Simone de Beauvoir
02. A Experiência Vivida
O SEGUNDO SEXO
SlMONE DE BEAUVOIR
SlMONE DE BEAUVOIR
continuando...
Essa repugnância traduz-se em muitas moças pela vontade de emagrecer: não querem mais comer; se as obrigam a isso, vomitam; controlam sem cessar o peso. Outras tornam-se doentiamente tímidas; entrar num salão e mesmo sair à rua é um suplício. A partir daí, desenvolvem-se por vezes psicoses. Um exemplo típico é o da doente que Janet descreve, sob o nome de Nádia, em Les obsessions et la psychasthénie:
Nádia era uma moça de família rica e notavelmente inteligente; elegante, artista, era principalmente excelente musicista; 'mas desde a infância mostrou-se voluntariosa e irritável: "Fazia muita questão de ser amada e queria um amor louco de todo mundo, dos pais, das irmãs, dos criados: mas logo que conquistava alguma afeição era tão exigente, tão dominadora que não demorava em afastar as pessoas; horrivelmente suscetível, as zombarias dos primos, que desejavam modificar-lhe o gênio, infundiram-lhe um sentimento de vergonha que se localizou no corpo". Por outro lado, sua necessidade de ser amada inspirava-lhe o desejo de permanecer criança, de ser sempre uma menina que se acarinha e pode reclamar tudo; inspirava-lhe, em suma, terror a ideia de crescer. . . A chegada precoce da puberdade agravou singularmente as coisas, misturando ao seu temor de crescer receios de pudor: como os homens gostam de mulheres gordas, quero ficar eternamente magra. O medo dos pelos do púbis, do desenvolvimento do seio, acrescentou-se aos temores precedentes. Desde a idade de 11 anos, como usava saias curtas, parecia-lhe que todos a olhavam; deram-lhe saias compridas e ela teve vergonha dos pés, das ancas etc. O aparecimento das regras deixou-a meio louca; quando os pelos do púbis começaram a crescer "ela ficou convencida de que era a única pessoa no mundo com tal monstruosidade e até a idade de 20 anos esforçou-se por se depilar a fim de "fazer desaparecer esse adorno de selvagem". O desenvolvimento do seio agravou essas obsessões porque sempre tivera horror à obesidade; não a detestava nos outros mas considerava que nela teria sido uma tara. "Não faço questão de ser bonita, mas teria vergonha demais se me tornasse balofa, teria horror; se por infelicidade engordasse, não ousaria mais mostrar-me a ninguém." Pôs-se então em busca de todos os meios de não crescer, tomava precauções, amarrava-se a juramentos: recomeçar cinco ou seis vezes a mesma oração, pular cinco vezes sobre um pé. "Se errar quatro vezes a mesma nota no piano, consinto em crescer e não ser mais amada por ninguém." Acabou resolvendo não comer mais. "Não queria nem engordar nem crescer, nem me assemelhar a uma mulher porque teria gostado de continuar menina para sempre." Promete solenemente não mais aceitar qualquer alimento; cedendo às súplicas da mãe, quebra a promessa mas passa então horas de joelhos a escrever juramentos e a rasgá-los. Quando perdeu a mãe, aos 18 anos, impôs a si mesma o regime seguinte: dois pratos de caldo magro, uma gema de ovo, uma colher de vinagre, uma xícara de chá com suco de um limão inteiro. Era tudo o que comia durante o dia todo. Morria de fome. "As vezes passava horas inteiras a pensar em comida, a tal ponto tinha fome: engolia a saliva, mastigava o lenço, rolava no chão, tal minha vontade de comer." Mas resistia às tentações. Embora fosse bonita, afirmava que tinha o rosto balofo e cheio de espinhas; se o médico lhe dizia não perceber nada, ela retorquia que ele não entendia disso, que não sabia descobrir as espinhas que se encontram entre a pele e a carne". Acabou separando-se da família e fechando-se em um pequeno apartamento onde só via a enfermeira e o médico; não saía nunca; só dificilmente aceitava a visita do pai, o qual provocou de uma feita grave recaída, dizendo-lhe que ela estava com boa aparência; ela temia ter um rosto gordo, uma tez brilhante, bons músculos. "Vivia quase sempre na escuridão a tal ponto lhe era intolerável ser vista ou simplesmente visível.
Muitas vezes a atitude dos pais contribui para incuicar na menina a vergonha de sua aparência física. Uma mulher confessa [1]:
Sofria de um sentimento de inferioridade física alimentado por críticas incessantes em casa. . . Minha mãe, em sua vaidade exagerada, queria sempre ver-me com a melhor aparência e tinha sempre uma porção de pormenores a dizer à costureira a fim de dissimular 'meus defeitos: ombros caídos, ancas avantajadas, traseiro chato, seios fortes demais etc. Tendo tido durante anos o pescoço inchado, não me era permitido mostrá-lo... Eu me envergonhava principalmente de meus pés que, no momento de minha puberdade, eram muito feios; e caçoavam de mim por causa de minha maneira de a n d a r . . . Havia certamente alguma verdade nisso tudo, mas tinham-me tornado tão infeliz, principalmente como backfisch, e eu me sentia às vezes tão intimidada que não sabia absolutamente mais como me conduzir; se encontrava alguém, minha primeira ideia era sempre "se pudesse esconder meus pés!"
[1] Stekel, A Mulher Fria.
Essa vergonha leva a menina a agir com embaraço, a corar a todo instante; esses rubores aumentam-lhe a timidez e tornam-se eles próprios objeto de uma fobia. Stekel conta, entre outros casos [2], o de uma mulher que "quando moça, corava de maneira tão doentia e violenta que, durante um ano, usou ataduras em volta do rosto alegando dores de dentes".
[2] Stekel, A Mulher Fria.
Por vezes, no período que se pode chamar da pré-puberdade e que precede o aparecimento das regras, a menina não sente ainda repugnância pelo corpo; orgulha-se de se tornar mulher, espia com satisfação o amadurecimento do seio, enche o corpinho com lenços e vangloria-se junto das companheiras mais velhas; não apreende ainda a significação dos fenômenos que se produzem nela. Sua primeira menstruação revela-lhe essa significação e os sentimentos de vergonha aparecem. Se já existiam, confirmam-se e ampliam-se a partir desse momento. Todos os testemunhos são concordes: a criança tenha ou não sido avisada, a ocorrência apresenta- se sempre a ela como repugnante e humilhante. É muito freqüente que a mãe tenha negligenciado de preveni-la: verificou-se [3] que as mães revelam mais facilmente às filhas os mistérios da gravidez, do parto e até das relações sexuais que o da menstruação; é que elas próprias têm horror a essa servidão feminina, horror que reflete os antigos terrores místicos dos homens e que elas transmitem a sua descendência. Quando encontra manchas suspeitas em suas roupas de baixo, a menina imagina-se vítima de uma diarreia, de uma hemorragia mortal, de uma doença vergonhosa. Segundo um inquérito apresentado em 1896 por Havelock Ellis, em 125 alunas de uma high school norte-americana, 36, no momento de suas primeiras regras, nada sabiam a respeito, 39 tinham vagas noções. Isso significa que mais da metade dessas alunas viviam na ignorância. Segundo Helen Deutsch, as coisas em 1946 não se teriam modificado muito. H. Ellis cita o caso de uma jovem que se atirou no Sena em Saint-Ouen porque imaginava ter contraído "uma doença desconhecida". Stekel em "cartas a uma mãe" conta também a história de uma menina que tentou suicidar- se, vendo no fluxo menstrual o sinal e o castigo das impurezas que lhe maculavam a alma. É natural que a moça tenha medo: parece-lhe que é sua vida que lhe foge. Segundo Klein, e a escola psicanalítica inglesa, o sangue seria para ela como que a manifestação de um ferimento nos órgãos internos. Ainda que advertências prudentes lhe poupem angústias demasiado agudas, ela tem vergonha e sente-se suja: precipita-se no banheiro, trata de lavar ou esconder suas roupas maculadas. Encontra-se um relato típico dessa experiência no livro de Colette Audry, Aux yeux du souvenir:
No meio dessa exaltação, eis o drama brutal definido. Uma noite, ao despir-me, acreditei estar doente; não tive medo e evitei contá-lo, na esperança de que passaria até o dia seguinte. . . Quatro semanas depois a coisa recomeçou, com maior violência. Fui bem devagar jogar minha calça na cesta de roupa suja atrás da porta do banheiro. Fazia tanto calor que o ladrilho vermelho do corredor estava morno a meus pés descalços. Gomo me enfiasse na cama ao voltar, mamãe abriu a porta do meu quarto: vinha explicar-me a coisa. Sou incapaz de lembrar-me do efeito que suas palavras produziram então em mim, mas enquanto ela cochichava Kaki mostrou subitamente a cabeça. A vista daquela cara redonda e curiosa exasperou-me. Gritei-lhe que se fosse e ela saiu. Supliquei a mamãe que a batesse porque ela não pedira para entrar. . . A calma de minha mãe, sua fisionomia precatada e docemente feliz acabaram de me fazer perder a cabeça. Quando ela saiu afundei numa noite selvagem.
Duas recordações ocorreram-me de repente: meses antes, como voltássemos do passeio com Kaki, mamãe e eu encontramos o* velho medico de Privas, atarracado como um lenhador e com uma grande barba branca. "Está crescendo, sua filha, minha senhora", disse examinando- me; eu o detestara de imediato sem nada compreender. Pouco tempo depois, de volta de Paris, mamãe arranjara numa cômoda um pacote de toalhinhas novas. "Que é isso?" indagara Kaki. Mamãe tomara aquele ar natural dos adultos quando nos revelam uma parte a verdade e guardam as outras: "É para Colette muito brevemente". Muda, incapaz de fazer uma pergunta, detestara minha mãe.
Durante toda essa noite virei e revirei na cama. Não era possível. Ia acordar. Mamãe se enganara, aquilo passaria e não voltaria mais . . . No dia seguinte, secretamente mudada e maculada, foi preciso enfrentar os outros. Olhei com ódio para minha irmã porque ela não sabia ainda, porque ela se achava dotada repentinamente e sem o saber de uma esmagadora superioridade em relação a mim. Depois, pus-me a odiar os homens que nunca experimentaram isso, e que sabiam. Para acabar detestei também as mulheres que tão tranquilamente se conformavam. Tinha certeza de que se tivessem sido avisadas do que me acontecia todas se teriam regozijado: "Bem, é tua vez", teriam pensado. Essa também, dizia a mim mesma, quando via uma. E a outra. O mundo me pegara na curva. Andava desajeitadamente e não ousava correr. A terra, as verduras quentes de sol, os alimentos pareciam-me desprender um odor suspeito... A crise passou e eu voltei a esperar contra o bom senso que não se reproduziria mais. Um mês depois tive que aceitar a evidência e admitir a desgraça definitivamente, mergulhada em um pesado estupor dessa vez. Haveria desde então um "antes" em minha memória. Todo o resto de minha existência não seria senão um "depois".
[3] Cf. os trabalhos de Daly e Chadwick, citados por H. Deutsch em Psychology of Women.
As coisas passam-se de maneira análoga com a maioria das meninas. Muitas dentre elas têm horror a confiar o segredo aos que a cercam. Uma amiga contou-me que, vivendo sem mãe, entre o pai e uma preceptora, passou três meses com medo e vergonha, escondendo sua roupa maculada, antes que descobrissem que estava menstruada. Mesmo as camponesas, que poderíamos acreditar experimentadas pelo conhecimento que têm dos mais rudes aspectos da vida animal, sentem com horror essa maldição pelo fato de nos campos ter ainda a menstruação um caráter tabu: conheci uma jovem sitiante que durante todo um inverno lavou suas roupas às escondidas no regato gelado, vestindo a camisa molhada para dissimular o inconfessável segredo. Poderia citar cem casos análogos. Mesmo a confissão dessa desgraça espantosa não é uma libertação. Sem dúvida, a mãe que esbofeteou a filha, dizendo: "Idiota, és criança demais", é uma exceção. Porém muitas mães demonstram mau humor; a maioria não dá à criança esclarecimentos suficientes e esta continua cheia de ansiedade ante o novo estado que a menstruação inaugura. Ela se pergunta se o futuro não lhe reserva dolorosas surpresas; ou imagina que a partir de então pode tornar-se grávida pela simples presença ou contato de um homem, e sente em relação aos machos verdadeiro terror. Ainda que lhe poupem tal angústia mediante explicações inteligentes, não a tranquilizam tão facilmente. Antes a menina podia, com alguma má-fé, acreditar-se ainda um ser assexuado, podia não se pensar; acontecia-lhe até sonhar que despertaria certa manhã transformada em homem; agora, as mães e as tias cochicham com ares lisonjeados: "é uma moça agora"; a confraria das matronas ganhou: ela pertence-lhes. Ei-la catalogada sem apelo do lado das mulheres. Acontece que se orgulha disso; pensa que se tornou uma adulta e que se vai produzir uma reviravolta em sua existência. Thyde Monnier, por exemplo, conta em Moi:
Muitas de nós tinham-se tornado "grandes" durante as férias; outras o ficavam no liceu e então uma após outra íamos "ver o sangue" nas privadas do pátio, onde elas se pavoneavam como rainhas recebendo seus súditos.
Mas a menina logo se desilude, pois percebe que não adquiriu nenhum privilégio e a vida continua. A única novidade é o acontecimento sujo que ocorre todos os meses; há crianças que choram durante horas quando vêm a saber que estão condenadas a um tal destino; o que agrava ainda mais sua revolta é o fato de ser essa tara vergonhosa conhecida dos próprios homens; desejariam pelo menos que a humilhante condição feminina permanecesse velada de mistério para eles. Mas não, pais, irmãos, primos sabem-no e chegam até a zombar. É então que nasce ou se exaspera na menina a repugnância por seu corpo demasiado carnal. E passada a primeira surpresa, o aborrecimento mensal não se dissipa contudo: cada vez a moça sente o mesmo nojo ante o odor insosso e umidamente abafado que sobe de si própria — cheiro de pântano, de violetas murchas — ante esse sangue menos vermelho, mais suspeito do que o que flui de suas machucaduras infantis. Dia e noite terá de pensar em mudar de roupa, cuidar de seus lençóis, resolver mil pequenos problemas práticos e repugnantes; nas famílias econômicas, as toalhas higiênicas são lavadas mensalmente e voltam a seu lugar entre pilhas de lenços; será preciso portanto entregar às mãos das lavadeiras, criadas, mãe, irmã mais velha, essas dejeções saídas de si. As espécies de curativos que vendem os farmacêuticos em caixa com nomes de flores: "Camélia", "Edelweis", são deitadas fora após o uso; mas em viagem, em vilegiatura, em excursão não é tão cômodo assim desembaraçar- se disso por ser expressamente proibido jogá-la na bacia da privada. A pequena heroína do Journal Psychanalytique [4] descreve seu horror pela toalha higiênica, mesmo diante da irmã só consente em despir-se no escuro, no momento das regras. O objeto incômodo, embaraçoso, pode destacar-se durante um exercício violento; é maior humilhação do que perder as calças na rua: essa perspectiva atroz engendra, por vezes, manias psicastênicas. Por uma espécie de maldade da natureza, os incômodos, as dores só começam muitas vezes depois da hemorragia que a princípio pode passar despercebida. As jovens são muitas vezes mal regradas: arriscam-se a ser surpreendidas durante um passeio, na rua, em casa de amigos; arriscam-se — como Mme de Chevreuse1 — a sujar as roupas, o assento. Há quem, ante essa possibilidade, viva numa constante angústia. Quanto mais a moça sente repulsa por essa tara feminina, mais é obrigada a pensar nela com cuidado para não se expor à horrível humilhação de um acidente ou de uma confidencia.
[4] Traduzido por Clara Malraux.
continua página 54...
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Leia também:
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (5)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (4)
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As mulheres de nossos dias estão prestes a destruir o mito do "eterno feminino": a donzela ingênua, a virgem profissional, a mulher que valoriza o preço do coquetismo, a caçadora de maridos, a mãe absorvente, a fragilidade erguida como escudo contra a agressão masculina. Elas começam a afirmar sua independência ante o homem; não sem dificuldades e angústias porque, educadas por mulheres num gineceu socialmente admitido, seu destino normal seria o casamento que as transformaria em objeto da supremacia masculina.
Neste volume complementar de O SEGUNDO SEXO, Simone de Beauvoir, constatando a realidade ainda imediata do prestígio viril, estuda cuidadosamente o destino tradicional da mulher, as circunstâncias do aprendizado de sua condição feminina, o estreito universo em que está encerrada e as evasões que, dentro dele, lhe são permitidas. Somente depois de feito o balanço dessa pesada herança do passado, poderá a mulher forjar um outro futuro, uma outra sociedade em que o ganha--pão, a segurança econômica, o prestígio ou desprestígio social nada tenham a ver com o comércio sexual. É a proposta de uma libertação necessária não só para a mulher como para o homem. Porque este, por uma verdadeira dialética de senhor e servo, é corroído pela preocupação de se mostrar macho, importante, superior, desperdiça tempo e forcas para temer e seduzir as mulheres, obstinando-se nas mistificações destinadas a manter a mulher acorrentada.
Os dois sexos são vítimas ao mesmo tempo do outro e de si. Perpetuar-se-á o inglório duelo em que se empenham enquanto homens e mulheres não se reconhecerem como semelhantes, enquanto persistir o mito do "eterno feminino". Libertada a mulher, libertar-se-á também o homem da opressão que para ela forjou; e entre dois adversários enfrentando-se em sua pura liberdade, fácil será encontrar um acordo.
O SEGUNDO SEXO, de Simone de Beauvoir, é obra indispensável a todo o ser humano que, dentro da condição feminina ou masculina, queira afirmar-se autêntico nesta época de transição de costumes e sentimentos.
"O que é uma mulher?"
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