mulheres descalças
o feitiço das trança
Ensaio 127Bza – 2ª edição 1ª reimpressão
baitasar
nas ideias dudono de gente, assonsado como todo aquele quiqué sê dono dumoinho, a preta açunta carrega no corpo uma vida de esquecimento pra sempre. ele num credita qui vai tê história daçunta pra sê contada, o mesmo fingimento – refalsamento do esquecimento qui veste os pano caridoso – precisa fazê desabá a humanidade duscravizado, desde antanho faz graça de maldade duspretu, diz e repeti quié uma carcaça sem solução, marcada, feia e distante, sem angústia, sem salvação, uma preta profana do feitiço sem ideia de deus, só o duro trabáio vai salvá pra começá uma vida de nada pra lugá nenhum
e noite e dia a fio ela trabaiô e ficô sozinha, recôida nos próprio silêncio, bebeu quando tinha sede, comeu quando tinha fome - e pru dono de tudo isso é o bastante pra dá conta da vida -, sonhô as história, cantoria e riso dusqui veio antes, num tem sofrimento ou lonjura qui vai apagá tanta lembrança da batucada, nem tem descaso e desatenção dusdia sem sentido – nem as cilada das trama qui domina e acorrenta com hipocrisia – qui vai acabá com a rebeldia e o encantamento
o espetáculo da escravidão é o sentido da villa, desde branco mais subalterno fingindo sê branco qué tê tumbém useu pretu – credita qui assim sua vida vai sê mais vistosa e branca – inté dono de terra e de gente, dono de tudo – dono de deus, apareça como parecê –, faz duspretu bode expiatório, pano de chão, carne pra sê fatiada, mastigada e esquecida num buraco qualqué
num tem pagamento qui vai pagá tanto sono entrevado, tanta enganação, tanto grito escutado, ameaça de castigo, fazendo ela se sentí mais indolente, descuidada e indecente qui tudo quando num devorava o trabáio, A pobre neguinha acordou com o diabo da preguiça, Não se brinca assim, sô Augusto, Então, mexa-se. Quem precisa de uma negra desanimada e lenta? Mostre que o diabo não baixou nessa carcaça preta e fez da neguinha uma crioula preguiçosa, Deus me livre, sô Augusto, Não é Deus que vai livrar ocê Açunta, essa é uma decisão que só cabe a mim.
o tal augusto tinha a boca e nariz empinado pras muié da casa, bengala nas mão, pisava no chão sem gosto de pisá, ficava mais assanhado de mandá quanto mais antônia açunta cravava usóio nuspé descalço
antônia açunta qui nasceu junto da lua, inatie aye – luz da vida –miúda de trança, viveu correndo e escondendo seu corpo dustrabáio de braço nas plantação, quando utrabáio se achegava nas vizinhança das brincadêra da miúda ela agachava dentro nas trança, as miçanga brotava novinha duchão, assim, inatie aye ficava brincando de esconde-esconde dentro da moita vestida das trança e miçanga, ausente dusóio dutrabáio inté saí das trança livre e voltá carregada na barriga de mãinha
todas noite, mãinha cantava e desmanchava as trança pra medí tamanho e aumentá as miçanga, depois das ponta trançada ela pedia pru segredo das trança e miçanga protegê miúda
Orí mi o se rere fún mi
Orí mi o se rere fún mi
Orí oká ní nsaanú oká
Orí ejò ní nsaanú ejò
Afomó òpèní nsaanú òpè
Orí mi o se rere fún nú
Kiki Olójó Oní! Kiki Oní Sáà Wúre!
depois, repetia
Olójó oní mo jubà o
e cantava inté a miúda dormecê
E mònriwò l`aso e e mònriwò
numa tarde qui miúda tava sonolenta e mãinha atarefada nas enxadada nos torrão de terra e erva daninha, trabáio chegô sem elas percebê e agarrô as trança da miúda, carregô a novidade inté casa grande, Muito bem, Tudão, Acho qui tá na hora do amadurecimento, sinhô não acha, Concordo, Posso levá, Sim, claro. Pode levar, Mais um tempo e a negrinha vai ter um corpo bem feito de ancas e peitos, É melhor levar antes que o andar comece a balançar e batucar nos matos, Sim, sinhô, depois ditê as trança do nascimento cortada a miúda foi colocada nos trabáio leve, semeava, arrancava as erva daninha, catava as larva e cuidava das galinha
toda tardinha, antes de recôiê uspretu pra senzala, trabáio pegava pegava miúda pra faca cortá cabelo qui cresceu, Êta êta... crioulinha do cabelo ruim, e dava risada
miúda lastimava e pedia as trança do nascimento de volta, Não tenho mais, era a resposta qui recebia dutrabáio, chorava nusbraço de mãinha, Luz da vida da mãinha... não chora mais, miúda chorava inté dormecê, sonhava cuas belezura das trança, as miçanga colorida, as brincadêra de esconde-esconde, pedia pra mãinha num acordá mais ela inté as trança tá na cabeça, mais toda manhã utrabáio acordava as duas
cansado daquela lamúria de tristeza da miúda qui num parava de reclamá desaparecimento das trança colorida, trabáio acordô miúda e avisô qui ela num ia pru campo, Hoje, vamos procurar suas tranças, depois a negrinha vai ser batizada. Até já escolhi o nome, Antônia, Já tenho nome: Inatie aye, Isso não é nome, é feitiço, pegô a miúda pela casca da nuca e jogô na garupa da carreta de boi, mãinha e miúda chamava uma pela otra, a carreta num se assombrava dusgrito e gemido enquanto se arrastava pela estrada
num era perto de chegá e mais longe ficô, grito e lastimação num tava nas coisa qui tudão ficava aturando, na metade da metade da distância da casa grande inté a villa, trabáio apeô da carreta e puxô adaga, Pois chega de balda, daqui pra frente a negrinha vai engolir a choradeira porque caso esse mimimi não pare... A negrinha tá escutando, tá escutando, repetiu a prugunta mais duas veiz, inté qui inatie aye balançô a cabeça, Muito bem, então continua prestando atenção, a negrinha vai pegar essa vontade de latir feito uma cadelinha assustada e engolir tudo. Entendeu, entendeu, repetiu mais duas veiz, inté qui inatie aye balançô a cabeça, Muito bem, porque se a chorona não parar de gemer e se lamentar feito uma coitadinha vou pendurar a negrinha em alguma árvore da estrada. E depois, vou tirar essa casca preta ruim e comer uns pedacinhos. Então, vai ser do meu jeito ou da negrinha?
a sentença tava dada e num tinha ninguém pra dizê contra, e se tivesse inté podia sê qui ninguém ia se metê, num mundo qui tem dono as mercadoria é pra uso e desuso dudono, ninguém se mete
os dois foi no rumo do mercado de comprá e vendê uspretu, um mercado qui num tinha lugá exato ditê alicerce, parede e teto, esse lugá qui utrabáio procurava num ficava nulugá, mudava dum dia pru otro, tudo pra escapá dusimposto de cada escravizado, assim podia vendê sem pagamento das taxa ou das coleta pública, o contrabando duspretu dava muntu lucro
quando tava chegando na villa anunciô pra mercadoria qui ela tava à venda, A negrinha tá aqui no mercado negro porque a mercadoria precisa ser vista para ter uma boa avaliação de preço, Eu quero mãinha, E chega de choro! Se a negrinha conseguir um bom preço, a sua mãezinha vai ser recompensada com menos trabalho na terra. Entendeu? Posso até escolher ela pra vez que outra descansar num cama.
nasceu e foi pru chão brincá, corrê a vida descalça na casa da mãe de tudo, a terra-mãe, iluminando o moinho da vida cuas trança de cabelo bunito qui dava gula nas miúda pra tumbém enfeitá, honrá a terra-mãe cuspé descalçado e os cabelo enfeitado, Eu quero as minha trança bunita, Cala a boca, crioulinha! Não vai ter mais trança, esse cabelo ruim é o seu cabelo de verdade. Aquelas tranças era feitiço que enterrei bem fundo na terra. Chega dessa choradeira, o cabelo da negrinha é esse, e pronto!
histórias de avoinha: Toque, minha filha.
histórias de avoinha: Onde está a gaiola do Venuto?
histórias de avoinha: Deus te abençoe, minha filha
histórias de avoinha: um corpo febrento e para sempre culpada
histórias de avoinha: a dança dos dedo
histórias de avoinha: os pé e as bota de garrão
histórias de avoinha: Oh!... prugunta pra todas criança
histórias de avoinha: um império invisível
histórias de avoinha: uma sombra sem corpo não cruza as pernas
histórias de avoinha: Bagaço hipócrita!
histórias de avoinha: a vaga de marido
histórias de avoinha: a lua na escuridão
histórias de avoinha: chegô no piano
histórias de avoinha: o silêncio no brejo dos pensamento
histórias de avoinha: borboleta preta
histórias de avoinha: Obrigada, Açunta!
histórias de avoinha: ôum velório de vida
o feitiço das trança
Ensaio 127Bza – 2ª edição 1ª reimpressão
baitasar
nas ideias dudono de gente, assonsado como todo aquele quiqué sê dono dumoinho, a preta açunta carrega no corpo uma vida de esquecimento pra sempre. ele num credita qui vai tê história daçunta pra sê contada, o mesmo fingimento – refalsamento do esquecimento qui veste os pano caridoso – precisa fazê desabá a humanidade duscravizado, desde antanho faz graça de maldade duspretu, diz e repeti quié uma carcaça sem solução, marcada, feia e distante, sem angústia, sem salvação, uma preta profana do feitiço sem ideia de deus, só o duro trabáio vai salvá pra começá uma vida de nada pra lugá nenhum
e noite e dia a fio ela trabaiô e ficô sozinha, recôida nos próprio silêncio, bebeu quando tinha sede, comeu quando tinha fome - e pru dono de tudo isso é o bastante pra dá conta da vida -, sonhô as história, cantoria e riso dusqui veio antes, num tem sofrimento ou lonjura qui vai apagá tanta lembrança da batucada, nem tem descaso e desatenção dusdia sem sentido – nem as cilada das trama qui domina e acorrenta com hipocrisia – qui vai acabá com a rebeldia e o encantamento
o espetáculo da escravidão é o sentido da villa, desde branco mais subalterno fingindo sê branco qué tê tumbém useu pretu – credita qui assim sua vida vai sê mais vistosa e branca – inté dono de terra e de gente, dono de tudo – dono de deus, apareça como parecê –, faz duspretu bode expiatório, pano de chão, carne pra sê fatiada, mastigada e esquecida num buraco qualqué
num tem pagamento qui vai pagá tanto sono entrevado, tanta enganação, tanto grito escutado, ameaça de castigo, fazendo ela se sentí mais indolente, descuidada e indecente qui tudo quando num devorava o trabáio, A pobre neguinha acordou com o diabo da preguiça, Não se brinca assim, sô Augusto, Então, mexa-se. Quem precisa de uma negra desanimada e lenta? Mostre que o diabo não baixou nessa carcaça preta e fez da neguinha uma crioula preguiçosa, Deus me livre, sô Augusto, Não é Deus que vai livrar ocê Açunta, essa é uma decisão que só cabe a mim.
o tal augusto tinha a boca e nariz empinado pras muié da casa, bengala nas mão, pisava no chão sem gosto de pisá, ficava mais assanhado de mandá quanto mais antônia açunta cravava usóio nuspé descalço
antônia açunta qui nasceu junto da lua, inatie aye – luz da vida –miúda de trança, viveu correndo e escondendo seu corpo dustrabáio de braço nas plantação, quando utrabáio se achegava nas vizinhança das brincadêra da miúda ela agachava dentro nas trança, as miçanga brotava novinha duchão, assim, inatie aye ficava brincando de esconde-esconde dentro da moita vestida das trança e miçanga, ausente dusóio dutrabáio inté saí das trança livre e voltá carregada na barriga de mãinha
todas noite, mãinha cantava e desmanchava as trança pra medí tamanho e aumentá as miçanga, depois das ponta trançada ela pedia pru segredo das trança e miçanga protegê miúda
Orí mi o se rere fún mi
Orí mi o se rere fún mi
Orí oká ní nsaanú oká
Orí ejò ní nsaanú ejò
Afomó òpèní nsaanú òpè
Orí mi o se rere fún nú
Kiki Olójó Oní! Kiki Oní Sáà Wúre!
depois, repetia
Olójó oní mo jubà o
e cantava inté a miúda dormecê
E mònriwò l`aso e e mònriwò
numa tarde qui miúda tava sonolenta e mãinha atarefada nas enxadada nos torrão de terra e erva daninha, trabáio chegô sem elas percebê e agarrô as trança da miúda, carregô a novidade inté casa grande, Muito bem, Tudão, Acho qui tá na hora do amadurecimento, sinhô não acha, Concordo, Posso levá, Sim, claro. Pode levar, Mais um tempo e a negrinha vai ter um corpo bem feito de ancas e peitos, É melhor levar antes que o andar comece a balançar e batucar nos matos, Sim, sinhô, depois ditê as trança do nascimento cortada a miúda foi colocada nos trabáio leve, semeava, arrancava as erva daninha, catava as larva e cuidava das galinha
toda tardinha, antes de recôiê uspretu pra senzala, trabáio pegava pegava miúda pra faca cortá cabelo qui cresceu, Êta êta... crioulinha do cabelo ruim, e dava risada
miúda lastimava e pedia as trança do nascimento de volta, Não tenho mais, era a resposta qui recebia dutrabáio, chorava nusbraço de mãinha, Luz da vida da mãinha... não chora mais, miúda chorava inté dormecê, sonhava cuas belezura das trança, as miçanga colorida, as brincadêra de esconde-esconde, pedia pra mãinha num acordá mais ela inté as trança tá na cabeça, mais toda manhã utrabáio acordava as duas
cansado daquela lamúria de tristeza da miúda qui num parava de reclamá desaparecimento das trança colorida, trabáio acordô miúda e avisô qui ela num ia pru campo, Hoje, vamos procurar suas tranças, depois a negrinha vai ser batizada. Até já escolhi o nome, Antônia, Já tenho nome: Inatie aye, Isso não é nome, é feitiço, pegô a miúda pela casca da nuca e jogô na garupa da carreta de boi, mãinha e miúda chamava uma pela otra, a carreta num se assombrava dusgrito e gemido enquanto se arrastava pela estrada
num era perto de chegá e mais longe ficô, grito e lastimação num tava nas coisa qui tudão ficava aturando, na metade da metade da distância da casa grande inté a villa, trabáio apeô da carreta e puxô adaga, Pois chega de balda, daqui pra frente a negrinha vai engolir a choradeira porque caso esse mimimi não pare... A negrinha tá escutando, tá escutando, repetiu a prugunta mais duas veiz, inté qui inatie aye balançô a cabeça, Muito bem, então continua prestando atenção, a negrinha vai pegar essa vontade de latir feito uma cadelinha assustada e engolir tudo. Entendeu, entendeu, repetiu mais duas veiz, inté qui inatie aye balançô a cabeça, Muito bem, porque se a chorona não parar de gemer e se lamentar feito uma coitadinha vou pendurar a negrinha em alguma árvore da estrada. E depois, vou tirar essa casca preta ruim e comer uns pedacinhos. Então, vai ser do meu jeito ou da negrinha?
a sentença tava dada e num tinha ninguém pra dizê contra, e se tivesse inté podia sê qui ninguém ia se metê, num mundo qui tem dono as mercadoria é pra uso e desuso dudono, ninguém se mete
os dois foi no rumo do mercado de comprá e vendê uspretu, um mercado qui num tinha lugá exato ditê alicerce, parede e teto, esse lugá qui utrabáio procurava num ficava nulugá, mudava dum dia pru otro, tudo pra escapá dusimposto de cada escravizado, assim podia vendê sem pagamento das taxa ou das coleta pública, o contrabando duspretu dava muntu lucro
quando tava chegando na villa anunciô pra mercadoria qui ela tava à venda, A negrinha tá aqui no mercado negro porque a mercadoria precisa ser vista para ter uma boa avaliação de preço, Eu quero mãinha, E chega de choro! Se a negrinha conseguir um bom preço, a sua mãezinha vai ser recompensada com menos trabalho na terra. Entendeu? Posso até escolher ela pra vez que outra descansar num cama.
nasceu e foi pru chão brincá, corrê a vida descalça na casa da mãe de tudo, a terra-mãe, iluminando o moinho da vida cuas trança de cabelo bunito qui dava gula nas miúda pra tumbém enfeitá, honrá a terra-mãe cuspé descalçado e os cabelo enfeitado, Eu quero as minha trança bunita, Cala a boca, crioulinha! Não vai ter mais trança, esse cabelo ruim é o seu cabelo de verdade. Aquelas tranças era feitiço que enterrei bem fundo na terra. Chega dessa choradeira, o cabelo da negrinha é esse, e pronto!
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