Loup não me desagradavam, visto sugerirem que a presunção, vizinha da tolice e que a simplicidade tem um gosto pouco pronunciado e agradável. Não me fora dado, é verdade, saborear a do Sr. de Cambremer; justamente isto que faz com que uma pessoa seja tantas criaturas diferentes, forme as pessoas que a julgam, mesmo sem se levar em conta as diferenças do julgamento. Do Sr. de Cambremer eu só conhecera o escorço. E o sabor, que fora atestado por outras pessoas, era-me desconhecido.  


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