sexta-feira, 17 de julho de 2020

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, VIII — Morte dum cavalo

Victor Hugo - Os Miseráveis


Primeira Parte - Fantine

Livro Terceiro — Em 1817




VIII — Morte dum cavalo




— Janta-se muito melhor no Édon do que no bombarda! — exclamou Zefina. 

— Eu prefiro Bombarda a Édon — declarou Bachevelle.

— É mais luxuoso, mais asiático. Vejam a sala de baixo, com as paredes cobertas de espelhos.

— E eu prefiro o luxo do prato, antes queria que servissem melhor! — disse Favorita. Blachevelle insistiu:

— No Bombarda, os cabos das facas são de prata, no Édon são de osso. Ora a prata creio que é mais preciosa do que o osso.

— Excepto para os que têm queixo de prata! — observou Tholomyés, olhando para o zimbório dos Inválidos que se via das janelas do Bombarda.

Seguiu-se uma pausa.

— Tholomyés! — bradou Fameuil.

— Ainda há pouco eu e Listolier tivemos uma discussão.

— Uma discussão não é coisa má, mas uma briga é muito melhor.

— Discutíamos sobre filosofia.

— Está bem.

— Qual preferes tu, Descartes ou Spinosa?

— Désaugiers — respondeu Tholomyés.

Depois de proferir esta sentença, bebeu mais um trago e continuou:

— Consinto em viver. Nem tudo na terra acabou ainda, visto que é permitido fazerem-se extravagâncias! Rendo graças aos deuses imortais! Mente-se, mas ri-se. Afirma-se, mas duvida-se. Brota do silogismo o inesperado. É magnífico! Ainda há neste mundo homens que sabem abrir e fechar alegremente a caixa de surpresas do paradoxo. Saibam que isto que as meninas estão bebendo com tão descansado modo é vinho da Madeira, da quinta do Curral das Freiras, que fica a trezentas e dezassete toezas acima do nível do mar! Atendam quando beberem: trezentas e dezassete toezas, e o senhor Bombarda, o excelente proprietário desta casa, dá-lhes trezentas toezas por quatro francos e cinquenta cêntimos! 

Fameuil interrompeu-o novamente:

— Tholomyés, as tuas opiniões constituem lei. Qual é o teu autor favorito?

— Ber...

— Quin?

— Não. Choux.

E Tholomyés prosseguiu:

— Viva o Bombarda! Seria capaz de igualar Munofis de Elefanta, se pudesse colher-me uma almeia, e Thygelion de Cheroneia, se conseguisse trazer-me uma hetaira; porquanto, minhas senhoras, na Grécia e no Egipto havia Bombardas. Assim no-lo afirma Apuleio. Oh, sempre as mesmas coisas e nada de novo! Nada inédito na criação do Criador! Nihil sub sole novum, diz Salomão; amor omnibus idem, diz Virgílio; e Carabina embarca com Carabino na galiota de Saint-Cloud, como Aspasia se embarcava com Péricles na armada de Samos, Sabem o que era Aspasia, minhas senhoras? Conquanto vivesse num tempo em que as mulheres ainda não tinham alma, era uma alma; uma alma cambiante de rosa e púrpura, mais abraseada que o fogo, mais fresca do que a aurora. Aspasia era uma criatura em que se tocavam os dois extremos da mulher: era libertina e deusa. Sócrates mais Manon Lescaut. Aspasia foi criada para o caso em que fosse necessário um modelo a Prometeu.

Tholomyés, uma vez impelido, dificilmente pararia, se, naquele momento, o cavalo de um carro que passava no cais não tivesse caído. O efeito da queda do animal fez parar o carro e o orador. Era uma égua magra e velha, digna do esfolador, puxando um pesado carro. Chegando em frente da casa de pasto, o animal, exausto, recusou-se a ir mais avante. Este incidente fez juntar em redor um magote de pessoas Mal o carroceiro, zangado e praguejando, acabou de proferir a sacramental palavra: «Arre!», seguida de uma tremenda chicotada, o sendeiro caiu para nunca mais se erguer. Ao tumulto dos transeuntes, todos os alegres ouvintes de Tholomyés voltaram a cabeça, e o orador aproveitou logo o momento para fechar a sua alocução com esta melancólica estrofe:

Dizem que a vida é como folha leve,
Que qualquer ar revira,
Assim é; senão vejam esse bruto
Que um «arre» só virou.


— Pobre cavalo! — disse Fantine, suspirando.

— Não querem ver a Fantine a chorar pelos cavalos?! — exclamou Dália.

— Ora isto, realmente, é de fazer andar aos tombos com riso!

Neste momento, Favorita cruzando os braços e inclinando a cabeça para trás, encarou resolutamente Tholomyés, dizendo:

— É verdade! Quando aparece essa surpresa?

— Chegou exatamente o momento! — respondeu Tholomyés.

— Meus amigos, soou a hora de surpreendermos estas belas damas. Minhas senhoras, esperem-nos por um instante.

— A coisa começa por um beijo — disse Blachevelle.

— Na testa — acrescentou Tholomyés.

Cada qual depôs gravemente um beijo na fronte da amante, após o qual todos quatro em fileira se dirigiram para a porta, com o dedo pousado na boca.

— Isto já é divertido! — disse Favorita, batendo as palmas no momento em que eles transpunham a porta.

— Não se demorem muito — murmurou Fantine.

— Lembrem-se de que ficamos à espera.





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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.


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Leia também:

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Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, I — O ano de 1817
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, II — Quatro pares
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, III — A quatro e quatro
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, IV — A alegria de Tholomyés é tão grande que até canta uma canção espanhola
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, V — Em casa de Bombarda
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Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, VII — Prudência de Tholomyés
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, IX — Alegre fim de festa


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Victor Hugo

OS MISERÁVEIS

Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira (1851-1888)




Então, mais uma resenha e junto antecipando algumas surpresas...



PandaClássicos #1: OS MISERÁVEIS





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