domingo, 26 de julho de 2020

Susan Sontag - Objetos de Melancolia (04)

Sobre fotografia

Ensaios


Susan Sontag



OBJETOS DE MELANCOLIA



continuando...


O gosto por citações (e pela justaposição de citações incongruentes) é um gosto surrealista. Assim, Walter Benjamin — cuja sensibilidade surrealista é a mais profunda de que se tem registro — era um apaixonado colecionador de citações. Em seu magistral ensaio sobre Benjamin, Hannah Arendt conta que “nos anos 1930, nada nele era mais característico do que os caderninhos de capa preta que sempre trazia consigo e nos quais, incansavelmente, anotava na forma de citações aquilo que a vida e a leitura diárias lançavam em sua rede, à maneira de ‘pérolas’ e ‘coral’. Às vezes, lia-as em voz alta, mostrava-as como peças de uma coleção seleta e preciosa”. Embora coligir citações possa ser visto como mero mimetismo irônico — uma coleção sem vítimas, por assim dizer —, isso não deve ser interpretado como um sinal de que Benjamin desaprovava o objeto da ironia, ou de que não se deliciava com ele. Pois Benjamin tinha a convicção de que a própria realidade solicitava — e justificava — os ofícios outrora negligentes e inevitavelmente destrutivos do colecionador. Num mundo que está bem adiantado em seu caminho para tornar-se um vasto garimpo a céu aberto, o colecionador se transforma em alguém engajado num consciencioso trabalho de salvamento. Como o curso da história moderna já solapou as tradições e fez em pedaços as totalidades vivas em que os objetos preciosos encontravam, outrora, seu lugar, o colecionador pode agora, em boa consciência, sair a escavar os fragmentos mais seletos e emblemáticos. 

O passado mesmo, uma vez que as mudanças históricas continuam a se acelerar, transformou-se no mais surreal dos temas — tornando possível, como disse Benjamin, ver uma beleza nova no que está em via de desaparecer. Desde o início, os fotógrafos não só se atribuíram a tarefa de registrar um mundo em via de desaparecer como foram empregados com esse fim por aqueles mesmos que apressavam o desaparecimento. (Já em 1842, essa incansável valorizadora dos tesouros da arquitetura francesa, Viollet-le-Duc, contratou uma série de daguerreótipos da catedral de Notre Dame, antes de dar início à restauração.) “Renovar o velho mundo”, escreveu Benjamin, “eis o mais profundo desejo do colecionador quando tem o impulso de comprar coisas novas.” Mas o velho não pode ser renovado — sem dúvida, não com citações; e esse é o aspecto digno de pena, quixotesco, da atividade fotográfica.

As ideias de Benjamin são dignas de menção porque ele foi o mais original e importante crítico da fotografia — apesar (e por causa) da contradição interna em sua apreciação da fotografia, que resulta do desafio apresentado por sua sensibilidade surrealista a seus princípios marxistas/brechtianos — e porque o projeto ideal do próprio Benjamin soa como uma versão sublimada da atividade do fotógrafo. Tal projeto era uma obra de crítica literária que deveria consistir inteiramente em citações e, assim, seria destituída de qualquer coisa capaz de trair empatia. Um repúdio à empatia, um desdém contra mascatear mensagens, uma pretensão de ser invisível — essas são estratégias sancionadas pela maioria dos fotógrafos profissionais. A história da fotografia revela uma longa tradição de ambivalência a respeito de sua capacidade de tomar partido: adotar um dos lados é tido como minar sua perpétua premissa de que todos os temas têm validade e interesse. Mas aquilo que em Benjamin é uma torturante ideia de minúcia, destinada a permitir que o passado mudo fale com voz própria, com toda a sua complexidade insolúvel, se torna — quando generalizado, na fotografia — a descriação do passado (no próprio ato de preservá-lo), a fabricação de uma realidade nova, paralela, que torna o passado algo imediato, ao mesmo tempo que sublinha sua ineficácia cômica ou trágica, reveste a especificidade do passado com uma ironia ilimitada, transforma o presente no passado e o passado em condição pretérita.

Assim como o colecionador, o fotógrafo é animado por uma paixão que, mesmo quando aparenta ser paixão pelo presente, está ligada a um sentido do passado. Mas, enquanto as artes tradicionais da consciência histórica tentam pôr o passado em ordem, distinguindo o inovador do retrógrado, o central do marginal, o relevante do irrelevante ou meramente interessante, a abordagem do fotógrafo — a exemplo do colecionador — é assistemática, a rigor, antissistemática. O entusiasmo do fotógrafo por um tema não tem nenhuma relação essencial com seu conteúdo ou seu valor, aquilo que torna um tema classificável. É, acima de tudo, uma afirmação da existência do tema; sua honestidade (a honestidade de um olhar cara a cara, da ordenação de um grupo de objetos), que equivale ao padrão de autenticidade do colecionador; sua quididade — quaisquer virtudes que o tornam único. O olhar do fotógrafo profissional, sôfrego e superiormente obstinado, é um olhar que não só resiste à classificação e à avaliação tradicionais dos temas, como busca, de forma consciente, desafiá-las e subvertê-las. Por essa razão, sua abordagem do assunto em foco é bem menos aleatória do que em geral se alega.

Em princípio, a fotografia cumpre o ditame surrealista de adotar uma atitude intransigentemente igualitária em relação ao assunto. (Tudo é “real”.) De fato, a fotografia — a exemplo do próprio gosto surrealista preponderante — revelou um apego inveterado ao lixo, a coisas repugnantes, dejetos, superfícies esfoladas, bugigangas estranhas, kitsch. Assim, Atget especializou-se nas belezas periféricas de veículos estropiados, vitrines vistosas ou fantásticas, na arte brega dos cartazes de lojas e dos carrosséis, ornatos de pórticos, curiosas aldrabas de porta e grades de ferro batido, ornamentos de gesso na fachada de casas desmanteladas. O fotógrafo — e o consumidor de fotos — segue os passos do trapeiro, um dos personagens prediletos de Baudelaire, para o poeta moderno:



Tudo o que a cidade grande jogou fora, tudo o que perdeu, tudo o que desprezou, tudo o que esmagou a seus pés, ele cataloga e recolhe. [...] Escolhe as coisas e faz uma seleção sábia; como um avarento que guarda seu tesouro, ele recolhe o refugo que vai assumir a forma de objetos úteis ou gratificantes entre os dentes da deusa da Indústria.


Fábricas desertas e avenidas atulhadas de anúncios parecem tão belas, pelo olho da câmera, como igrejas e paisagens pastorais. Mais belas, até, segundo o gosto moderno. Lembremos que foram Breton e outros surrealistas que inventaram a loja de mercadorias de segunda mão como um templo do gosto de vanguarda e alçaram a visita aos brechós à condição de um tipo de peregrinação estética. A acuidade do trapeiro surrealista estava orientada para achar belo o que os outros achavam feio ou sem interesse e relevância — bricabraque, objetos pop ou naïf, detritos urbanos.

Assim como a estruturação de uma prosa de ficção, de uma pintura, de um filme, por meio de citações — pensemos em Borges, em Kitaj, em Godard —, constitui um exemplo especializado do gosto surrealista, a prática cada vez mais comum de pendurar fotos na parede da sala de estar e dos quartos, onde antes pendiam reproduções de pinturas, é um sinal da larga difusão do gosto surrealista. Pois as próprias fotos satisfazem muitos critérios exigidos para a aprovação surrealista, por serem objetos ubíquos, baratos, pouco atraentes. Uma pintura é cedida ou é comprada; uma foto é encontrada (em álbuns e gavetas), recortada (de jornais e revistas), ou facilmente tirada pela própria pessoa. E os objetos que são fotos não só proliferam de um modo que as pinturas não fazem como são, em certo sentido, esteticamente indestrutíveis. A última ceia, de Leonardo, que está em Milão, dificilmente tem, hoje, um aspecto melhor do que em seu tempo; tem um péssimo aspecto. As fotos, quando ficam escrofulosas, embaçadas, manchadas, rachadas, empalidecidas, ainda têm um bom aspecto; muitas vezes, um aspecto até melhor. (Nisso, como em outros pontos, a arte com que a fotografia mais se parece é a arquitetura, cujas obras estão sujeitas à mesma inexorável ascensão por efeito da passagem do tempo; muitos prédios, e não só o Parthenon, provavelmente têm um aspecto melhor como ruínas.)

O que é verdade para as fotos é verdade para o mundo visto fotograficamente. A fotografia estende a descoberta da beleza das ruínas feita pelos literatos do século XIX em um gosto genuinamente popular. E estende essa beleza para além das ruínas românticas, como aquelas formas glamourosas de decrepitude fotografadas por Laughlin, até as ruínas modernistas — a realidade em si mesma. O fotógrafo, queira ele ou não, está empenhado na atividade de catar antiguidades na realidade e as próprias fotos são antiguidades instantâneas. A foto oferece uma contrapartida moderna desse gênero arquitetônico tipicamente romântico, a ruína artificial: a ruína criada a fim de enfatizar o caráter histórico de uma paisagem, tornar a natureza sugestiva — sugestiva do passado.

A contingência das fotos confirma que tudo é perecível; a arbitrariedade da evidência fotográfica indica que a realidade é fundamentalmente inclassificável. A realidade é resumida em uma série de fragmentos fortuitos — um modo infinitamente sedutor e dolorosamente redutor de lidar com o mundo. Exemplo dessa relação, em parte jubilosa, em parte desdenhosa, com a realidade, que constitui a bandeira de luta do surrealismo, a insistência do fotógrafo em que tudo é real implica também que o real não é suficiente. Ao proclamar um descontentamento fundamental com a realidade, o surrealismo prognostica uma postura de alienação que, agora, se tornou uma atitude geral nas partes do mundo politicamente poderosas, industrializadas e munidas de câmeras. Por que mais a realidade seria julgada insuficiente, insípida, excessivamente ordenada, superficialmente racional? No passado, um descontentamento com a realidade se expressava como um anseio por outro mundo. Na sociedade moderna, um descontentamento com a realidade se expressa forçosamente, e do modo mais pressuroso, no anseio de reproduzir este mundo. Como se apenas por olhar a realidade na forma de um objeto — por meio da imagem fixa da fotografia — ela fosse realmente real, ou seja, surreal.

A fotografia acarreta, inevitavelmente, certo favorecimento da realidade. O mundo passa de estar “lá fora” para estar “dentro” das fotos. Nossas cabeças estão se tornando iguais àquelas caixas mágicas que Joseph Cornell encheu com pequenos objetos incongruentes cuja origem era uma França que ele jamais visitou. Ou como um amontoado de fotos de filmes antigos, das quais Cornell reuniu uma vasta coleção à luz do mesmo espírito surrealista: como relíquias nostálgicas da experiência original do cinema, como um meio de posse simbólica da beleza dos atores. Mas a relação de uma foto de filme com um filme é intrinsecamente enganosa. Citar de um filme não é o mesmo que citar de um livro. Enquanto o tempo de leitura de um livro depende do leitor, o tempo de assistir a um filme é determinado pelo cineasta, e as imagens são percebidas como rápidas ou vagarosas apenas de acordo com sua edição. Desse modo, uma foto de um filme, que nos permite observar um único momento pelo tempo que quisermos, contradiz a própria forma do filme, assim como um conjunto de fotos que congela os momentos de uma vida ou de uma sociedade contradiz a forma destas, que é um processo, um fluxo no tempo. O mundo fotografado mantém com o mundo real a mesma relação essencialmente errônea que se verifica entre as fotos de filmes e os filmes. A vida não são detalhes significativos, instantes reveladores, fixos para sempre. As fotos sim.

A sedução das fotos, seu poder sobre nós, reside em que elas oferecem, a um só tempo, uma relação de especialista com o mundo e uma promíscua aceitação do mundo. Pois, graças à evolução da revolta modernista contra as normas estéticas tradicionais, essa relação de especialista com o mundo está profundamente envolvida na ascensão de padrões de gosto kitsch. Embora certas fotos, tomadas como objetos individuais, possuam o toque e a doce seriedade de obras de arte importantes, a proliferação de fotos constitui, em última instância, uma afirmação do kitsch. O olhar ultra móvel da fotografia lisonjeia o espectador, criando uma falsa sensação de ubiquidade, um ilusório domínio da experiência. Os surrealistas, que aspiram a ser radicais da cultura, e até revolucionários, estiveram muitas vezes sob a ilusão bem-intencionada de que podiam ser, e a rigor deviam ser, marxistas. Mas o esteticismo surrealista é embebido demais em ironia para ser compatível com a forma mais sedutora de moralismo do século XX. Marx censurava a filosofia por tentar apenas compreender o mundo em vez de tentar transformá-lo. Os fotógrafos, que trabalham nos termos da sensibilidade surrealista, sugerem a futilidade de sequer tentar compreender o mundo e, em lugar disso, propõem que o colecionemos.





continua página 51...

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Susan Sontag (16 de janeiro de 1933, Nova Iorque — 28 de dezembro de 2004) foi uma escritora, crítica de arte e ativista dos Estados Unidos.

Graduou-se na Universidade de Harvard e destacou-se por sua defesa dos direitos humanos. Publicou vários livros, entre eles Styles of Radical Will, The Way We Live Now, Against Interpretation e In America, pelo qual recebeu em 2000 um dos mais importantes prémios do seu país, o National Book Award.

Publicou artigos em revistas como The New Yorker e The New York Review of Books e no jornal The New York Times.

Num de seus últimos artigos, publicado em maio de 2004 no jornal The New York Times, Sontag afirmou que "a história recordará a Guerra do Iraque pelas fotografias e vídeos das torturas cometidas pelos soldados americanos na prisão de Abu Ghraib. Ela faleceu aos 71 anos de idade de síndrome mielodisplásica seguida de uma leucemia mielóide aguda em 28 de Dezembro de 2004.



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Copyright © 1973, 1974, 1977 by Susan Sontag
Este livro foi publicado originalmente em 1977, nos Estados Unidos,
pela Farrar, Straus & Giroux

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,
que entrou em vigor no Brasil em 2009.


Título original
On photography

Capa
Angelo Venosa

Foto de capa
Fotógrafo americano anônimo (c. 1850). /
Coleção Virginia Cuthbert Elliot, Buffalo, Nova York

Preparação
Otacílio Nunes Jr.

Revisão
Denise Pessoa
Ana Maria Barbosa

Atualização ortográfica
Página Viva

ISBN 978-85-8086-579-0

Todos os direitos desta edição reservados à
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