quarta-feira, 29 de julho de 2020

Úrsula - I Duas almas generosas (2)

Maria Firmina dos Reis





I

Duas almas generosas
 


continuando...


Caminhava com cuidado, e parecia bastante familiarizado com o lugar cheio de barrocais, e ainda mais com o calor do dia em pino, porque caminhava tranquilo.

E mais e mais se aproximava ele do cavaleiro desmaiado; porque seus passos para ali se dirigiam, como se a Providência os guiasse. Ao endireitar-se para um bosque à cata sem dúvida da fonte que procurava, seus olhos se fixaram sobre aquele triste espetáculo.

— Deus meu! – exclamou correndo para o desconhecido.

E ao coração tocou-lhe piedoso interesse, vendo esse homem lançado por terra, tinto em seu próprio sangue, e ainda oprimido pelo animal já morto. E ao aproximar-se contemplou em silêncio o rosto desfigurado do mancebo; curvou-se e pôs-lhe a mão sobre o peito, e sentiu lá no fundo frouxas e espaçadas pulsações, e assomou-lhe ao rosto riso fagueiro de completo enlevo; da mais íntima satisfação. O mancebo respirava ainda.

— Que ventura! – então disse ele, erguendo as mãos ao céu – que ventura, podê-lo salvar!

O homem que assim falava era um pobre rapaz, que ao muito parecia contar vinte e cinco anos, e que na franca expressão de sua fisionomia deixava adivinhar toda a nobreza de um coração bem formado. O sangue africano fervia-lhe nas veias; o mísero ligava-se à odiosa cadeia da escravidão; e embalde o sangue ardente que herdara de seus pais, e que o nosso clima e a servidão não puderam resfriar, embalde – dissemos – se revoltava, porque se lhe erguia como barreira – o poder do forte contra o fraco!...

Ele entanto resignava-se; e se uma lágrima a desesperação lhe arrancava, escondia-a no fundo da sua miséria.

Assim é que o triste escravo arrasta a vida de desgostos e de martírios, sem esperança e sem gozos! Oh! Esperança! Só a tem os desgraçados no refúgio que a todos oferece a sepultura!... Gozos!... Só na eternidade os anteveem eles!

Coitado do escravo! Nem o direito de arrancar do imo peito um queixume de amargurada dor!...

Senhor Deus! Quando calará no peito do homem a tua sublime máxima – ama a teu próximo como a ti mesmo –, e deixará de oprimir com tão repreensível injustiça ao seu semelhante!... Àquele que também era livre no seu país... Àquele que é seu irmão?

E o mísero sofria; porque era escravo, e a escravidão não lhe embrutecera a alma; porque os sentimentos generosos, que Deus lhe implantou no coração, permaneciam intactos e puros como a sua alma. Era infeliz, mas era virtuoso; e por isso seu coração enterneceu-se em presença da dolorosa cena, que se lhe ofereceu à vista.

Reunindo todas as suas forças, o jovem escravo arrancou de sob o pé ulcerado do desconhecido o cavalo morto, e deixando-o por um momento, correu à fonte para onde uma hora antes se dirigia, encheu o cântaro, e com extrema velocidade voltou para junto do enfermo, que com desvelado interesse procurou reanimar. Banhou-lhe a fronte com água fresca, depois de ter com piedosa bondade colocado-lhe a cabeça sobre seus joelhos. Só Deus testemunhava aquela cena tocante e admirável, tão cheia de unção e de caridoso desvelo! E ele continuava a sua obra de piedade, esperando ansioso a ressurreição do desconhecido, que tanto o interessava.

Finalmente seu coração pulsou de íntima satisfação; porque o mancebo, pouco e pouco revocando a vida, abriu os olhos lânguidos pela dor, e os fitou nele, como que estupefato e surpreso do que via.

Deixou fugir um breve suspiro, que talvez a pesar seu se lhe destacasse do coração, e sem proferir uma palavra de novo cerrou os olhos.

Talvez a extrema claridade do dia os afetasse; ou ele supusesse mórbida visão o que era realidade.

Entretanto o negro redobrava de cuidados, de novo aflito pela mudez do seu doente. E o dia crescia mais, e o sol, requeimando a erva do campo, abrasava as faces pálidas do jovem cavaleiro, que soltando um outro gemido mais prolongado e mais doído, de novo abriu os olhos.

Tentou então erguer-se como envergonhado de uma fraqueza a que irremissivelmente qualquer cedera; porém desalentado e amortecido foi cair nos braços do compassivo escravo, única testemunha de tão longas dores e desmaios, e que em silêncio o observava. Mas esta segunda síncope, menos prolongada que a primeira, não afligiu tanto ao mísero rapaz, que dedicadamente o reanimava. A febre começou a tingir de rubor aquela fronte pálida, dando vida fictícia a uns olhos, que um momento antes pareciam descair para o túmulo.

— Quem és? – perguntou o mancebo ao escravo apenas saído do seu letargo. – Por que assim mostras interessar-te por mim?...

— Senhor! – balbuciou o negro – vosso estado... Eu – continuou, com o acanhamento que a escravidão gerava – suposto nenhum serviço vos possa prestar, todavia quisera poder ser-vos útil. Perdoai-me!...

— Eu? – atalhou o cavaleiro com efusão de reconhecimento – Eu perdoar-te! Pudera todos os corações assemelharem-se ao teu. E fitando-o, apesar da perturbação do seu cérebro, sentiu pelo jovem negro interesse igual talvez ao que este sentia por ele. Então nesse breve cambiar de vistas, como que essas duas almas mutuamente se falharam, exprimindo uma o pensamento apenas vago que na outra errava.

Entretanto o pobre negro, fiel ao humilde hábito do escravo, com os braços cruzados sobre o peito, descaía agora a vista para a terra, aguardando tímido uma nova interrogação.

Apesar da febre, que despontava, o cavaleiro começava a coordenar suas ideias, e as expressões do escravo, e os serviços que lhe prestara, tocaram-lhe o mais fundo do coração. É que em seu coração ardiam sentimentos tão nobres e generosos como os que animavam a alma do jovem negro: por isso, num transporte de íntima e generosa gratidão, o mancebo, arrancando a luva que lhe calçava a destra, estendeu a mão ao homem que o salvara. Mas este, confundido e perplexo, religiosamente ajoelhando, tomou respeitoso e reconhecido essa alva mão, que o mais elevado requinte de delicadeza lhe oferecia, e com humildade tocante extasiado beijou-a.

Esse beijo selou para sempre a mútua amizade que em seus peitos sentiam eles nascer e vigorar. As almas generosas são sempre irmãs.

— Não foste por ventura o meu salvador? – perguntou o cavaleiro com acento reconhecido, retirando dos lábios do negro a mão, e malgrado a visível turbação deste apertando-lhe com transporte a mão grosseira; mas onde descobria, com satisfação, lealdade e pureza.

— Meu amigo, – continuou – podes acreditar no meu reconhecimento e na minha amizade. Quem quer que sejas, eu a prometo: sou para ti um desconhecido; e inda assim foste generoso e desinteressado. Arrancando-me à morte tens desempenhado a mais nobre missão de que o homem está incumbido por Deus – a fraternidade. Continua, agora peço-te em nome da amizade que te consagro, continua a tua obra de generosidade; porque sinto que tenho febre, e não me posso erguer. Arreda-me destes lugares se te é possível; porque... – e a voz, que era fraca, expirou nos lábios; porque ama ao seu próximo... E eu te auguro um melhor futuro. E te dedicaste por mim! Oh! Quanto me hás penhorado! Se eu te pudera compensar generosamente... Túlio – acrescentou após breve pausa – oh dize, dize, meu amigo, o que de mim exiges; porque toda a recompensa será mesquinha para tamanho serviço.

— Ah! Meu senhor – exclamou o escravo enternecido – como sois bom! Continuai, eu vo-lo suplico, em nome do serviço que vos presto, e a que tanta importância quereis dar, continuai, pelo céu, a ser generoso e compassivo para com todo aquele que, como eu, tiver a desventura de ser vil e miserável escravo! Costumados como estamos ao rigoroso desprezo dos brancos, quanto nos será doce vos encontrarmos no meio das nossas dores! Se todos eles, meu senhor, se assemelhassem a vós, por certo mais suave nos seria a escravidão.

E o cavaleiro perguntou-lhe:

— Essa é, Túlio, toda a recompensa que exiges?

— Sim, meu senhor. Fizeste-me tão feliz, que nada mais ambiciono; e rendendo a Deus graças pela minha presente ventura, suplico-lhe que vos cubra de bênçãos, e que vele sobre vós a sua bondade infinita.

E o negro dizia uma verdade; era o primeiro branco que tão doces palavras lhe havia dirigido; e sua alma, ávida de uma outra alma que a compreendesse, transbordava agora de felicidade e de reconhecimento.

Pobre Túlio!

E o mancebo sentia mais e mais crescer-lhe as dores, e as ideias se lhe barulhavam: entretanto Túlio aproximava-se da casa de sua senhora para onde conduzia o moço enfermo.

Empregava para isso todas as suas forças, porque conhecia que o moço sofria cruelmente.

Dentro em pouco sua tarefa concluiu-se. Túlio penetrou, rendido de cansaço, o lumiar da porta.

Simples e solitária era essa casa implantada sobre um pequeno outeiro, donde a vista dominava a imensidade dos campos. Um aspecto de nobre singeleza apresentava; pouco extensa era, mas coroava-a agradável mirante, orlado de largas varandas, por onde uma onda de ar tépido divagava rumorejando.

Esplêndida claridade de um sol vivo e animador iluminava as nuas e brancas paredes dessa plácida morada, e dardejando nas vidraças das janelas, refletia sobre elas as cores cambiantes do ocaso. Aí parecia gozar-se a vida; – aí ao menos o homem terá um momento de felicidade; porque longe do buliço enganoso do mundo, com a mente erma de ambições, vive nas regiões sublimes de um pensar livre e infinito como a amplidão – como Deus. A existência é serena, mais pura, e mais formosa; – aí despe-se a vaidade do coração; – aí cessam os mentirosos preconceitos, que o homem ergueu em seu orgulho – vergonhosos limites contra os quais vão quebrar-se de encontro os virtuosos transportes do seu coração.

Quanto é o homem egoísta e vão!...

Túlio franqueou a entrada da casa de Luísa B. no momento mesmo em que o jovem desconhecido, alquebrado pelo muito sofrer de algumas horas, acabava de cair em completa e profunda letargia.





continua pág 32...

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Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luís, no Maranhão, no dia 11 de outubro de 1825. Filha bastarda de João Pedro Esteves e Leonor Felipe dos Reis. Foi uma escritora brasileira, considerada a primeira romancista brasileira.

Em 1847, aos 22 anos, ela foi aprovada em um concurso público para a Cadeira de Instrução Primária, sendo assim a primeira professora concursada de seu Estado. Maria demonstrou sua afinidade com a escrita ao publicar “Úrsula” em 1859, primeiro romance abolicionista, primeiro escrito por uma mulher negra brasileira.

O romance “Úrsula” consagrou Maria Firmina como escritora e também foi o primeiro romance da literatura afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afrodescendente. Em 1887, no auge da campanha abolicionista, a escritora publica o livro “A Escrava”, reforçando sua postura antiescravista.

Ao aposentar-se, em 1880, fundou uma escola mista e gratuita. Maria morre aos 92 anos, na cidade de Guimarães, no dia 11 de novembro de 1917.

Em 1975, Maria recebe uma homenagem de José Nascimento Morais Filho que publica a primeira biografia da escritora, Maria Firmina: fragmentos de uma vida.

A importância da obra de Firmina, primeira escritora negra de que se tem notícia em nossa literatura, se deve ao pioneirismo na denúncia da opressão a negros e mulheres no Brasil do século XIX. Antes do Navio negreiro de Castro Alves, declamado pela primeira vez em 1868, Firmina já descrevia em seu livro Úrsula, de 1859, a crueldade do tráfico de pessoas sequestradas na África e transportadas nos porões dos “tumbeiros”. Neste mesmo romance, a crítica da escritora abrange o retrato lamentável da condição feminina da época ao delinear personagens como o pai de Tancredo ou o comendador, tiranos não só de escravos, mas também de mulheres. 

Maria Firmina foi uma voz profundamente legítima e dissonante que não encontrou acolhida e reconhecimento em seu tempo. Longe de fracassar, essa voz ressoa hoje cheia de significado, recriminando males que ainda assombram e permeiam nossa sociedade.

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Leia também:

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Úrsula - Maria Firmina dos Reis: uma voz em conflito
Úrsula - Prólogo
Úrsula - I   Duas almas generosas (1)
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