segunda-feira, 6 de julho de 2020

José Saramago - Ensaio sobre a cegueira... O mal da rapariga dos óculos escuros (04)

Ensaio sobre a cegueira




A Pilar
A minha filha Violante


Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara

Livro dos Conselhos




continuando...



O mal da rapariga dos óculos escuros não era de gravidade, tinha apenas uma conjuntivite das mais simples, que o tópico ligeiramente receitado pelo médico iria resolver em poucos dias, Já sabe, durante esse tempo só tira os óculos para dormir, dissera-lhe. O gracejo levava muitos anos de uso, é mesmo de supor que viesse passando de geração em geração de oftalmologistas, mas o efeito repetia-se de cada vez, o médico sorria ao dizê-lo, sorria o paciente ao ouvi-lo, e neste caso valia a pena, porque a rapariga tinha os dentes bonitos e sabia como mostrá-los. Por natural misantropia ou demasiadas decepções na vida, qualquer céptico comum, conhecedor dos pormenores da vida desta mulher, insinuaria que a bonitez do sorriso não passava de uma artimanha de ofício, afirmação maldosa e gratuita, porque ele, o sorriso, já tinha sido assim nos tempos não muito distantes em que a mulher fora menina, palavra em desuso, quando o futuro era uma carta fechada e a curiosidade de abri-la ainda estava por nascer. Simplificando, pois, poder-se-ia incluir esta mulher na classe das denominadas prostitutas, mas a complexidade da trama das relações sociais, tanto diurnas como nocturnas, tanto verticais como horizontais, da época aqui descrita, aconselha a moderar qualquer tendência para juízos peremptórios, definitivos, balda de que, por exagerada suficiência nossa, talvez nunca consigamos livrar-nos. Ainda que seja evidente o muito que de nuvem há em Juno, não é lícito, de todo, teimar em confundir com uma deusa grega o que não passa de uma vulgar massa de gotas de água pairando na atmosfera. Sem dúvida, esta mulher vai para a cama a troco de dinheiro, o que permitiria, provavelmente, sem mais considerações, classificá-la como prostituta de facto, mas, sendo certo que só vai quando querer e com quem quer, não é de desdenhar a probabilidade de que tal diferença de direito deva determinar cautelarmente a sua exclusão do grémio, entendido como um todo. Ela tem, como a gente norma, uma profissão, e, também como a gente normal, aproveita as horas que lhe ficam para dar algumas alegrias ao corpo e suficientes satisfações às necessidades, as particulares e as gerais. Se não se pretender reduzi-la a uma definição primária, o que finalmente se deverá dizer dela, em lato sentido, é que vive como lhe apetece e ainda por cima tira daí todo o prazer que pode.

Fizera-se noite quando saiu do consultório. Não tirou os óculos, a iluminação das ruas incomodava-a, em particular a dos anúncios. Entrou numa farmácia a comprar o medicamento que o médico tinha receitado, decidiu não se dar por achada quando o empregado que a atendia falou do injusto que é andarem certos olhos cobertos por vidros escuros, observação que, além de ser impertinente em si mesma, um ajudante de farmácia, imagine-se, contrariava a sua convicção de que os óculos escuros lhe conferiam u ar de capitoso mistério, capaz de provocar o interesse dos homens que passam, e eventualmente retribuí-lo, se não se desse, hoje, a circunstância de haver alguém à sua espera, um encontro de que tinha razões para esperar boas coisas, tanto no que se referia à satisfação material como às outras satisfações. O homem com quem ia estar era já seu conhecido, não se tinha importado quando ela avisou que não poderia tirar os óculos, ordem, aliás, que o médico ainda não dera, e até lhe achou graça, era uma novidade. À saída da farmácia, a rapariga chamou um táxi, deu o nome de um hotel. Recostada no assento, prelibava já, se o termo é próprio, as distintas e múltiplas sensações do gozo sensual, desde o primeiro e sábio roçar dos lábios, desde a primeira carícia íntima, até as sucessivas explosões de um orgasmo que iria deixá-la exausta e feliz, como se estivesse a ser crucificada, salvo seja, numa girândola ofuscante e vertiginosa. Razões portanto temos para concluir que a rapariga dos óculos escuros, se o parceiro souber cumprir cabalmente, em tempo e em técnica, a sua obrigação, paga sempre por adiantado e em dobro o que depois vem a cobrar. Em meio destes pensamentos, sem dúvida porque tinha acabado de pagar uma consulta, ela perguntou-se se não seria boa altura para subir, já a partir de hoje, o que, com risonho eufemismo, costumava designar por seu justo nível de compensação.

Mandou parar o táxi um quarteirão antes, misturou-se com as pessoas que seguiam na mesma direcção, como que deixando-se levar por elas, anónima e sem nenhuma culpa notória. Entrou no hotel com ar natural, atravessou o vestíbulo para o bar. Chegara adiantada alguns minutos, portanto devia esperar, a hora do encontro havia sido combinada com precisão. Pediu um refresco, que tomou sossegadamente, sem pôr os olhos em ninguém, não queria ser confundida com uma caçadora de homens vulgar. Um pouco mais tarde, como uma turista que sobe ao quarto a descansar depois de ter passado a tarde nos museus, dirigiu-se ao ascensor. a virtude, quem o ignorará ainda, sempre encontra escolhos no duríssimo caminho da perfeição, mas o pecado e o vício são tão favorecidos da fortuna que foi ela chegar e abrirem-se-lhe as portas do elevador. Saíram dois hóspedes, um casal idoso, ela passou para dentro, premiu o botão do terceiro andar, trezentos e doze era o número que a esperava, é aqui, bateu discretamente à porta, dez minutos depois estava nua, aos quinze gemia, aos dezoito sussurrava palavras de amor que já não tinha necessidade de fingir, aos vinte começava a perder a cabeça, aos vinte e um sentiu que o corpo se lhe despedaçava de prazer, aos vinte e dois gritou, Agora, agora, e quando recuperou a consciência disse, exausta e feliz, Ainda vejo tudo branco.    




continua... 35



__________________



José Saramago (1922-2010) foi um importante escritor português. Destacou-se como romancista, teatrólogo, poeta e contista. Recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, o Prêmio Camões, entre outros.

José Saramago nasceu em Azinhaga de Ribatejo, no concelho de Golegã, distrito de Santarém. Portugal, no dia 16 de novembro de 1922. Filho de camponeses com dois anos de idade mudou-se com a família para Lisboa.

José Saramago estreou na literatura com o romance “Terra do Pecado” (1947). Foi diretor literário de uma editora, jornalista e tradutor. Colaborou com vários jornais e revistas, entre eles, o Diário de Lisboa, A Capital e a Seara Nova, onde exerceu a função de cronista.

Sua trajetória literária passou por várias fases, a primeira, foi marcada pela poesia, com "Os Poemas Possíveis" (1966) e “Provavelmente Alegria” (1970), e pela crônica “Deste Mundo e do Outro” (1971).

A partir do final dos anos 70 dedicou-se ao teatro, escreveu “A Noite” (1979), peça que tem como cenário uma redação de um jornal na noite de 24 para 25 de abril de 1974. A peça recebeu o Prêmio da Associação de Críticos Portugueses.

A ficção de Saramago começou com o romance “Manual de Pintura e Caligrafia” (1976). Publicou dois volumes de contos “Objeto Quase” (1978) e “Poética dos Cinco Sentidos” (1979).

Como romancista o autor se consagrou ao receber o “Prêmio Cidade de Lisboa” com “Levantando do Chão” (1980), que se tornou Best-Seller internacional.

Com as obras, “Memorial do Convento” (1982), “O Ano da Morte de Ricardo Reis” (1984), (Prêmio do Pen Clube Português, o Prêmio da Crítica, o Prêmio Dom Diniz e o Prêmio do Jornal The Independente), “A Jangada de Pedra” (1988) e “História do Cerco de Lisboa” (1989), desenvolveu uma espécie de historicismo fantástico.

José Saramago pertenceu à primeira Direção da Associação Portuguesa de Escritores. Foi presidente da Assembleia Geral da Sociedade Portuguesa de Autores, entre 1985 e 1994.

O escritor publicou um título no campo da literatura infanto-juvenil, “A Maior Flor do Mundo” (2001), livro escrito em parceria com o ilustrador João Caetano, que recebeu o Prêmio Nacional de Ilustração.

José Saramago faleceu em Tias, Espanha, no dia 18 de junho de 2010.


__________________

Leia também:

José Saramago - Ensaio sobre a cegueira... O disco amarelo
José Saramago - Ensaio sobre a cegueira... Ao mover-se
José Saramago - Ensaio sobre a cegueira... O médico perguntou-lhe (03)

__________________




Um homem subitamente deixa de ver, vítima de uma cegueira branca, que começa a se espalhar, causando caos na cidade. Mas será que o caos foi causado pela cegueira? Ou o caos já existia, mas só "visto" com a chegada da cegueira?
Neste livro, Saramago aguça fortemente todos os nossos sentidos, implicando "a responsabilidade de ter olhos, quando os outros os perderam".
Um ritmo alucinante de escrita que nos faz parar para pensar se respeitamos os valores mais básicos da sociedade.
É preciso cegarem-se todos, para que enxerguemos a essência de cada um?


Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara



_____________________


se não prefere ler sem spoilers é bom não seguir daqui...




Ensaio sobre a cegueira (José Saramago)
| Você Escolheu
- Tatiana Feltrin





Nenhum comentário:

Postar um comentário