sexta-feira, 31 de julho de 2020

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (21)

 Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Vol 1


1
Estudos de Costumes 
- Cenas da Vida Privada



Memórias de duas jovens esposas





PRIMEIRA PARTE




XXI – LUÍSA DE CHAULIEU A RENATA DE L’ESTORADE



Junho


Querida corça casada, tua carta veio a propósito para justificar perante mim mesma uma audácia na qual penso noite e dia. Há não sei que apetite em mim para as coisas desconhecidas ou, se quiseres, proibidas, que me inquieta e me revela, no meu íntimo, um combate entre as leis das sociedades e as da natureza. Não sei se em mim a natureza é mais forte do que a sociedade, mas surpreendo-me a fazer transações entre essas potências. Enfim, para falar com clareza, eu queria conversar com Felipe, a sós, durante uma hora da noite, sob as tílias, no extremo do nosso jardim. Evidentemente, esse desejo é de uma rapariga que merece o título de espertalhona com que me designa a duquesa, a rir, e que meu pai confirma. Entretanto, considero essa falta prudente e avisada. Recompensando assim tantas noites passadas ao pé do muro de minha casa, quero saber o que pensará o meu Felipe da minha escapada e julgá-lo em tal momento; fazer dele meu querido esposo, se ele divinizar minha falta, ou não tornar a vê-lo nunca mais se não se mostrar mais respeitoso e mais trêmulo do que quando me saúda, ao passar por mim a cavalo nos Champs-Élysées. Quanto à sociedade, corro menos riscos vendo assim meu namorado do que quando lhe sorria em casa da sra. de Maufrigneuse ou em casa da velha marquesa de Beauséant, onde agora estamos cercados de espiões, pois sabe Deus com que olhares perseguem uma rapariga suspeitada de dar atenção a um monstro como Macumer. Oh! Se soubesses como me agitou sonhar com esse projeto, como me preocupei em ver por antecipação o modo pelo qual ele se podia realizar! Senti tua falta, teríamos tagarelado a respeito durante algumas boas horas, perdidas nos labirintos da incerteza e prelibando as boas ou más coisas de um primeiro encontro, à noite, na sombra e no silêncio, debaixo das belas tílias do palácio de Chaulieu, crivado pelas mil fulgurações do luar. Palpitei sozinha, dizendo comigo: “Ah! Renata, onde estás tu?”. A tua carta, pois, acendeu o rastilho, e os meus últimos escrúpulos se foram pelos ares. Atirei, pela janela, ao meu adorador estupefato o desenho fiel da chave do pequeno portão do jardim, com este bilhete: “O que se quer é impedi-lo de cometer loucuras. Se quebra a cabeça, fará perder a honra à pessoa a quem diz amar. Será o senhor digno de uma nova prova de estima e merecerá que lhe falem à hora em que a lua deixa na sombra as tílias do fundo do jardim?”. 

Ontem, à uma hora, no momento em que Griffith ia deitar-se, eu lhe disse:

— Pegue seu xale e acompanhe-me, minha cara; quero ir ao fundo do jardim sem que ninguém o saiba.

Ela não me retrucou uma só palavra e seguiu-me. Que sensações, minha Renata! Porque depois de esperá-lo, presa de uma deliciosa angústia, vi-o deslizando como uma sombra. Chegando ao jardim sem novidades, disse a Griffith:

— Não se admire, o barão de Macumer está ali e foi justamente por causa dele que eu a fiz vir.

Ela nada respondeu.

— Que quer de mim? — perguntou Felipe com uma voz cuja emoção revelava que o roçar de nossos vestidos no silêncio da noite e o ruído de nossos passos sobre a areia, por mais leves que fossem, o tinham posto fora de si.

— Quero dizer-lhe o que não saberia escrever — respondi-lhe.

Griffith distanciou-se seis passos de nós. Era uma dessas noites cálidas perfumada pelas flores; experimentei naquele momento um prazer embriagador ao ver-me quase só com ele na suave obscuridade das tílias, para além das quais o jardim brilhava, tanto mais quanto a fachada do palácio refletia o luar. Esse contraste oferecia uma vaga imagem do mistério de nosso amor que deve terminar pela deslumbrante publicidade de nosso casamento. Depois de um momento concedido, de lado a lado, ao prazer daquela situação nova para os dois, e em que estávamos tão assombrados um como o outro, recuperei o uso da palavra.

— Embora eu não tema a calúnia, não quero mais que suba a essa árvore — disse-lhe apontando para o olmo — nem a esse muro. Já procedemos suficientemente, o senhor como colegial, eu, como uma pensionista: elevemos nossos sentimentos à altura de nossos destinos. Se o senhor morresse na sua queda, eu morreria desonrada...

Olhei-o, estava lívido. — E se o surpreendessem nessa situação, minha mãe ou eu seríamos suspeitadas...

— Perdão — murmurou ele com voz débil.

— Passe pelo bulevar, ouvirei seus passos e, quando quiser vê-lo, abrirei a janela; mas não o farei correr e não correrei esse perigo senão em circunstâncias graves. Por que me forçou, por sua imprudência, a cometer uma outra e a dar-lhe má impressão a meu respeito?

As lágrimas que vi em seus olhos afiguraram-se-me a mais bela resposta do mundo.

— Deve compreender — disse-lhe sorrindo — que meu procedimento é excessivamente temerário...

Depois de uma ou duas voltas dadas silenciosamente sob as árvores, ele recuperou a voz:

— Deve julgar-me estúpido; e estou de tal forma inebriado de felicidade que me sinto sem forças e sem espírito; entretanto, saiba pelo menos que, a meus olhos, a senhora santifica suas ações, pelo simples fato de se permitir praticá-las. O respeito que lhe tributo só é comparável ao que sinto por Deus. De resto, miss Griffith está aí.

— Ela está ali por causa dos outros e não por nós, Felipe — disse-lhe com vivacidade.

Esse homem, querida, compreendeu-me.

— Sei perfeitamente — replicou, dirigindo-me o mais humilde olhar — que se ela ali não estivesse, tudo entre nós se passaria como se ela nos visse; se não estamos diante dos homens, estamos sempre diante de Deus e temos tanta necessidade de nossa própria estima quanto da do mundo.

— Obrigada, Felipe — disse, estendendo-lhe a mão num gesto que adivinhas. — Uma mulher, e considere-me uma mulher, sente-se bem-disposta a amar um homem que a compreenda. Oh! Somente disposta — continuei, pondo um dedo nos lábios. — Não quero que tenha mais esperanças do que aquelas que lhe quero dar. Meu coração pertencerá somente àquele que o souber ler e conhecer bem. Nossos sentimentos, sem serem absolutamente semelhantes, devem ter a mesma extensão e estar no mesmo alto nível. Não procuro engrandecer-me, pois aquilo que julgo qualidades comporta com certeza defeitos; mas se os não tivesse, ficaria desolada.

— Depois de ter me aceitado como servo, permitiu-me que a amasse — disse ele trêmulo e olhando-me a cada palavra que proferia —, tenho mais do que desejei primitivamente.

— Mas — disse-lhe eu vivamente — acho seu lote melhor do que o meu; não me queixaria se trocássemos, e essa troca está a seu cargo.

— Toca-me a mim agradecer-lhe, agora — respondeu-me — conheço os deveres de um amante leal. Devo provar-lhe que sou digno de ti, e a senhora tem o direito de pôr-me à prova tanto tempo quanto lhe pareça. Pode, meu Deus! Repelir-me se eu traísse suas esperanças.

— Sei que me ama — respondi-lhe. — Até agora (acentuei cruelmente o termo) o senhor é o preferido e eis por que está aqui.

Recomeçamos a dar algumas voltas, conversando, e devo confessar-te que, posto à vontade, meu espanhol patenteou a verdadeira eloquência do coração, expressando-me, não a sua paixão, mas a sua ternura; pois soube explicar-me seus sentimentos por uma adorável comparação com o amor divino. Sua voz penetrante, que emprestava um valor particular às suas ideias, já de si tão delicadas, assemelhava-se ao timbre do rouxinol. Falava baixo, no tom médio e grave de sua deliciosa voz, e suas frases seguiam-se com a precipitação de uma fervura; seu coração transbordava.

— Pare — disse-lhe eu —, senão ficaria aqui mais tempo do que devo.

E, com um gesto, despedi-o.

— Agora está comprometida, senhorita — disse-me Griffith.

— Talvez na Inglaterra, mas não em França. — Respondi negligentemente. — Quero casar-me por amor e não ser enganada: é tudo.

Já vês, querida, como o amor não vinha a mim, fiz como Maomé com a sua montanha.



Sexta-feira
Voltei a ver meu escravo: tornou-se tímido, tomou um ar misterioso e devoto que me agrada; afigura-se-me estar ele impressionado com a minha glória e meu poder. Nada, porém, quer nos seus olhares, quer nas suas maneiras, permite às adivinhas do mundo suspeitar nele esse infinito amor que eu vejo. Entretanto, querida, não me sinto arrebatada, dominada, domada; pelo contrário, domo, domino, arrebato... Enfim, raciocino. Ah! Bem quisera encontrar outra vez aquele medo que me causava a fascinação do professor, do burguês ao qual me recusava. Há dois amores: o que ordena e o que obedece; são diferentes e dão nascimento a duas paixões, e uma não é a outra; para ter seu quinhão da vida, é possível que uma mulher precise conhecer uma e outra. Poderão confundir-se essas duas paixões? Um homem a quem inspiramos amor também nos poderá inspirar amor? Felipe chegará a ser um dia meu senhor? Far-me-á tremer como ele hoje treme? Essas perguntas me fazem fremir. Ele é bem cego. No lugar dele, eu teria achado a srta. de Chaulieu, sob as tílias, bem faceiramente fria, moderada, calculista. Não, isso não é amor, é brincar com o fogo. Felipe continua a agradar-me como sempre, mas sinto-me agora calma e à vontade. Não há mais obstáculos, que palavra terrível! Tudo se abate em mim, tudo volta ao seu lugar e tenho medo de interrogar-me. Ele fez mal em ocultar-me a violência de seu amor, deixou-me senhora de mim mesma. Enfim, não tenho as vantagens dessa espécie de falta. Sim, querida, seja qual for a doçura que me cause a lembrança daquela meia hora que passei sob as árvores, acho o prazer que ela me deu muito inferior às emoções que eu sentia ao dizer: “Irei? Não irei? Escrever-lhe-ei? Não lhe escreverei?”. Será assim com todos os nossos prazeres? Não será melhor protelá-los do que gozá-los? Valerá a esperança mais do que a posse? Os ricos serão os pobres? Será que ambos estendemos demasiado os sentimentos, desenvolvendo desmedidamente as forças de nossa imaginação? Há momentos em que essa ideia me deixa gelada. Sabes por quê? Penso em voltar sem Griffith ao fundo do jardim. Até onde irei assim? A imaginação não tem limites, e os prazeres os têm. Dize-me, caro doutor de saias, como conciliar esses dois termos da existência da mulher?





continua pág 284...
____________________



Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.

Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844.[1] Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).

Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava.[1] De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.


_____________________

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Balzac, Honoré de, 1799-1850. 
          A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac;                            orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São                  Paulo: Globo, 2012. 

          (A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1                    0.000 kb; ePUB 

1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série. 

12-13086                                                                               cdd-843 

Índices para catálogo sistemático: 
1. Romances: Literatura francesa 843

____________________



Leia também:

Honoré Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada - Ao "Chat-Qui-Pelote" (1)
Honoré Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: O Baile de Sceaux (01)
Honoré Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: O Baile de Sceaux (07)
Honoré Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (1)
Honoré Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (1a)
Honoré Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (2)
Honoré Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (3)
Honoré Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (4)
Honoré Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (5)
Honoré Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (6)
Honoré Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (7)
Honoré Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (8)
Honoré Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (9)
Honoré Balzac - A Comédia Humana/Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (10)
Honoré Balzac - A Comédia Humana/Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (11)
Honoré Balzac - A Comédia Humana/Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (12)
Honoré Balzac - A Comédia Humana/Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (12b)
Honoré Balzac - A Comédia Humana/Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (13)
Honoré Balzac - A Comédia Humana/Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (14)
Honoré Balzac - A Comédia Humana/Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (15)
Honoré Balzac - A Comédia Humana/Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (16)
Honoré Balzac - A Comédia Humana/Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (17)
Honoré Balzac - A Comédia Humana/Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (18)
Honoré Balzac - A Comédia Humana/Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (19)
Honoré Balzac - A Comédia Humana/Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (20)
Honoré Balzac - A Comédia Humana/Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (22)


Nenhum comentário:

Postar um comentário