quarta-feira, 22 de julho de 2020

Lima Barreto - 18. O Caçador Doméstico

Lima Barreto

O Homem que sabia Javanês e outros contos





O Caçador Doméstico




O SIMÕES ERA descendente de uma famosa família dos Feitais, do Estado do Rio, de que o 13 de Maio arrebatou mais de mil escravos.

Uma verdadeira fortuna, porque escravo, naquelas épocas, apesar da agitação abolicionista, era mercadoria valorizada. Valia bem um conto de réis a cabeça, portanto os tais de Feitais perderam cerca ou mais de mil contos.

De resto, era mercadoria que não precisava muitos cuidados. Antes da lei do ventre livre, a sua multiplicação ficava aos cuidados dos senhores e depois... também.

Esses Feitais eram célebres pelo sadio tratamento de gado de engorda que davam aos seus escravos e também pela sua teimosia escravagista.

Se não eram requintadamente cruéis para com os seus cativos, tinham, em oposição, um horror extraordinário à carta de alforria.

Não davam uma, fosse por que pretexto fosse.

Conta-se até que o velho Feital, tendo um escravo mais claro que mostrava aptidões para os estudos, dera-lhe professores e o matriculara na Faculdade de Medicina.

Quando o rapaz ia terminar o curso, retirara-o dela, trouxera-o para a fazenda, da qual o fizera médico, mas nunca lhe dera carta de liberdade, embora o tratasse como homem livre e o fizesse tratar assim por todos.

Simões vinha dessa gente que empobrecera de uma hora para outra.

Muito tapado, não soubera aproveitar as relações de família, para formar-se em qualquer cousa e arranjar boas sinecuras, entre as quais a de deputado, para a qual estava a calhar, pois de família do partido escravagista-conservador, tinha o mais lindo estofo para ser um republicano do mais puro quilate brasileiro.

Fez-se burocrata; e, logo que os vencimentos deram para a cousa, casou com uma Magalhães Borromeu, de Santa Maria Madalena, cuja família também se havia arruinado com a abolição.

Na repartição, o Simões não se fez de trouxa. Aproveitou as relações e amizades de família, para promoções, preterindo toda a gente.

Quando chegou, aí, por chefe de secção; lembrou-se que descendia de gente de lavoura e mudou-se para os subúrbios, onde teria alguma ideia da roça, onde nascera.

Os restos de matas que há por aquelas paragens, deram-lhe lembranças saudosas da sua mocidade nas fazendas de seus tios. Lembrou-se que caçava; lembrou-se da sua matilha para caititus e pacas; e deu em criar cachorros que adestrava para a caça, como se tivesse de fazer alguma.

No lugar em que morava, só havia uma espécie de caça rasteira: eram preás porém nos capinzais; mas, Simões, que era da nobre família dos Feitais de Pati e adjacências, não podia entregar-se a torneio tão vagabundo.

Como havia de empregar a sua gloriosa matilha?

À sua perversidade inata acudiu-lhe logo um alvitre : caçar os frangos e outros galináceos da vizinhança que, fortuitamente, lhe iam ter no quintal.

Era ver um frango de qualquer vizinho, imediatamente estumava a cachorrada que estraçalhava em três tempos o bicharoco.

Os vizinhos acostumados com os pacatos moradores antigos estranharam a maldade de semelhante imbecil que se fazia mudo às reclamações da pobre gente que lhe morava em torno.

Cansados com as proezas do caçador doméstico de frangos e patos resolveram por termo a elas.

Trataram de mal-assombrar a casa. Contrataram um moleque jeitoso que se metia no forro da casa, à noite e lá arrastava correntes.

Simões lembrou-se dos escravos dos seus parentes Feitais e teve remorsos. Um dia assustou-se tanto que correu espavorido para o quintal, alta noite, em trajes menores, com o falar transtornado. Os seus molossos não o conheceram e o puseram no estado em que punham os incautos frangos da vizinhança: estraçalharam-no.

Tal foi o fim de um dos últimos rebentos dos poderosos Feitais de Barra Mansa.






O caçador doméstico (Conto), de Lima Barreto





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Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…

Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.

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O homem que sabia Javanês e outros contos, de Lima Barreto 

Fonte: 
BARRETO, Lima. O homem que sabia javanês e outros contos. Curitiba: Polo Editorial do Paraná, 1997.
Texto proveniente de: 
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Texto-base digitalizado por: 
Rodrigo Souza, Curitiba - PR 

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