Albert Camus
A Peste
continuando...
Parecia abatido e preocupado, esfregando o pescoço com um gesto maquinal. Rieux perguntou-lhe como ia de saúde. O porteiro não podia dizer, na verdade, que não ia bem. Simplesmente, não se sentia em forma. Em sua opinião, era o moral que estava um pouco abatido. Aqueles ratos tinham-no perturbado, e tudo ficaria melhor quando eles desaparecessem.
Mas no dia seguinte, 18 de abril, pela manhã, o médico, ao voltar com a mãe da estação, encontrou Michel com uma expressão ainda mais abatida: do porão ao sótão, uma dezena de ratos jazia nas escadas. Os caixotes do lixo das casas vizinhas estavam cheios deles. A mãe do médico tomou conhecimento da notícia sem se admirar.
— São coisas que acontecem. — Era uma senhora de cabelos prateados, de olhos negros e meigos. — Estou satisfeita por voltar a ver-te, Bernard. Os ratos nada podem contra isso.
Ele aprovava. Era verdade que, com ela, tudo lhe parecia sempre fácil.
Entretanto, Rieux telefonou ao serviço comunal de desratização, cujo diretor conhecia. Já ouvira falar desses ratos que vinham em bandos morrer ao ar livre? Mercier, o diretor, tinha ouvido falar nisso e, no seu próprio serviço, instalado próximo ao cais, tinham sido encontrados uns cinquenta. Perguntava a si próprio se a coisa teria importância. Rieux não podia decidir, mas pensava que se impunha uma intervenção do serviço de Mercier.
— Sim — disse Mercier -, com uma ordem. Se acha que vale realmente a pena, posso tentar obter essa ordem.
— Vale sempre a pena — respondeu Rieux.
Sua empregada acabava de lhe comunicar que tinham apanhado várias centenas de ratos mortos na fábrica onde o .marido trabalhava.
Foi mais ou menos nessa época que nossos concidadãos começaram a inquietar-se com o caso, pois, a partir do dia 18, as fábricas e os depósitos vomitaram centenas de cadáveres de ratos. Em alguns casos, foi necessário acabar de matar os bichos, pois sua agonia era demasiado longa. Mas desde os bairros exteriores até o centro da cidade, por toda parte onde o Dr. Rieux passava, por toda parte onde nossos concidadãos se reuniam, os ratos esperavam em montes, nas lixeiras ou junto às sarjetas, em longas filas. A imprensa da tarde ocupou-se do caso a partir desse dia e perguntou se a municipalidade se propunha ou não a agir e que medidas de urgência tencionava adotar para proteger seus munícipes dessa repugnante invasão. A municipalidade nada se tinha proposto e nada previra, mas começou por reunir-se em conselho para deliberar. Foi dada ordem ao serviço de desratização para recolher os ratos mortos todas as madrugadas. Em seguida, dois carros do serviço de desratização deveriam transportar os animais até o forno de incineração de lixo a fim de serem queimados.
Mas, nos dias que se seguiram, a situação agravou-se. O número de roedores apanhados ia crescendo, e a coleta era a cada manhã mais abundante. A partir do quarto dia, os ratos começaram a sair para morrer em grupos. Dos porões, das adegas, dos esgotos, subiam em longas filas titubeantes, para virem vacilar à luz, girar sobre si mesmos e morrer perto dos seres humanos. À noite, nos corredores ou nas ruelas, ouviam-se distintamente seus guinchos de agonia. De manhã, nos subúrbios, encontravam-se estendidos nas sarjetas com uma pequena flor de sangue nos focinhos pontiagudos; uns inchados e pútridos; outros, rígidos e com os bigodes ainda eriçados. Na própria cidade, eram encontrados em pequenos montes nos patamares ou nos pátios. Vinham, também, morrer isoladamente nos vestíbulos das repartições, nos recreios das escolas, por vezes nos terraços dos cafés. Nossos concidadãos, estupefatos, encontravam-nos nos locais mais frequentados da cidade. A Place d’Armes, as avenidas, La Promenade de Frontde- Mer apareciam conspurcados. Limpa dos animais mortos ao amanhecer, a cidade voltava a encontrá-los pouco a pouco, cada vez mais numerosos durante o dia. Nas calçadas também, ocorria a mais de um noctívago sentir sob os pés a massa elástica de um cadáver ainda fresco, Dir-se-ia que a própria terra onde estavam plantadas nossas casas se purgava dos seus humores, pois deixava subir à superfície furúnculos que, até então, a minavam interiormente. Imaginem só o espanto da nossa pequena cidade, até então tão tranquila, transtornada em alguns dias, como um homem saudável cujo sangue espesso se pusesse de repente em revolução!
As coisas foram tão longe que a Agência Ransdoc (informações, documentação, todas as informações sobre qualquer assunto) anunciou, na emissão radiofônica de informações gratuitas, seis mil, duzentos e trinta e um ratos apanhados e queimados, só no dia 25. Este número, que dava um sentido claro ao espetáculo cotidiano que a cidade tinha diante dos olhos, aumentou a agitação. Até então, as pessoas tinham apenas se queixado de um espetáculo um pouco repugnante. Compreendia-se agora que esse fenômeno, de que não se podia ainda avaliar a amplitude nem determinar a origem, tinha qualquer coisa de ameaçador. Só o velho espanhol asmático continuava a esfregar as mãos e a repetir com uma alegria senil:
— Eles estão saindo, estão saindo.
Entretanto, a 28 de abril, a Ransdoc anunciava uma coleta de aproximadamente oito mil ratos, e a ansiedade atingiu o auge. Exigiam-se medidas radicais, acusavam-se as autoridades, e alguns que tinham casa à beira-mar já falavam em retirar-se para lá. Mas no dia seguinte, a agência anunciou que o fenômeno cessara bruscamente e que o serviço de desratização apanhara apenas uma quantidade insignificante de ratos mortos. A cidade respirou.
Contudo, foi na mesma data, ao meio-dia, que o Dr. Rieux, ao parar o carro diante de casa, viu ao fundo da rua o porteiro, que caminhava com dificuldade, de cabeça baixa, com os braços e as pernas afastados, numa atitude de fantoche. O velho apoiava-se no braço de um padre, que o doutor reconheceu. Era o Padre Paneloux, um jesuíta erudito e militante que encontrara algumas vezes, e que era muito estimado na nossa cidade, mesmo por aqueles que são indiferentes em matéria de religião. Esperou-os. O velho Michel tinha os olhos brilhantes e a respiração ruidosa. Não se sentia muito bem e tinha saído para tomar ar, mas dores vivas no pescoço, nas axilas e nas virilhas tinham-no obrigado a voltar e a pedir auxílio ao Padre Paneloux.
— São uns inchaços — disse. — Devo ter feito algum esforço. com o braço fora da porta, o médico apalpou o pescoço que ele lhe estendia. Tinha-se formado uma espécie de nó.
— Deite-se e tire a temperatura. Venho vê-lo esta tarde.
Quando o porteiro partiu, o médico perguntou ao Padre Paneloux o que achava daquela história de ratos.
— Oh — respondeu o padre -, deve ser uma epidemia.
E os olhos sorriram por detrás dos óculos redondos.
Depois do almoço, Rieux relia o telegrama da casa de saúde que lhe anunciava a chegada de sua mulher quando o telefone tocou. Era um dos seus antigos clientes, empregado da Câmara, que o chamava. Sofrera durante muito tempo de um estreitamento da aorta e, como era pobre, Rieux tratara-o de graça.
— Sim — dizia ele -, sei que se lembra de mim. Mas é de outra pessoa que se trata. Venha depressa. Aconteceu alguma coisa em casa do meu vizinho.
Falava com voz cansada. Rieux pensou no porteiro e decidiu que o veria depois. Alguns minutos mais tarde, atravessava a porta de uma casa baixa da Rue Faidherbe, num bairro periférico. No meio da escada, fria e malcheirosa, encontrou Joseph Grand, o empregado da Câmara que vinha ao seu encontro. Era um homem dos seus cinquenta anos, de bigode amarelo, alto e curvado, com os ombros estreitos e os membros magros.
— Agora estou melhor — disse, ao chegar perto de Rieux -, mas julguei que ia morrer.
Assuou o nariz. No segundo e último andar, na porta da esquerda, Rieux leu, escrito com giz vermelho. “Entre. Eu me enforquei”.
Entraram. Uma corda estava pendurada por cima de uma cadeira caída, a mesa fora empurrada para um canto. Mas ela pendia no vazio.
— Desatei-o a tempo — dizia Grand, que parecia sempre rebuscar as palavras, embora falasse a linguagem mais simples. — Ia justamente sair, quando ouvi ruído. Ao ver a inscrição, como explicar-lhe?, julguei que se tratava de uma brincadeira. Mas ele soltou um gemido engraçado, até mesmo sinistro, se assim se pode dizer.
Coçou a cabeça.
— Na minha opinião, a operação deve ser dolorosa. Naturalmente, entrei.
Tinham empurrado uma porta e encontravam-se à entrada de um quarto claro, mas pobremente mobiliado. Um homenzinho gordo estava deitado no leito de cobre, Respirava fortemente e olhava-os com olhos congestionados. O médico deteve-se. Nos intervalos da respiração, parecia-lhe ouvir guinchos de ratos. Mas nada se mexia pelos cantos. Rieux aproximou-se do leito. O homem não tinha caído de muito alto, nem muito bruscamente, e as vértebras tinham resistido. Na verdade, um pouco de asfixia. Seria necessário fazer uma radiografia. O médico deu-lhe uma injeção de óleo canforado e disse que tudo estaria bem dentro de alguns dias.
— Obrigado, doutor — agradeceu o homem, com uma voz sufocada.
Rieux perguntou a Grand se tinha avisado o comissário, e o empregado ficou com um ar confuso.
— Não, não! Pensei que o mais urgente. . .
— Sem dúvida — interrompeu Rieux. — vou fazê-lo agora.
Nesse momento, porém, o doente agitou-se e ergueu-se no leito, protestando que estava melhor e que não valia a pena.
— Acalme-se — disse Rieux. — Não tem importância, acredite, mas é necessário que eu faça a minha declaração.
— Oh! — exclamou o outro.
E atirou-se para trás, chorando com soluços curtos. Grand, que há um momento cofiava o bigode, aproximou-se dele.
— Vamos, Sr. Cottard, tente compreender. Pode-se dizer que o doutor é responsável. Se, por exemplo, o senhor tivesse vontade de recomeçar. . .
Mas Cottard, entre lágrimas, disse que não recomeçaria, que fora apenas um momento de loucura e que só desejava que o deixassem em paz. Rieux redigia uma receita.
— Entendido. Deixemos isso. Voltarei dentro de dois ou três dias. Mas não faça bobagens.
No patamar, disse a Grand que era obrigado a fazer a declaração, mas que pediria ao comissário que só procedesse ao inquérito daí a dois dias.
— É preciso vigiá-lo esta noite. Ele tem família?
— Não a conheço. Mas posso vigiá-lo eu mesmo.
Abanava a cabeça. — Tampouco posso dizer que o conheço, note bem. Mas é preciso nos ajudarmos uns aos outros.
Nos corredores da casa, Rieux olhou maquinalmente para os cantos e perguntou a Grand se os ratos tinham desaparecido totalmente do seu bairro. O funcionário nada sabia. Tinham-lhe falado, na verdade, dessa história, mas ele não prestava atenção aos boatos do bairro.
— Tenho mais com que me preocupar — afirmou. Rieux já lhe apertava a mão. Tinha pressa de ver o porteiro antes de escrever à mulher.
Os vendedores dos jornais da tarde anunciavam que a invasão dos ratos tinha parado. Mas Rieux encontrou o seu doente meio deitado para fora do leito, com uma das mãos no ventre e a outra em volta do pescoço, vomitando, com grandes arrancos, uma bílis rosada numa lata de lixo. Após grandes esforços, sem fôlego, o porteiro voltou a deitar-se. A temperatura era de trinta e nove e meio, os gânglios do pescoço e os membros tinham inchado, duas manchas escuras alastravam-se pelo flanco. Queixava-se agora de uma dor interna.
— Está ardendo — dizia ele -, esta porcaria está ardendo.
A boca fuliginosa obrigava-o a mastigar as palavras e voltava para o médico uns olhos protuberantes, dos quais a dor de cabeça fazia correr lágrimas. A mulher olhava com ansiedade para Rieux, que continuava mudo.
— Doutor — perguntou ela -, que é isto?
— Pode ser uma série de coisas. Mas não há ainda nada de certo. Até esta noite, dieta e depurativo. Deve tomar bastante líquido.
Precisamente, o porteiro sentia-se devorado pela sede. Ao voltar à casa, Rieux telefonou ao seu colega Ríchard, um dos médicos mais importantes da cidade.
— Não — dizia Richard -, não vi nada de extraordinário.
— Nem febre com inflamações locais?
— Ah! Sim, na verdade, dois casos de gânglios muito inflamados.
— Anormalmente?
— Sim — respondeu Richard -, o normal, você sabe. . .
A noite, de qualquer forma, o porteiro delirava e, com quarenta graus, queixava-se dos ratos. Rieux tentou um abscesso de fixação. Sob a queimadura da terebintina, o porteiro berrou: — Ah, são uns safados.
Os gânglios tinham aumentado, estavam duros e fibrosos ao tato. A mulher do porteiro afligia-se:
— Fique junto dele — ordenou o médico — e, se for necessário, pode me chamar.
No dia seguinte, 30 de abril, uma brisa já morna soprava sob um céu azul e úmido. Trazia um cheiro de flores que vinha dos bairros mais afastados. Nas ruas, os ruídos da manhã pareciam mais vivos, mais alegres do que habitualmente. Em toda a nossa pequena cidade, liberta da apreensão em que tinha vivido durante a semana, esse era o dia da renovação. O próprio Rieux, tranquilizado por uma carta da mulher, desceu até a casa do porteiro. E na verdade, de manhã, a febre caíra para trinta e oito graus. Enfraquecido, o doente sorria no leito.
— Está melhor, não é verdade, doutor? — perguntou a mulher.
— Vamos esperar um pouco.
A Peste
Parte I
continuando...
Parecia abatido e preocupado, esfregando o pescoço com um gesto maquinal. Rieux perguntou-lhe como ia de saúde. O porteiro não podia dizer, na verdade, que não ia bem. Simplesmente, não se sentia em forma. Em sua opinião, era o moral que estava um pouco abatido. Aqueles ratos tinham-no perturbado, e tudo ficaria melhor quando eles desaparecessem.
Mas no dia seguinte, 18 de abril, pela manhã, o médico, ao voltar com a mãe da estação, encontrou Michel com uma expressão ainda mais abatida: do porão ao sótão, uma dezena de ratos jazia nas escadas. Os caixotes do lixo das casas vizinhas estavam cheios deles. A mãe do médico tomou conhecimento da notícia sem se admirar.
— São coisas que acontecem. — Era uma senhora de cabelos prateados, de olhos negros e meigos. — Estou satisfeita por voltar a ver-te, Bernard. Os ratos nada podem contra isso.
Ele aprovava. Era verdade que, com ela, tudo lhe parecia sempre fácil.
Entretanto, Rieux telefonou ao serviço comunal de desratização, cujo diretor conhecia. Já ouvira falar desses ratos que vinham em bandos morrer ao ar livre? Mercier, o diretor, tinha ouvido falar nisso e, no seu próprio serviço, instalado próximo ao cais, tinham sido encontrados uns cinquenta. Perguntava a si próprio se a coisa teria importância. Rieux não podia decidir, mas pensava que se impunha uma intervenção do serviço de Mercier.
— Sim — disse Mercier -, com uma ordem. Se acha que vale realmente a pena, posso tentar obter essa ordem.
— Vale sempre a pena — respondeu Rieux.
Sua empregada acabava de lhe comunicar que tinham apanhado várias centenas de ratos mortos na fábrica onde o .marido trabalhava.
Foi mais ou menos nessa época que nossos concidadãos começaram a inquietar-se com o caso, pois, a partir do dia 18, as fábricas e os depósitos vomitaram centenas de cadáveres de ratos. Em alguns casos, foi necessário acabar de matar os bichos, pois sua agonia era demasiado longa. Mas desde os bairros exteriores até o centro da cidade, por toda parte onde o Dr. Rieux passava, por toda parte onde nossos concidadãos se reuniam, os ratos esperavam em montes, nas lixeiras ou junto às sarjetas, em longas filas. A imprensa da tarde ocupou-se do caso a partir desse dia e perguntou se a municipalidade se propunha ou não a agir e que medidas de urgência tencionava adotar para proteger seus munícipes dessa repugnante invasão. A municipalidade nada se tinha proposto e nada previra, mas começou por reunir-se em conselho para deliberar. Foi dada ordem ao serviço de desratização para recolher os ratos mortos todas as madrugadas. Em seguida, dois carros do serviço de desratização deveriam transportar os animais até o forno de incineração de lixo a fim de serem queimados.
Mas, nos dias que se seguiram, a situação agravou-se. O número de roedores apanhados ia crescendo, e a coleta era a cada manhã mais abundante. A partir do quarto dia, os ratos começaram a sair para morrer em grupos. Dos porões, das adegas, dos esgotos, subiam em longas filas titubeantes, para virem vacilar à luz, girar sobre si mesmos e morrer perto dos seres humanos. À noite, nos corredores ou nas ruelas, ouviam-se distintamente seus guinchos de agonia. De manhã, nos subúrbios, encontravam-se estendidos nas sarjetas com uma pequena flor de sangue nos focinhos pontiagudos; uns inchados e pútridos; outros, rígidos e com os bigodes ainda eriçados. Na própria cidade, eram encontrados em pequenos montes nos patamares ou nos pátios. Vinham, também, morrer isoladamente nos vestíbulos das repartições, nos recreios das escolas, por vezes nos terraços dos cafés. Nossos concidadãos, estupefatos, encontravam-nos nos locais mais frequentados da cidade. A Place d’Armes, as avenidas, La Promenade de Frontde- Mer apareciam conspurcados. Limpa dos animais mortos ao amanhecer, a cidade voltava a encontrá-los pouco a pouco, cada vez mais numerosos durante o dia. Nas calçadas também, ocorria a mais de um noctívago sentir sob os pés a massa elástica de um cadáver ainda fresco, Dir-se-ia que a própria terra onde estavam plantadas nossas casas se purgava dos seus humores, pois deixava subir à superfície furúnculos que, até então, a minavam interiormente. Imaginem só o espanto da nossa pequena cidade, até então tão tranquila, transtornada em alguns dias, como um homem saudável cujo sangue espesso se pusesse de repente em revolução!
As coisas foram tão longe que a Agência Ransdoc (informações, documentação, todas as informações sobre qualquer assunto) anunciou, na emissão radiofônica de informações gratuitas, seis mil, duzentos e trinta e um ratos apanhados e queimados, só no dia 25. Este número, que dava um sentido claro ao espetáculo cotidiano que a cidade tinha diante dos olhos, aumentou a agitação. Até então, as pessoas tinham apenas se queixado de um espetáculo um pouco repugnante. Compreendia-se agora que esse fenômeno, de que não se podia ainda avaliar a amplitude nem determinar a origem, tinha qualquer coisa de ameaçador. Só o velho espanhol asmático continuava a esfregar as mãos e a repetir com uma alegria senil:
— Eles estão saindo, estão saindo.
Entretanto, a 28 de abril, a Ransdoc anunciava uma coleta de aproximadamente oito mil ratos, e a ansiedade atingiu o auge. Exigiam-se medidas radicais, acusavam-se as autoridades, e alguns que tinham casa à beira-mar já falavam em retirar-se para lá. Mas no dia seguinte, a agência anunciou que o fenômeno cessara bruscamente e que o serviço de desratização apanhara apenas uma quantidade insignificante de ratos mortos. A cidade respirou.
Contudo, foi na mesma data, ao meio-dia, que o Dr. Rieux, ao parar o carro diante de casa, viu ao fundo da rua o porteiro, que caminhava com dificuldade, de cabeça baixa, com os braços e as pernas afastados, numa atitude de fantoche. O velho apoiava-se no braço de um padre, que o doutor reconheceu. Era o Padre Paneloux, um jesuíta erudito e militante que encontrara algumas vezes, e que era muito estimado na nossa cidade, mesmo por aqueles que são indiferentes em matéria de religião. Esperou-os. O velho Michel tinha os olhos brilhantes e a respiração ruidosa. Não se sentia muito bem e tinha saído para tomar ar, mas dores vivas no pescoço, nas axilas e nas virilhas tinham-no obrigado a voltar e a pedir auxílio ao Padre Paneloux.
— São uns inchaços — disse. — Devo ter feito algum esforço. com o braço fora da porta, o médico apalpou o pescoço que ele lhe estendia. Tinha-se formado uma espécie de nó.
— Deite-se e tire a temperatura. Venho vê-lo esta tarde.
Quando o porteiro partiu, o médico perguntou ao Padre Paneloux o que achava daquela história de ratos.
— Oh — respondeu o padre -, deve ser uma epidemia.
E os olhos sorriram por detrás dos óculos redondos.
Depois do almoço, Rieux relia o telegrama da casa de saúde que lhe anunciava a chegada de sua mulher quando o telefone tocou. Era um dos seus antigos clientes, empregado da Câmara, que o chamava. Sofrera durante muito tempo de um estreitamento da aorta e, como era pobre, Rieux tratara-o de graça.
— Sim — dizia ele -, sei que se lembra de mim. Mas é de outra pessoa que se trata. Venha depressa. Aconteceu alguma coisa em casa do meu vizinho.
Falava com voz cansada. Rieux pensou no porteiro e decidiu que o veria depois. Alguns minutos mais tarde, atravessava a porta de uma casa baixa da Rue Faidherbe, num bairro periférico. No meio da escada, fria e malcheirosa, encontrou Joseph Grand, o empregado da Câmara que vinha ao seu encontro. Era um homem dos seus cinquenta anos, de bigode amarelo, alto e curvado, com os ombros estreitos e os membros magros.
— Agora estou melhor — disse, ao chegar perto de Rieux -, mas julguei que ia morrer.
Assuou o nariz. No segundo e último andar, na porta da esquerda, Rieux leu, escrito com giz vermelho. “Entre. Eu me enforquei”.
Entraram. Uma corda estava pendurada por cima de uma cadeira caída, a mesa fora empurrada para um canto. Mas ela pendia no vazio.
— Desatei-o a tempo — dizia Grand, que parecia sempre rebuscar as palavras, embora falasse a linguagem mais simples. — Ia justamente sair, quando ouvi ruído. Ao ver a inscrição, como explicar-lhe?, julguei que se tratava de uma brincadeira. Mas ele soltou um gemido engraçado, até mesmo sinistro, se assim se pode dizer.
Coçou a cabeça.
— Na minha opinião, a operação deve ser dolorosa. Naturalmente, entrei.
Tinham empurrado uma porta e encontravam-se à entrada de um quarto claro, mas pobremente mobiliado. Um homenzinho gordo estava deitado no leito de cobre, Respirava fortemente e olhava-os com olhos congestionados. O médico deteve-se. Nos intervalos da respiração, parecia-lhe ouvir guinchos de ratos. Mas nada se mexia pelos cantos. Rieux aproximou-se do leito. O homem não tinha caído de muito alto, nem muito bruscamente, e as vértebras tinham resistido. Na verdade, um pouco de asfixia. Seria necessário fazer uma radiografia. O médico deu-lhe uma injeção de óleo canforado e disse que tudo estaria bem dentro de alguns dias.
— Obrigado, doutor — agradeceu o homem, com uma voz sufocada.
Rieux perguntou a Grand se tinha avisado o comissário, e o empregado ficou com um ar confuso.
— Não, não! Pensei que o mais urgente. . .
— Sem dúvida — interrompeu Rieux. — vou fazê-lo agora.
Nesse momento, porém, o doente agitou-se e ergueu-se no leito, protestando que estava melhor e que não valia a pena.
— Acalme-se — disse Rieux. — Não tem importância, acredite, mas é necessário que eu faça a minha declaração.
— Oh! — exclamou o outro.
E atirou-se para trás, chorando com soluços curtos. Grand, que há um momento cofiava o bigode, aproximou-se dele.
— Vamos, Sr. Cottard, tente compreender. Pode-se dizer que o doutor é responsável. Se, por exemplo, o senhor tivesse vontade de recomeçar. . .
Mas Cottard, entre lágrimas, disse que não recomeçaria, que fora apenas um momento de loucura e que só desejava que o deixassem em paz. Rieux redigia uma receita.
— Entendido. Deixemos isso. Voltarei dentro de dois ou três dias. Mas não faça bobagens.
No patamar, disse a Grand que era obrigado a fazer a declaração, mas que pediria ao comissário que só procedesse ao inquérito daí a dois dias.
— É preciso vigiá-lo esta noite. Ele tem família?
— Não a conheço. Mas posso vigiá-lo eu mesmo.
Abanava a cabeça. — Tampouco posso dizer que o conheço, note bem. Mas é preciso nos ajudarmos uns aos outros.
Nos corredores da casa, Rieux olhou maquinalmente para os cantos e perguntou a Grand se os ratos tinham desaparecido totalmente do seu bairro. O funcionário nada sabia. Tinham-lhe falado, na verdade, dessa história, mas ele não prestava atenção aos boatos do bairro.
— Tenho mais com que me preocupar — afirmou. Rieux já lhe apertava a mão. Tinha pressa de ver o porteiro antes de escrever à mulher.
Os vendedores dos jornais da tarde anunciavam que a invasão dos ratos tinha parado. Mas Rieux encontrou o seu doente meio deitado para fora do leito, com uma das mãos no ventre e a outra em volta do pescoço, vomitando, com grandes arrancos, uma bílis rosada numa lata de lixo. Após grandes esforços, sem fôlego, o porteiro voltou a deitar-se. A temperatura era de trinta e nove e meio, os gânglios do pescoço e os membros tinham inchado, duas manchas escuras alastravam-se pelo flanco. Queixava-se agora de uma dor interna.
— Está ardendo — dizia ele -, esta porcaria está ardendo.
A boca fuliginosa obrigava-o a mastigar as palavras e voltava para o médico uns olhos protuberantes, dos quais a dor de cabeça fazia correr lágrimas. A mulher olhava com ansiedade para Rieux, que continuava mudo.
— Doutor — perguntou ela -, que é isto?
— Pode ser uma série de coisas. Mas não há ainda nada de certo. Até esta noite, dieta e depurativo. Deve tomar bastante líquido.
Precisamente, o porteiro sentia-se devorado pela sede. Ao voltar à casa, Rieux telefonou ao seu colega Ríchard, um dos médicos mais importantes da cidade.
— Não — dizia Richard -, não vi nada de extraordinário.
— Nem febre com inflamações locais?
— Ah! Sim, na verdade, dois casos de gânglios muito inflamados.
— Anormalmente?
— Sim — respondeu Richard -, o normal, você sabe. . .
A noite, de qualquer forma, o porteiro delirava e, com quarenta graus, queixava-se dos ratos. Rieux tentou um abscesso de fixação. Sob a queimadura da terebintina, o porteiro berrou: — Ah, são uns safados.
Os gânglios tinham aumentado, estavam duros e fibrosos ao tato. A mulher do porteiro afligia-se:
— Fique junto dele — ordenou o médico — e, se for necessário, pode me chamar.
No dia seguinte, 30 de abril, uma brisa já morna soprava sob um céu azul e úmido. Trazia um cheiro de flores que vinha dos bairros mais afastados. Nas ruas, os ruídos da manhã pareciam mais vivos, mais alegres do que habitualmente. Em toda a nossa pequena cidade, liberta da apreensão em que tinha vivido durante a semana, esse era o dia da renovação. O próprio Rieux, tranquilizado por uma carta da mulher, desceu até a casa do porteiro. E na verdade, de manhã, a febre caíra para trinta e oito graus. Enfraquecido, o doente sorria no leito.
— Está melhor, não é verdade, doutor? — perguntou a mulher.
— Vamos esperar um pouco.
Nenhum comentário:
Postar um comentário