terça-feira, 7 de julho de 2020

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (20)

 Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Vol 1


1
Estudos de Costumes 
- Cenas da Vida Privada



Memórias de duas jovens esposas





PRIMEIRA PARTE




XX – RENATA DE L’ESTORADE A LUÍSA DE CHAULIEU



Maio


Se o amor é a vida do mundo, por que motivo filósofos austeros o suprimem no casamento? Por que a sociedade torna por lei suprema sacrificar a mulher à família, criando por essa forma, necessariamente, uma luta surda no seio do casamento? Luta por ela prevista e tão perigosa que inventou poderes para armar o homem contra nós, adivinhando que nós tudo podíamos anular, fosse pelo poder da ternura ou pela persistência de um ódio oculto. Vejo neste momento, no matrimônio, duas forças opostas que o legislador deveria ter reunido; quando se reunirão? Eis o que a mim mesma dizia ao ler-te. Ó querida, uma única carta tua derruba o edifício construído pelo grande escritor do Aveyron [135] e onde eu me alojara com uma doce satisfação! As leis foram feitas por anciões, e as mulheres o percebem; muito avisadamente eles decretaram que o amor conjugal isento de paixão não nos avilta, e que uma mulher devia entregar-se sem amor, uma vez que a lei autorizasse a um homem fazê-la sua. Preocupados com a família, eles imitaram a natureza, ciosa unicamente de perpetuar a espécie. Antes, eu era um ser, agora, sou uma coisa! Mais de uma lágrima devorei ao longe, sozinha, que eu bem quisera ter trocado por um sorriso consolador. De onde vem a desigualdade de nossos destinos? O amor permitido engrandece tua alma. Para ti, a virtude se encontrará no prazer. Sofrerás somente de teu próprio querer. Teu dever, se te casas com Felipe, tornar-se-á o mais doce, o mais expansivo dos sentimentos. Nosso porvir há de dar a resposta, e eu a espero com inquieta curiosidade.

Amas, és adorada. Ó querida, entrega-te toda a esse belo poema que tanto nos preocupou! Essa beleza da mulher, tão fina e tão espiritualizada em ti, Deus a fez assim para que ela encante e agrade: ele tem seus desígnios. Sim, meu anjo, esconde bem o segredo de tua ternura e trata de submeter Felipe às provas sutis que nós inventamos para saber se o amante com que sonhávamos é digno de nós. Procura saber menos se ele te ama do que se tu o amas: nada tão enganador como a miragem produzida em nossa alma pela curiosidade, pelo desejo, pela crença na felicidade. Suplico-te, tu, a única de nós duas que ficas intata, querida, não te arrisques sem arras no mercado perigoso de um casamento irrevogável! Por vezes um gesto, uma palavra, um olhar, numa conversação sem testemunhas, quando as almas estão despidas de sua hipocrisia mundana, desvendam abismos. És suficientemente nobre, suficientemente senhora de ti mesma para poderes ousadamente enveredar por caminhos em que outras se perderiam. Não podes imaginar com que ansiedade eu te acompanho. Apesar da distância, vejo-te, sinto tuas emoções. Por isso, não deixes de escrever-me, sem nada omitir! Tuas cartas dão um sabor passional à minha vida doméstica tão simples, tão tranquila, uniforme como a estrada real num dia de sol. O que aqui se passa, meu anjo, é uma sequência de chicanas comigo mesma, das quais hoje quero guardar segredo, e que só mais tarde te revelarei. Dou-me e retomo-me com sombria obstinação, do desânimo à esperança. É bem possível que eu esteja pedindo à vida mais ventura do que ela nos deve. Nos tenros anos, temos tendência a querer que o ideal e o positivo se harmonizem. Minhas reflexões, e faço-as agora, sozinha, sentada no sopé de um rochedo de meu parque, levaram-me a pensar que o amor no casamento é um acaso sobre o qual é impossível basear a lei que deve reger tudo. O meu filósofo do Aveyron tem razão em considerar a família como a única unidade social possível e a ela submeter a mulher, como sempre aconteceu. A solução desse assunto, quase terrível para nós, está no primeiro filho que temos. Por isso quisera ser mãe, quando mais não fosse para dar pasto à devoradora atividade de minha alma.

Luís continua de uma adorável bondade, seu amor é ativo, e minha ternura é abstrata; ele é feliz, colhe, ele só, as flores, sem se preocupar com os esforços da terra que as produz. Feliz egoísmo! Por mais que me custe, presto-me às suas ilusões como uma mãe, que, de acordo com a ideia que formo de uma mãe, se despedaça para proporcionar um prazer ao filho. Sua alegria é tão profunda que lhe cerra os olhos e projeta sobre mim seus reflexos. Engano-o pelo sorriso ou pelo olhar cheio da satisfação que me causa a certeza de o fazer feliz. Por isso o nome carinhoso que lhe dou na intimidade é “meu filho”! Espero o fruto de tantos sacrifícios que serão um segredo entre Deus, tu e eu. A maternidade é uma empresa para a qual abri um enorme crédito; ela muito me deve hoje, temo que não me pague suficientemente: ela está encarregada de desenvolver minha energia e de engrandecer meu coração, de me compensar com venturas ilimitadas. Ó meu Deus, que eu não seja ludibriada! Aí está todo o meu futuro e, coisa aterradora de pensar, o da minha virtude.





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Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.

Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844.[1] Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).

Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava.[1] De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.


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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Balzac, Honoré de, 1799-1850. 
          A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac;                            orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São                  Paulo: Globo, 2012. 

          (A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1                    0.000 kb; ePUB 

1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série. 

12-13086                                                                               cdd-843 

Índices para catálogo sistemático: 
1. Romances: Literatura francesa 843

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Honoré Balzac - A Comédia Humana/Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (14)
Honoré Balzac - A Comédia Humana/Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (15)
Honoré Balzac - A Comédia Humana/Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (16)
Honoré Balzac - A Comédia Humana/Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (17)
Honoré Balzac - A Comédia Humana/Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (18)
Honoré Balzac - A Comédia Humana/Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (19)
Honoré Balzac - A Comédia Humana/Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (21)

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[135] O grande escritor do Aveyron: Bonald (nascido no castelo de Mouna, departamento do Aveyron).

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Lendo A Comédia Humana do Balzac



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