Albert Camus
A Peste
Os curiosos acontecimentos que são o objeto desta crônica ocorreram em 194..., .em Oran. Segundo a opinião geral, estavam deslocados, já que saíam um pouco do comum. À primeira vista, Oran é, na verdade, uma cidade comum e não passa de uma prefeitura francesa na costa argelina.
A própria cidade, vamos admiti-lo, é feia. com seu aspecto tranquilo, é preciso algum tempo para se perceber o que a torna diferente de tantas outras cidades comerciais em todas as latitudes. Como imaginar, por exemplo, uma cidade sem pombos, sem árvores e sem jardins, onde não se encontra o rumor de asas, nem o sussurro de folhas. Em resumo: um lugar neutro. Apenas no céu se lê a mudança das estações. A primavera só se anuncia pela qualidade do ar ou pelas cestas de flores que os pequenos vendedores trazem dos subúrbios: é uma primavera que se vende nos mercados. Durante o verão, o sol incendeia as casas muito secas e cobre as paredes de uma poeira cinzenta; então, só é possível viver à sombra das persianas fechadas. No outono, pelo contrário, é um dilúvio de lama. Os dias bonitos só chegam no inverno.
Uma forma cômoda de travar conhecimento com uma cidade é procurar saber como se trabalha, como se ama e como se morre. Na nossa pequena cidade, talvez por efeito do clima, tudo se faz ao mesmo tempo, com o mesmo ar frenético e distante. Quer dizer que as pessoas se entediam e se dedicam a criar hábitos. Nossos concidadãos trabalham muito, mas apenas para enriquecer. Interessam-se principalmente pelo comércio e ocupam-se, em primeiro lugar, conforme sua própria expressão, em fazer negócios. Naturalmente, apreciam prazeres simples, gostam das mulheres, de cinema e de banhos de mar. Muito sensatamente, porém, reservam os prazeres para os domingos e os sábados à noite, procurando, nos outros dias da semana, ganhar muito dinheiro. À tarde, quando saem dos escritórios, reúnem-se a uma hora fixa nos cafés, passeiam na mesma avenida ou instalam-se nas suas varandas. Os desejos dos mais velhos não vão além das associações de boulomanes1, os banquetes das amicales2 e os ambientes em que se aposta alto no jogo de cartas.
Dirão sem dúvida que nada disso é característico de nossa cidade e que, em suma, todos os nossos contemporâneos são assim. Sem dúvida, nada há de mais natural, hoje em dia, do que ver as pessoas trabalharem de manhã à noite e optarem, em seguida, por perder nas cartas, no café e em tagarelices o tempo que lhes resta para viver. Mas há cidades e países em que as pessoas, de vez em quando, suspeitam que exista mais alguma coisa. Isso, em geral, não lhes modifica a vida. Simplesmente, houve a suspeita, o que já significa algo. Oran, pelo contrário, é uma cidade aparentemente sem suspeitas, quer dizer, uma cidade inteiramente moderna. Não é necessário, portanto, definir a maneira como se ama entre nós. Os homens e as mulheres ou se devoram rapidamente, no que se convencionou chamar ato de amor, ou se entregam a um longo hábito a dois. Isso tampouco é original. Em Oran, como no resto do mundo, por falta de tempo e de reflexão, somos obrigados a amar sem saber.
O que é mais original na nossa cidade é a dificuldade que se pode ter para morrer. Dificuldade, aliás, não é o termo exato: seria mais certo falar em desconforto. Nunca é agradável ficar doente, mas há cidades e países que nos amparam na doença e onde podemos, de certo modo, nos entregar. O doente precisa de carinho, gosta de se apoiar em alguma coisa. É bastante natural. Em Oran, porém, os excessos do clima, a importância dos negócios que se tratam, a insignificância do cenário, a rapidez do crepúsculo e a qualidade dos prazeres, tudo exige boa saúde. Lá o doente fica muito só. O que dizer então daquele que vai morrer, apanhado na armadilha por detrás das paredes crepitantes de calor, enquanto, no mesmo minuto, toda uma população, ao telefone ou nos cafés, fala de letras de câmbio, de conhecimentos ou de descontos? Compreenderão o que há de desconfortável na morte, mesmo moderna, quando ela chega assim, num lugar seco.
Essas poucas indicações dão talvez uma ideia suficiente da nossa cidade. Aliás, é necessário não exagerar. O importante era ressaltar o aspecto banal da cidade e da vida. Mas os dias transcorrem sem dificuldades, desde que se tenham criado hábitos. A partir do momento em que nossa cidade favorece justamente os hábitos, pode-se dizer que tudo vai bem. Sob este aspecto, sem dúvida, a vida não é muito emocionante. Pelo menos, desconhece-se a desordem. E a nossa população franca, simpática e ativa sempre despertou no viajante uma estima considerável. Esta cidade sem pitoresco, sem vegetação e sem alma acaba parecendo repousante, e afinal adormece-se nela. Mas é justo acrescentar que está enxertada numa paisagem sem igual, no meio de um planalto nu, rodeada de colinas luminosas, diante de uma baía de desenho perfeito. Pode-se apenas lamentar que tenha sido construída de costas para essa baía e que, portanto, seja impossível ver o mar. É sempre preciso ir procurá-lo.
Agora, podemos admitir sem dificuldade que nada podia fazer prever aos nossos cidadãos os incidentes que se produziram na primavera desse ano e que foram, como compreendemos depois, os primeiros sinais dos acontecimentos graves cuja crônica nos propusemos fazer aqui. Esses fatos parecerão a alguns perfeitamente naturais e a outros, pelo contrário, inverossímeis. Mas, afinal, um cronista não pode levar em conta essas contradições. Sua tarefa é apenas dizer: “Isso aconteceu”, quando sabe que isso, na verdade, aconteceu; que isso interessou à vida de todo um povo, e que, portanto, há milhares de testemunhas que irão avaliar nos seus corações a verdade do que ele conta.
Aliás, o narrador, que se revelará no momento oportuno, não disporia de meios para lançar-se num empreendimento desse gênero se o acaso não o tivesse posto em condições de recolher um certo número de depoimentos e se a força das circunstâncias não o tivesse envolvido em tudo o que pretende relatar. É isso que o autoriza a agir como historiador. É claro que um historiador, mesmo que não passe de um amador, tem sempre documentos. O narrador desta história tem, portanto, os seus: em primeiro lugar, o seu testemunho; em seguida, o dos outros, já que, pelo seu papel, foi levado a recolher as confidências de todas as personagens desta crônica; e, finalmente, os textos que acabaram caindo em suas mãos. Pretende servir-se deles quando lhe parecer útil e utilizá-los como lhe aprouver. Propõe-se ainda. .. Mas é talvez tempo de abandonar os comentários e as precauções de linguagem para passar ao assunto em si. O relato dos primeiros dias exige certa minúcia.
Na manhã do dia 16 de abril, o Dr. Bernard Rieux saiu do consultório e tropeçou num rato morto, no meio do patamar. No momento, afastou o bicho sem prestar atenção e desceu a escada. Ao chegar à rua, porém, veio-lhe a ideia de que esse rato não estava no lugar devido e voltou para avisar o porteiro. Diante da reação do velho Michel sentiu melhor o que sua descoberta tinha de insólito. A presença desse rato morto parecera-lhe apenas estranha, enquanto para o porteiro constituía um escândalo. A posição deste último era aliás categórica: não havia ratos na casa. Por mais que o médico lhe garantisse que havia um no patamar do primeiro andar, provavelmente morto, a convicção de Michel permanecia firme. Não havia ratos na casa, e era necessário que tivessem trazido este de fora. Em resumo, tratava-se de uma brincadeira.
Nessa mesma noite, Bernard Rieux, de pé no corredor do prédio, procurava as chaves antes de subir para sua casa, quando viu surgir, do fundo obscuro do corredor, um rato enorme, de passo incerto e pelo molhado. O animal parou, pareceu procurar o equilíbrio, correu em direção ao médico, parou de novo, deu uma cambalhota com um pequeno guincho e parou, por fim, lançando sangue pela boca entreaberta. O médico contemplou-o por um momento e subiu.
Não era no rato que ele pensava. Aquele sangue fazia-o voltar à sua preocupação. Sua mulher, doente há um ano, devia partir no dia seguinte para uma temporada na montanha. Foi encontrá-la deitada no quarto, como lhe pedira que fizesse. Assim, preparava-se para o cansaço da viagem. Sorria.
— Sinto-me muito bem — dizia.
O médico olhou o rosto voltado para ele, à luz da lâmpada de cabeceira. Para Rieux, aos trinta anos e a despeito das marcas da doença, esse rosto era sempre o da mocidade devido talvez ao sorriso que dominava todo o resto.
— Veja se consegue dormir -disse. — A enfermeira vem às onze horas, e eu vou levá-las até o trem do meio-dia.
Beijou uma testa ligeiramente úmida. O sorriso acompanhou-o até a porta.
No dia seguinte, 17 de abril, às oito horas, o porteiro deteve o médico e acusou gracejadores de mau gosto de haverem posto três ratos mortos no meio do corredor. Deviam tê-los apanhado com grandes ratoeiras, pois estavam cheios de sangue. O porteiro ficara algum tempo à porta, segurando os ratos pelas patas, esperando que os culpados se traíssem por algum sarcasmo. Mas nada acontecera.
— Ah — dizia Michel -, esses eu acabo apanhando. Intrigado, Rieux decidiu começar sua: visitas pelos bairros exteriores onde moravam os clientes mais pobres. A coleta do lixo era feita muito mais tarde no local, e o automóvel, que corria ao longo das ruas retas e poeirentas do bairro, roçava os caixotes de detritos deixados à beira da calçada. Numa rua que percorria assim, o médico contou uma dúzia de ratos jogados sobre restos de legumes e trapos sujos.
Encontrou o primeiro doente na cama, num quarto que dava para a rua e que servia ao mesmo tempo de quarto e de sala de jantar. Era um velho espanhol de rosto duro e vincado. Tinha à frente, sobre a coberta, duas marmitas cheias de ervilhas. No momento em que o médico entrou, o doente, meio erguido no leito, inclinava-se para trás numa tentativa de recuperar seu fôlego penoso de velho asmático. A mulher trouxe uma bacia.
— Hem, doutor — disse ele durante a injeção -, eles estão saindo, já viu?
— É verdade — confirmou a mulher; — o vizinho apanhou três.
O velho esfregava as mãos.
— Começam a sair, veem-se em todas as latas de lixo. É a fome.
Rieux não teve dificuldade em constatar, em seguida, que todo o bairro falava dos ratos. Acabadas as visitas, voltou para casa.
— Há um telegrama para o senhor lá em cima informou Michel.
O médico perguntou-lhe se tinha visto novos ratos.
— Ah, não — disse o porteiro. — É que estou tomando conta, compreende, e esses safados não se atrevem.
O telegrama avisava Rieux da chegada de sua mãe no dia seguinte. Vinha ocupar-se da casa do filho durante a ausência da doente. Quando o médico entrou em casa, a enfermeira já estava lá. Rieux viu a mulher de pé, como de costume, já pintada.
— Está bem — disse -, muito bem.
Momentos depois, na estação, instalava-a no carro-leito. Ela percorreu com o olhar o compartimento.
— É caro demais para nós, não é verdade?
— É preciso — respondeu Rieux.
— Que história de ratos é essa?
— Não sei. É estranho, mas vai passar.
Depois, disse-lhe muito rapidamente que lhe pedia perdão, que devia ter olhado por ela e que se descuidara muito. Ela sacudia a cabeça, como para lhe dizer que se calasse. Mas Rieux acrescentou:
— Tudo correrá melhor quando voltar. Vamos recomeçar.
— Sim — concordou ela, com os olhos brilhantes -, vamos recomeçar.
Um instante depois, voltava-lhe as costas e olhava pela vidraça. Na plataforma, as pessoas apressavam-se aos empurrões. O guincho da locomotiva chegava até eles. O médico chamou a mulher pelo nome e quando ela se voltou, viu que o rosto estava coberto de lágrimas.
— Não — disse ele, carinhosamente.
Sob as lágrimas, voltou o sorriso, um pouco crispado. Ela respirou profundamente.
— Vá embora, tudo correrá bem.
Rieux abraçou-a e, na plataforma, nada via agora a não ser o seu sorriso.
— Cuide-se, por favor — pediu. Mas ela não podia ouvi-lo.
Perto da saída, Rieux encontrou o Sr. Othon, o juiz de instrução, que trazia pela mão o filho pequeno. O médico perguntou-lhe se ia viajar. Othon, alto e escuro, que parecia, em parte, o que se chamava outrora um homem de sociedade e, em parte, um coveiro, respondeu com uma voz amável, mas breve:
— Estou à espera da Sra. Othon, que foi apresentar seus respeitos à minha família.
A locomotiva apitou.
— Os ratos. . . — disse o juiz.
Rieux teve um movimento na direção do trem, mas voltou-se para a saída.
— Sim, não é nada.
Tudo o que guardou desse momento foi a passagem de um empregado que levava debaixo do braço um caixote cheio de ratos mortos.
Na tarde do mesmo dia, Rieux, no início de suas consultas, atendeu um rapaz que lhe disseram ser jornalista e que já viera de manhã. Chamava-se Raymond Rambert.
Baixo de estatura, ombros largos, rosto decidido, olhos claros e inteligentes, Rambert vestia roupa esporte e parecia à vontade na vida. Foi direto ao assunto. Fazia uma pesquisa para um grande jornal de Paris sobre as condições de vida dos árabes e queria informações sobre o seu estado sanitário. Rieux informou-o de que esse estado não era bom, mas quis saber, antes de ir mais longe, se o jornalista podia dizer a verdade.
— Certamente — disse o outro.
— Quero dizei, pode fazer a condenação total?
— Total, não, devo dizê-lo. Mas creio que essa condenação não teria fundamento. Com delicadeza, Rieux disse que na verdade semelhante condenação não teria fundamento, mas que, ao fazer essa pergunta, procurava apenas saber se o testemunho de Rambert podia ou não ser feito sem reservas.
— Só admito os testemunhos sem reservas. Não estou, pois, disposto a apoiar o seu com as minhas informações.
— É a linguagem de Saint-Just — disse o jornalista, sorrindo.
Sem elevar a voz, Rieux disse que não sabia nada disso, mas que era a linguagem de um homem cansado do mundo em que vivia, mas que amava, contudo, seus semelhantes e estava decidido a recusar, de sua parte, a injustiça das concessões. Rambert, com o pescoço enterrado nos ombros, olhava para o médico.
— Creio que o compreendo — disse por fim, levantando-se.
O médico acompanhou-o à porta.
— Agradeço-lhe por aceitar as coisas assim. Rambert pareceu impaciente.
— Sim, compreendo, perdoe-me o incômodo.
O médico apertou-lhe a mão e informou-o de que haveria uma curiosa reportagem a fazer sobre a quantidade de ratos mortos que se encontravam na cidade nesse momento.
— Ah! — exclamou Rambert. — Isso me interessa. As cinco horas, ao sair para novas visitas, o médico encontrou na escada um homem ainda novo, de silhueta pesada, de rosto maciço e cansado, riscado por sobrancelhas espessas. Tinha-o encontrado algumas vezes em casa dos bailarinos espanhóis que moravam no último andar de seu prédio. Jean Tarrou fumava com empenho um cigarro e contemplava as últimas convulsões de um rato que morria num degrau, a seus pés. Levantou para o médico um olhar calmo e um pouco fixo nos olhos cinzentos e acrescentou que aquela aparição de ratos era uma coisa bastante curiosa.
— É verdade — respondeu Rieux -, mas acaba por tornar-se irritante.
— Num sentido, doutor, só num sentido. Nunca vimos nada de semelhante, eis tudo, mas eu acho isso interessante, sim, positivamente interessante. — Tarrou passou a mão pelos cabelos, para atirá-los para trás, olhou de novo para o rato agora imóvel e depois sorriu para Rieux. — Mas, afinal, doutor, isso é sobretudo com o porteiro.
De fato, o médico encontrou o porteiro em frente à casa, encostado à parede, perto da entrada, com uma expressão de cansaço no rosto habitualmente congestionado.
— Bem sei — disse o velho Michel a Rieux, que lhe comunicava a nova descoberta. — Encontram-se agora aos grupos de dois e três. Mas é a mesma coisa nas outras casas.
O que esperar de Albert Camus
A Peste
“II est aussi raisonnable de représetiter une espèce d’emprisonnement par une autre que de représenter n’importe quette chose qui existe réettement par quelque chose qui n’existe pas.”
Daniel Defoe
(Tradução para o francês de Albert Camus)
(“É tão válido representar um modo de aprisionamento por outro, quanto representar qualquer coisa que de fato existe por alguma coisa que não existe.”)
Parte I
Os curiosos acontecimentos que são o objeto desta crônica ocorreram em 194..., .em Oran. Segundo a opinião geral, estavam deslocados, já que saíam um pouco do comum. À primeira vista, Oran é, na verdade, uma cidade comum e não passa de uma prefeitura francesa na costa argelina.
A própria cidade, vamos admiti-lo, é feia. com seu aspecto tranquilo, é preciso algum tempo para se perceber o que a torna diferente de tantas outras cidades comerciais em todas as latitudes. Como imaginar, por exemplo, uma cidade sem pombos, sem árvores e sem jardins, onde não se encontra o rumor de asas, nem o sussurro de folhas. Em resumo: um lugar neutro. Apenas no céu se lê a mudança das estações. A primavera só se anuncia pela qualidade do ar ou pelas cestas de flores que os pequenos vendedores trazem dos subúrbios: é uma primavera que se vende nos mercados. Durante o verão, o sol incendeia as casas muito secas e cobre as paredes de uma poeira cinzenta; então, só é possível viver à sombra das persianas fechadas. No outono, pelo contrário, é um dilúvio de lama. Os dias bonitos só chegam no inverno.
Uma forma cômoda de travar conhecimento com uma cidade é procurar saber como se trabalha, como se ama e como se morre. Na nossa pequena cidade, talvez por efeito do clima, tudo se faz ao mesmo tempo, com o mesmo ar frenético e distante. Quer dizer que as pessoas se entediam e se dedicam a criar hábitos. Nossos concidadãos trabalham muito, mas apenas para enriquecer. Interessam-se principalmente pelo comércio e ocupam-se, em primeiro lugar, conforme sua própria expressão, em fazer negócios. Naturalmente, apreciam prazeres simples, gostam das mulheres, de cinema e de banhos de mar. Muito sensatamente, porém, reservam os prazeres para os domingos e os sábados à noite, procurando, nos outros dias da semana, ganhar muito dinheiro. À tarde, quando saem dos escritórios, reúnem-se a uma hora fixa nos cafés, passeiam na mesma avenida ou instalam-se nas suas varandas. Os desejos dos mais velhos não vão além das associações de boulomanes1, os banquetes das amicales2 e os ambientes em que se aposta alto no jogo de cartas.
Dirão sem dúvida que nada disso é característico de nossa cidade e que, em suma, todos os nossos contemporâneos são assim. Sem dúvida, nada há de mais natural, hoje em dia, do que ver as pessoas trabalharem de manhã à noite e optarem, em seguida, por perder nas cartas, no café e em tagarelices o tempo que lhes resta para viver. Mas há cidades e países em que as pessoas, de vez em quando, suspeitam que exista mais alguma coisa. Isso, em geral, não lhes modifica a vida. Simplesmente, houve a suspeita, o que já significa algo. Oran, pelo contrário, é uma cidade aparentemente sem suspeitas, quer dizer, uma cidade inteiramente moderna. Não é necessário, portanto, definir a maneira como se ama entre nós. Os homens e as mulheres ou se devoram rapidamente, no que se convencionou chamar ato de amor, ou se entregam a um longo hábito a dois. Isso tampouco é original. Em Oran, como no resto do mundo, por falta de tempo e de reflexão, somos obrigados a amar sem saber.
O que é mais original na nossa cidade é a dificuldade que se pode ter para morrer. Dificuldade, aliás, não é o termo exato: seria mais certo falar em desconforto. Nunca é agradável ficar doente, mas há cidades e países que nos amparam na doença e onde podemos, de certo modo, nos entregar. O doente precisa de carinho, gosta de se apoiar em alguma coisa. É bastante natural. Em Oran, porém, os excessos do clima, a importância dos negócios que se tratam, a insignificância do cenário, a rapidez do crepúsculo e a qualidade dos prazeres, tudo exige boa saúde. Lá o doente fica muito só. O que dizer então daquele que vai morrer, apanhado na armadilha por detrás das paredes crepitantes de calor, enquanto, no mesmo minuto, toda uma população, ao telefone ou nos cafés, fala de letras de câmbio, de conhecimentos ou de descontos? Compreenderão o que há de desconfortável na morte, mesmo moderna, quando ela chega assim, num lugar seco.
Essas poucas indicações dão talvez uma ideia suficiente da nossa cidade. Aliás, é necessário não exagerar. O importante era ressaltar o aspecto banal da cidade e da vida. Mas os dias transcorrem sem dificuldades, desde que se tenham criado hábitos. A partir do momento em que nossa cidade favorece justamente os hábitos, pode-se dizer que tudo vai bem. Sob este aspecto, sem dúvida, a vida não é muito emocionante. Pelo menos, desconhece-se a desordem. E a nossa população franca, simpática e ativa sempre despertou no viajante uma estima considerável. Esta cidade sem pitoresco, sem vegetação e sem alma acaba parecendo repousante, e afinal adormece-se nela. Mas é justo acrescentar que está enxertada numa paisagem sem igual, no meio de um planalto nu, rodeada de colinas luminosas, diante de uma baía de desenho perfeito. Pode-se apenas lamentar que tenha sido construída de costas para essa baía e que, portanto, seja impossível ver o mar. É sempre preciso ir procurá-lo.
Agora, podemos admitir sem dificuldade que nada podia fazer prever aos nossos cidadãos os incidentes que se produziram na primavera desse ano e que foram, como compreendemos depois, os primeiros sinais dos acontecimentos graves cuja crônica nos propusemos fazer aqui. Esses fatos parecerão a alguns perfeitamente naturais e a outros, pelo contrário, inverossímeis. Mas, afinal, um cronista não pode levar em conta essas contradições. Sua tarefa é apenas dizer: “Isso aconteceu”, quando sabe que isso, na verdade, aconteceu; que isso interessou à vida de todo um povo, e que, portanto, há milhares de testemunhas que irão avaliar nos seus corações a verdade do que ele conta.
Aliás, o narrador, que se revelará no momento oportuno, não disporia de meios para lançar-se num empreendimento desse gênero se o acaso não o tivesse posto em condições de recolher um certo número de depoimentos e se a força das circunstâncias não o tivesse envolvido em tudo o que pretende relatar. É isso que o autoriza a agir como historiador. É claro que um historiador, mesmo que não passe de um amador, tem sempre documentos. O narrador desta história tem, portanto, os seus: em primeiro lugar, o seu testemunho; em seguida, o dos outros, já que, pelo seu papel, foi levado a recolher as confidências de todas as personagens desta crônica; e, finalmente, os textos que acabaram caindo em suas mãos. Pretende servir-se deles quando lhe parecer útil e utilizá-los como lhe aprouver. Propõe-se ainda. .. Mas é talvez tempo de abandonar os comentários e as precauções de linguagem para passar ao assunto em si. O relato dos primeiros dias exige certa minúcia.
Na manhã do dia 16 de abril, o Dr. Bernard Rieux saiu do consultório e tropeçou num rato morto, no meio do patamar. No momento, afastou o bicho sem prestar atenção e desceu a escada. Ao chegar à rua, porém, veio-lhe a ideia de que esse rato não estava no lugar devido e voltou para avisar o porteiro. Diante da reação do velho Michel sentiu melhor o que sua descoberta tinha de insólito. A presença desse rato morto parecera-lhe apenas estranha, enquanto para o porteiro constituía um escândalo. A posição deste último era aliás categórica: não havia ratos na casa. Por mais que o médico lhe garantisse que havia um no patamar do primeiro andar, provavelmente morto, a convicção de Michel permanecia firme. Não havia ratos na casa, e era necessário que tivessem trazido este de fora. Em resumo, tratava-se de uma brincadeira.
Nessa mesma noite, Bernard Rieux, de pé no corredor do prédio, procurava as chaves antes de subir para sua casa, quando viu surgir, do fundo obscuro do corredor, um rato enorme, de passo incerto e pelo molhado. O animal parou, pareceu procurar o equilíbrio, correu em direção ao médico, parou de novo, deu uma cambalhota com um pequeno guincho e parou, por fim, lançando sangue pela boca entreaberta. O médico contemplou-o por um momento e subiu.
Não era no rato que ele pensava. Aquele sangue fazia-o voltar à sua preocupação. Sua mulher, doente há um ano, devia partir no dia seguinte para uma temporada na montanha. Foi encontrá-la deitada no quarto, como lhe pedira que fizesse. Assim, preparava-se para o cansaço da viagem. Sorria.
— Sinto-me muito bem — dizia.
O médico olhou o rosto voltado para ele, à luz da lâmpada de cabeceira. Para Rieux, aos trinta anos e a despeito das marcas da doença, esse rosto era sempre o da mocidade devido talvez ao sorriso que dominava todo o resto.
— Veja se consegue dormir -disse. — A enfermeira vem às onze horas, e eu vou levá-las até o trem do meio-dia.
Beijou uma testa ligeiramente úmida. O sorriso acompanhou-o até a porta.
No dia seguinte, 17 de abril, às oito horas, o porteiro deteve o médico e acusou gracejadores de mau gosto de haverem posto três ratos mortos no meio do corredor. Deviam tê-los apanhado com grandes ratoeiras, pois estavam cheios de sangue. O porteiro ficara algum tempo à porta, segurando os ratos pelas patas, esperando que os culpados se traíssem por algum sarcasmo. Mas nada acontecera.
— Ah — dizia Michel -, esses eu acabo apanhando. Intrigado, Rieux decidiu começar sua: visitas pelos bairros exteriores onde moravam os clientes mais pobres. A coleta do lixo era feita muito mais tarde no local, e o automóvel, que corria ao longo das ruas retas e poeirentas do bairro, roçava os caixotes de detritos deixados à beira da calçada. Numa rua que percorria assim, o médico contou uma dúzia de ratos jogados sobre restos de legumes e trapos sujos.
Encontrou o primeiro doente na cama, num quarto que dava para a rua e que servia ao mesmo tempo de quarto e de sala de jantar. Era um velho espanhol de rosto duro e vincado. Tinha à frente, sobre a coberta, duas marmitas cheias de ervilhas. No momento em que o médico entrou, o doente, meio erguido no leito, inclinava-se para trás numa tentativa de recuperar seu fôlego penoso de velho asmático. A mulher trouxe uma bacia.
— Hem, doutor — disse ele durante a injeção -, eles estão saindo, já viu?
— É verdade — confirmou a mulher; — o vizinho apanhou três.
O velho esfregava as mãos.
— Começam a sair, veem-se em todas as latas de lixo. É a fome.
Rieux não teve dificuldade em constatar, em seguida, que todo o bairro falava dos ratos. Acabadas as visitas, voltou para casa.
— Há um telegrama para o senhor lá em cima informou Michel.
O médico perguntou-lhe se tinha visto novos ratos.
— Ah, não — disse o porteiro. — É que estou tomando conta, compreende, e esses safados não se atrevem.
O telegrama avisava Rieux da chegada de sua mãe no dia seguinte. Vinha ocupar-se da casa do filho durante a ausência da doente. Quando o médico entrou em casa, a enfermeira já estava lá. Rieux viu a mulher de pé, como de costume, já pintada.
— Está bem — disse -, muito bem.
Momentos depois, na estação, instalava-a no carro-leito. Ela percorreu com o olhar o compartimento.
— É caro demais para nós, não é verdade?
— É preciso — respondeu Rieux.
— Que história de ratos é essa?
— Não sei. É estranho, mas vai passar.
Depois, disse-lhe muito rapidamente que lhe pedia perdão, que devia ter olhado por ela e que se descuidara muito. Ela sacudia a cabeça, como para lhe dizer que se calasse. Mas Rieux acrescentou:
— Tudo correrá melhor quando voltar. Vamos recomeçar.
— Sim — concordou ela, com os olhos brilhantes -, vamos recomeçar.
Um instante depois, voltava-lhe as costas e olhava pela vidraça. Na plataforma, as pessoas apressavam-se aos empurrões. O guincho da locomotiva chegava até eles. O médico chamou a mulher pelo nome e quando ela se voltou, viu que o rosto estava coberto de lágrimas.
— Não — disse ele, carinhosamente.
Sob as lágrimas, voltou o sorriso, um pouco crispado. Ela respirou profundamente.
— Vá embora, tudo correrá bem.
Rieux abraçou-a e, na plataforma, nada via agora a não ser o seu sorriso.
— Cuide-se, por favor — pediu. Mas ela não podia ouvi-lo.
Perto da saída, Rieux encontrou o Sr. Othon, o juiz de instrução, que trazia pela mão o filho pequeno. O médico perguntou-lhe se ia viajar. Othon, alto e escuro, que parecia, em parte, o que se chamava outrora um homem de sociedade e, em parte, um coveiro, respondeu com uma voz amável, mas breve:
— Estou à espera da Sra. Othon, que foi apresentar seus respeitos à minha família.
A locomotiva apitou.
— Os ratos. . . — disse o juiz.
Rieux teve um movimento na direção do trem, mas voltou-se para a saída.
— Sim, não é nada.
Tudo o que guardou desse momento foi a passagem de um empregado que levava debaixo do braço um caixote cheio de ratos mortos.
Na tarde do mesmo dia, Rieux, no início de suas consultas, atendeu um rapaz que lhe disseram ser jornalista e que já viera de manhã. Chamava-se Raymond Rambert.
Baixo de estatura, ombros largos, rosto decidido, olhos claros e inteligentes, Rambert vestia roupa esporte e parecia à vontade na vida. Foi direto ao assunto. Fazia uma pesquisa para um grande jornal de Paris sobre as condições de vida dos árabes e queria informações sobre o seu estado sanitário. Rieux informou-o de que esse estado não era bom, mas quis saber, antes de ir mais longe, se o jornalista podia dizer a verdade.
— Certamente — disse o outro.
— Quero dizei, pode fazer a condenação total?
— Total, não, devo dizê-lo. Mas creio que essa condenação não teria fundamento. Com delicadeza, Rieux disse que na verdade semelhante condenação não teria fundamento, mas que, ao fazer essa pergunta, procurava apenas saber se o testemunho de Rambert podia ou não ser feito sem reservas.
— Só admito os testemunhos sem reservas. Não estou, pois, disposto a apoiar o seu com as minhas informações.
— É a linguagem de Saint-Just — disse o jornalista, sorrindo.
Sem elevar a voz, Rieux disse que não sabia nada disso, mas que era a linguagem de um homem cansado do mundo em que vivia, mas que amava, contudo, seus semelhantes e estava decidido a recusar, de sua parte, a injustiça das concessões. Rambert, com o pescoço enterrado nos ombros, olhava para o médico.
— Creio que o compreendo — disse por fim, levantando-se.
O médico acompanhou-o à porta.
— Agradeço-lhe por aceitar as coisas assim. Rambert pareceu impaciente.
— Sim, compreendo, perdoe-me o incômodo.
O médico apertou-lhe a mão e informou-o de que haveria uma curiosa reportagem a fazer sobre a quantidade de ratos mortos que se encontravam na cidade nesse momento.
— Ah! — exclamou Rambert. — Isso me interessa. As cinco horas, ao sair para novas visitas, o médico encontrou na escada um homem ainda novo, de silhueta pesada, de rosto maciço e cansado, riscado por sobrancelhas espessas. Tinha-o encontrado algumas vezes em casa dos bailarinos espanhóis que moravam no último andar de seu prédio. Jean Tarrou fumava com empenho um cigarro e contemplava as últimas convulsões de um rato que morria num degrau, a seus pés. Levantou para o médico um olhar calmo e um pouco fixo nos olhos cinzentos e acrescentou que aquela aparição de ratos era uma coisa bastante curiosa.
— É verdade — respondeu Rieux -, mas acaba por tornar-se irritante.
— Num sentido, doutor, só num sentido. Nunca vimos nada de semelhante, eis tudo, mas eu acho isso interessante, sim, positivamente interessante. — Tarrou passou a mão pelos cabelos, para atirá-los para trás, olhou de novo para o rato agora imóvel e depois sorriu para Rieux. — Mas, afinal, doutor, isso é sobretudo com o porteiro.
De fato, o médico encontrou o porteiro em frente à casa, encostado à parede, perto da entrada, com uma expressão de cansaço no rosto habitualmente congestionado.
— Bem sei — disse o velho Michel a Rieux, que lhe comunicava a nova descoberta. — Encontram-se agora aos grupos de dois e três. Mas é a mesma coisa nas outras casas.
continua pág 10...
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O que esperar de Albert Camus
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