quarta-feira, 29 de julho de 2020

Úrsula - Maria Firmina dos Reis: uma voz em conflito

Maria Firmina dos Reis


Apresentação



Maria Firmina dos Reis: uma voz em conflito



Esta obra, digna de ser lida não só pela singeleza e elegância
com que é escrita, como por ser a estreia de uma talentosa
maranhense, merece toda a proteção pública para animar a
sua modesta autora a fim de continuar a dar-nos provas de
seu talento.

Maria Firmina dos Reis, sobre Úrsula.
Jornal A Imprensa, 18/2/1860.



Esta nota publicitária foi escrita por Maria Firmina dos Reis para anunciar Úrsula, seu primeiro romance, em 1860. Reforçando o pedido da autora após quase 160 anos do lançamento, a presente publicação oferece material precioso com os principais trabalhos de Maria Firmina: Úrsula, A escrava, Gupeva e Cantos à beira-mar. Esse resgate tem como objetivo apresentar a obra da maranhense a leitores em formação e, na medida do possível, contribuir para que sua qualidade estética seja reconhecida.

A produção ficcional de Firmina contempla os romances Úrsula (1859) e Gupeva (1861/1862), os poemas de Parnaso maranhense (1861), Cantos à beira-mar (1871) e grande número de outros poemas publicados de forma esparsa, mas contínua, em diferentes espaços editoriais do século XIX, como nos periódicos O Domingo e O País. A pluralidade das produções atesta a diversidade da obra da escritora, da qual o maior exemplo é o conto A escrava, publicado na Revisa Maranhense em março de 1887. Destaca-se, ainda, sua contribuição na relação entre poesia e música, sobretudo na dicção irônica em Hino à liberdade dos escravos e em Auto de bumba-meu-boi, nos quais a autora expõe a complexidade das relações interpessoais que conduz à diversidade da cultura brasileira.

É possível perceber nesses trabalhos a constante preocupação de Firmina com a temática da situação do negro cativo, bem como o diálogo com poemas como Navio negreiro, de Castro Alves. Há neles também uma inquietação quanto à posição da mulher na sociedade, percurso temático que garante à autora lugar entre as primeiras vozes femininas a erguer discurso em defesa do feminino.

Maria Firmina dos Reis nasceu em 11 de março de 1822, em São Luís (MA), e faleceu em 11 de novembro de 1917, na cidade de Guimarães (MA). Negra e bastarda, como ela mesma se definiu, foi professora de primeiras letras na comarca de São José de Guimarães (MA) e procurou a liberdade nas palavras ao produzir obra de forte combate ao período escravista brasileiro.

O foco no tema da espoliação dos menos favorecidos e a construção de uma linguagem detalhista e imagética contribuem para a exposição de uma sociedade fragmentada e repleta de preconceitos. Por meio da descrição de detalhes das senzalas e da problematização dos espaços de convivência entre negros e brancos no século XIX, a autora cria um amplo painel da formação da sociedade brasileira.

Esse marcante tom descritivo aponta tanto o questionamento reflexivo com relação ao período escravocrata, quanto a inquietação face à rigidez da pressão social direcionada à mulher no século XIX. É o caso do tema da marginalidade da mulher branca que, ironicamente, protagoniza o romance Úrsula. Importante notar que romances como Inocência, de Visconde de Taunay, e, mais tarde, A escrava Isaura, de Bernardo Guimarães, criaram ambiências sutis para o constante questionamento do espaço ocupado pelo sexismo no Brasil da época.

Na ficção de Maria Firmina dos Reis, as observações relacionadas ao lugar de mando em uma sociedade sexista ganham contornos de barbárie e espoliação na trajetória do negro e da mulher. A escrava, conto publicado em 1861, sintetiza a ironia diante da opressão imposta à cultura do negro cativo, numa retomada dos dois romances publicados inicialmente pela autora.

Com a análise da obra de Firmina, é possível verificar sua contribuição para a problematização irônica das relações e das peripécias da protagonista branca de Úrsula na interface com a trajetória da escravidão metaforizada no percurso temático de A escrava – conto que, como dito, sintetiza essas tensões identitárias. É na fusão dessas trajetórias por vezes contraditórias do branco e do negro que o leitor de Maria Firmina dos Reis encontra a amplitude de seu trabalho. Naturalmente, ela não foi a única voz a tratar da escravidão, do sexismo e do racismo como temas literários no país: o mesmo fizeram, entre tantos outros, Machado de Assis, Castro Alves e, na transição para o século XX, Cruz e Souza e Lima Barreto. Foi, no entanto, uma voz feminina de resistência, e, por isso, a leitura de sua obra contribui para que os leitores encontrem fontes de tensão social na literatura nacional em meados do século XIX.

O olhar crítico para a tradição do homem branco pela perspectiva da senzala permite que a autora exponha a tensão entre a cultura do negro e a do branco em uma sociedade que avança a passos lentos em direção ao equilíbrio étnico e racial. Os inúmeros personagens que povoam a ficção de Maria Firmina dos Reis explicitam a relação complexa entre brancos e negros na construção etnográfica da sociedade brasileira. Ao focalizar o negro e suas relações étnicas e sociais, a narrativa supera o tom de resignação e apatia e assume uma ambientação sutil e irônica à cultura do outro. A escritora ressalta, assim, o papel fundamental que o sentimento de pertencimento à cultura do negro africano teve para o lento desenvolvimento da identidade cultural do Brasil escravocrata.

A ideia de que esse pertencimento ao universo afrodescendente não impede a fusão étnica à cultura do outro confere a Firmina local de destaque na historiografia literária nacional. Esse percurso, retomado e ampliado pela voz condoreira de Castro Alves e de Junqueira Freire ou pela contestação irônica de Sousândrade e Machado de Assis, faz de Maria Firmina dos Reis uma das mais relevantes vozes da expressão feminina nos primórdios do século XIX na literatura brasileira.


Esse aspecto já seria suficiente para recolocar em circulação a obra dessa grande autora e justificar a publicação deste livro; mas é sobretudo pela relevância estética de sua linguagem que os leitores em formação precisam conhecer seu trabalho. Trata-se, sem dúvida, de uma das mais importantes escritoras brasileiras de todos os tempos, se não pela complexidade de sua linguagem – como em Adélia Prado, Cora Coralina, Clarice Lispector, Cecília Meirelles, Francisca Júlia, Julia Lopes de Almeida, entre tantos nomes –, pela força de sua literatura, que convida sempre à reflexão face a temas polêmicos como a escravidão, o sexismo e o espaço da mulher em uma sociedade paternalista e escravocrata.

É preciso ter em mente, ainda, que a existência de uma autora como Firmina – mulher, negra e educada – parece ser uma contradição à representação feminina na literatura produzida no país de meados do século XIX. O desafio é pensar como uma escritora tão emblemática continua à margem da tradição literária, mesmo tendo continuamente oferecido “provas de seu talento” ao confrontar, em pleno século XIX, os limites do etnocentrismo escravocrata e ao problematizar o lugar da mulher e do negro em sociedade sexista que ainda mantém reflexos vivos no Brasil atual. Nesse sentido, esta publicação é um importante passo para celebrar essa autora injustiçada pela falta de receptividade do público do qual foi contemporânea e, ao mesmo tempo, tornar suas publicações acessíveis aos jovens leitores.

Pensar na obra de Maria Firmina dos Reis em desdobramento histórico até os dias atuais é fazer ressoar no tempo a busca pela valorização almejada em seu pequeno anúncio publicitário – mais uma das inúmeras inovações da autora em pleno século XIX.



Danglei de Castro Pereira [1]





[1] Doutor em Letras pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) com pós-doutorado em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP). Professor de literatura brasileira na Universidade de Brasília (UnB), lidera o grupo de pesquisa: Historiografia Literária, Cânone e Ensino. Foi organizador das publicações (Con)tradição: perspectivas do marginal (2017) e Olhares sobre o marginal (2016).




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Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luís, no Maranhão, no dia 11 de outubro de 1825. Filha bastarda de João Pedro Esteves e Leonor Felipe dos Reis. Foi uma escritora brasileira, considerada a primeira romancista brasileira.

Em 1847, aos 22 anos, ela foi aprovada em um concurso público para a Cadeira de Instrução Primária, sendo assim a primeira professora concursada de seu Estado. Maria demonstrou sua afinidade com a escrita ao publicar “Úrsula” em 1859, primeiro romance abolicionista, primeiro escrito por uma mulher negra brasileira.

O romance “Úrsula” consagrou Maria Firmina como escritora e também foi o primeiro romance da literatura afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afrodescendente. Em 1887, no auge da campanha abolicionista, a escritora publica o livro “A Escrava”, reforçando sua postura antiescravista.

Ao aposentar-se, em 1880, fundou uma escola mista e gratuita. Maria morre aos 92 anos, na cidade de Guimarães, no dia 11 de novembro de 1917.

Em 1975, Maria recebe uma homenagem de José Nascimento Morais Filho que publica a primeira biografia da escritora, Maria Firmina: fragmentos de uma vida.

A importância da obra de Firmina, primeira escritora negra de que se tem notícia em nossa literatura, se deve ao pioneirismo na denúncia da opressão a negros e mulheres no Brasil do século XIX. Antes do Navio negreiro de Castro Alves, declamado pela primeira vez em 1868, Firmina já descrevia em seu livro Úrsula, de 1859, a crueldade do tráfico de pessoas sequestradas na África e transportadas nos porões dos “tumbeiros”. Neste mesmo romance, a crítica da escritora abrange o retrato lamentável da condição feminina da época ao delinear personagens como o pai de Tancredo ou o comendador, tiranos não só de escravos, mas também de mulheres. 

Maria Firmina foi uma voz profundamente legítima e dissonante que não encontrou acolhida e reconhecimento em seu tempo. Longe de fracassar, essa voz ressoa hoje cheia de significado, recriminando males que ainda assombram e permeiam nossa sociedade.


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