quarta-feira, 29 de julho de 2020

Contos Africanos : Luandino Vieira - Estória da Galinha e do Ovo... Foi Beto... (03)

Luaanda... Estória da Galinha e do Ovo


Luandino Vieira





Para Amorim e sua ngoma:
sonoros corações da nossa terra.


continuando...


Foi Beto, com sua técnica, que tirou o ovo sem assustar a Cabíri que gostava bicar quando faziam isso, cantando-lhe em voz baixa as coisas que tinha aprendido para falar nos animais. Com o ovo na mão, virando-lhe sobre a palma branca, Azulinho continuou, parecia era só para ele que estava falar, as pessoas nem estavam perceber bem o que ele falava, mas ninguém que lhe interrompia, o menino tinha fama: 

— Nem a imagem de César, nem a imagem de Deus!

Levantou os olhos gastos atrás dos óculos, mirou cada vez Zefa e Bina, concluiu:

— Nem a marca da tua galinha, Zefa; nem a marca do teu milho, Bina! Não posso dar a César o que é de César, nem a Deus o que é de Deus. Só mesmo padre Júlio é que vai falar a verdade. Assim... eu levo o ovo, vavó Bebeca!

Um murmúrio de aprovação saiu do grupo, mas nga Zefa não desistiu: o ovo não ia lhe deixar voar no fim de passar tanta discussão. Saltou na frente do rapaz, tirou-lhe o ovo da mão, muxoxou:

— Sukuama! Já viram? Agora você quer levar o ovo embora no sô padre, não é? Não, não pode! Com a sua sapiência não me intrujas, mesmo que nem sei ler nem escrever, não faz mal!

Azulinho, um pouco zangado, fez gesto de despedir, curvou o corpo, levantou a mão com os dedos postos como sô padre e saiu falando sozinho:

— Pecadoras! Queriam me tentar! As mulheres são o Diabo...

Com o tempo a fugir para a noite e as pessoas a lembrar o jantar para fazer, quando os homens iam voltar do serviço não aceitavam essa desculpa da confusão da galinha, algumas mulheres saíram embora nas suas cubatas falando se calhar vavó não ia poder resolver os casos sem passar chapada outra vez. Mas nga Zefa não desistia: queria levar o ovo e a galinha. Dona Bebeca tinha-lhe recebido o ovo para guardar, muitas vezes a mulher com a raiva, ia-lhe partir ali mesmo. Só a coitada da Cabíri, cansada com isso tudo, estava deitada outra vez no ninho de capim, à espera.

Foi nessa hora que nga Mília avistou, no outro fim da rua, descendo do maximbombo, sô Vitalino.

— Aiuê, meu azar! Já vem esse homem me cobrar outra vez! João ainda não voltou no Lucala, como vou lhe pagar? Fujo! Logo-é!...

Saiu, nas escondidas, pelo buraco do quintal, tentando esquivar nos olhos do velho.

Todo aquele lado do musseque tinha medo de sô Vitalino. O homem, nos dias do fim do mês, descia do maximbombo, vinha com a bengala dele, de castão de prata, velho fato castanho, o grosso capacete cáqui, receber as rendas das cubatas que tinha ali. E nada que perdoava, mesmo que dava encontro o homem da casa deitado na esteira, comido na doença, não fazia mal: sempre arranjava um amigo dele, polícia ou administração, para ajudar correr com os infelizes. Nesse mês vinha logo receber e só em nga Mília aceitou desculpa. A verdade, todos sabiam o homem dela, fogueiro do Cê-Êfe-Éle∗ estava para Malanje, mas o velho tinha outras idéias na cabeça: gostava segurar o bonito e redondo braço cor de café-com-leite de Emília quando falava, babando pelos buracos dos dentes, que não. precisava ter preocupação, ele sabia bem era uma mulher séria. Pedia licença, entrava na cubata para beber caneca de água fresca no muringue, pôr festas nos monas e saía sempre com a mesma conversa, nga Mília não percebia onde é o velho acabava a amizade e começava a ameaça:

— Tenha cuidado, dona Emília! A senhora está nova, essa vida de trabalho não lhe serve... Esse mês eu desculpo, volto na semana, mas pense com a cabeça; não gostava antes morar no Terra-Nova, uma casa de quintal com paus de fruta, ninguém que lhe aborrece no fim do mês com a renda?... Veja só!

Nga Emília fingia não estava ouvir, mas no coração dela a raiva só queria que seu homem estivesse aí quando o velho falasse essas porcarias escondidas, para lhe pôr umas chapadas naquele focinho de porco...

Vendo o proprietário avançar pela areia arrastando os grossos sapatos, encostado na bengala, vavó Bebeca pensou tinha de salvar Emília e o melhor era mesmo agarrar o velho.

— Boa-tarde, sô Vitalino!

— Boa-tarde, dona!

— Bessá, vavô Vitalino!... — outras mulheres faziam também coro com Bebeca, para muximar∗.

Xico e Beto, esses, já tinham corrido e, segurando na bengala, no capacete, andavam à volta dele, pedindo sempre aquilo que nenhum mona ainda tinha recebido desse camuelo.

— Me dá ‘mbora cinco tostões!

— Cinco tostões, vavô Lino! P’ra quiqüerra∗!

O velho parou para limpar a testa com um grande lenço vermelho que pôs outra vez no bolso do casaco, dobrando-lhe com cuidado:

— Boa-tarde, senhoras! — e os olhos dele, pequenos pareciam eram missangas, procuraram em todas as caras a cara que queria. Vavó adiantou:

— Ainda bem que o senhor veio, senhor sô Vitalino. Ponha ainda sua opinião nestes casos. Minhas amigas aqui estão discutir...

Falou devagar e ninguém que lhe interrompeu: para sô Vitalino, dono de muitas cubatas, que vivia sem trabalhar, os filhos estudavam até no liceu, só mesmo vavó é que podia pôr conversa de igual. Das outras não ia aceitar, com certeza disparatava-lhes.

— Quer dizer, dona Bebeca: o ovo foi posto aqui no quintal da menina Bina, não é?

— Verdade mesmo! — sorriu-se Bina.

Tirando o capacete, sô Vitalino olhou na cara zangada de Zefa com olhos de corvo c, segurando-lhe no braço, falou, a fazer troça:

— Menina Zefa! A senhora sabe de quem é a cubata onde está morar a sua vizinha Bina?

— Ih?! É do senhor.

— E sabe também sua galinha pôs um ovo no quintal dessa minha cubata? Quem deu ordem?

— Elá! Não adianta desviar assim as conversas, sô Vitalino...

— Cala a boca! — zangou o velho. — A cubata é minha, ou não é?

As mulheres já estavam a ver o caminho que sô Vitalino queria, começaram refilar, falar umas nas outras, está claro, esse assunto para o camuelo resolver, o resultado era mesmo aquele, já se sabia. Nga Bina ainda arreganhou-lhe chegando bem no velho, encostando a barriga gorda parecia queria-lhe empurrar para fora do quintal.

— E eu não paguei a renda, diz lá, não paguei, sô Vitalino?

— É verdade, minha filha, pagaste! Mas renda não é cubata, não é quintal! Esses são sempre meus, mesmo que você paga, percebe?

As mulheres ficaram mais zangadas com essas partes, mas Bina ainda tentou convencer;

— Vê ainda, sô Vitalino! A cubata é do senhor, não discuto. Mas sempre que as pessoas paga renda no fim do mês, pronto já! Fica pessoa como dono, não é?

Velho Vitalino riu os dentes pequenos e amarelos dele, mas não aceitou.

— Vocês têm cada uma!... Não interessa, o ovo é meu! Foi posto na cubata que é minha! Melhor vou chamar o meu amigo da polícia...

Toda a gente já lhe conhecia esses arreganhos e as meninas mais velhas uatobaram∗. Xico e Beto, esses, continuaram sacudir-lhe de todos os lados para procurar receber dinheiro e vavó mais nga Bina vieram mesmo empurrar-lhe na rua, metade na brincadeira, metade a sério. Vendo-lhe desaparecer a arrastar os pés pelo areal vermelho, encostado na bengala, no caminho da cubata de nga Mília, velha Bebeca avisou:

— Não perde teu tempo, sô Vitalino! Emília saiu embora na casa do amigo dela... É um rapaz da polícia! Com esse não fazes farinha!

E os risos de todas as bocas ficaram no ar dando berrida na figura torta e atrapalhada do proprietário Vitalino.

Já eram mais que cinco horas, o sol mudava sua cor branca e amarela. Começava ficar vermelho, dessa cor que pinta o céu e as nuvens e as folhas dos paus, quando vai dormir no meio do mar, deixando a noite para as estrelas e a lua. Com a saída de sô Vitalino, assim corrido e feito pouco, parecia os casos não iam se resolver mais. Nga Zefa, tão assanhada no princípio, agora mirava a Cabíri debaixo do cesto e só Bina queria convencer ainda as vizinhas ela mesmo é que tinha direito de receber o ovo,

— Mas não é? Estou pôr mentira? Digam só? Quando essas vontades atacam, temos que lhes respeitar...





continua página 94...


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∗ Cê-Éfe-Ele — C.F.L. ou Caminho de Ferro de Luanda.
∗ muximar — falar ao coração.
∗ quiqüerra — farinha de mandioca e açúcar.
∗ uatobar — fazer troça; zombar.

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José Luandino Vieira -

Com José Luandino Vieira a literatura angolana adquire dimensão internacional. Nascido a 4 de maio de 1935 e criado à vontade nos velhos musseques da Luanda antiga, o escritor recria linguagens de origens diversas e, através de sua prosa extraordinária, fixa o fato cultural local, universalizando-o. Suas atividades literárias e políticas no quadro da luta pela libertação nacional levam-no diversas vezes à prisão, num total de onze anos.

As três narrativas aqui reunidas retratam a dura realidade dos musseques angolanos - os bairros pobres de Luanda, onde o próprio autor viveu. "Minha preocupação era ser o mais fiel possível àquela realidade. [...] Se a fome, a exploração, o desemprego, surgem com muita evidência [...] é porque isso era - digamos assim - o aquário onde meus personagens e eu circulávamos", afirma Luandino.

E, dura realidade à parte, Luandino cria personagens memoráveis. Como "Vavó" Xíxi e seu neto, que, sem trabalho e sem dinheiro, não dispensa a camisa florida ou o amor de Delfina, para desespero da avó (Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos). Ou o Garrido Kam'tuta, atormentado pelo papagaio que ganhava as carícias que Inácia lhe recusava (Estória do ladrão e do papagaio). Ou nga Zefa e sua vizinha, que disputam a posse de um ovo de galinha (Estória da galinha e do ovo).

Essas histórias curtas, narradas com grande maestria e um colorido muito especial, buscam na oralidade inspiração para recriar a linguagem e nos fazem lembrar da nossa própria trajetória literária.



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a mesma lei, a mesma língua (obviamente do colonizador, um drama linguístico, né? escrever na língua do colonizador)




Luuanda 
Estórias 

Escritas no Pavilhão Prisional da PIDE e nas masmorras da l.a Esquadra da P.S.P.A., em Luanda, durante o ano de 3963. 

1.a ed. — Luanda, “ABC”, 1964. 
2.a ed. (revista) — Lisboa, Edições 70, 1972 (com uma tiragem especial de 500 + XXV exemplares). 
3.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1974. 
4.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1974. 
5.a ed. — Lisboa, Edições 70, 1976. 
6.a ed. — Lisboa/Luanda, Edições 70 — U.E.A., 1977. 
7.a ed. (livro de bolso) — Luanda, U.E.A., 1978.

— Circulou em Lisboa, em 1965, uma edição clandestina, com a indicação (falsa) de ter sido feita           em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, 
— Prêmio literário angolano Mota Veiga em 1964. 
— Grande Prêmio de Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores, 1965. 
— Tradução russa por Helena Riáusova: Luanda, na revista Innostranaya Literatura, Moscou,              1968. 


Leia também:

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