quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 7. (2) A ideia proposta em Sobre fotografia...

Diante da Dor dos Outros


para David

… aux vaincus!
Baudelaire

A sórdida mentora, a Experiência...
Tennyson


7..


continuando...


A ideia proposta em Sobre fotografia — que nossa capacidade de reagir a nossas experiências com frescor emocional e com pertinência ética vem sendo minada pela difusão implacável de imagens vulgares e estarrecedoras — poderia ser chamada de uma crítica conservadora à difusão de tais imagens.

Chamo esse argumento de conservador porque o alvo da erosão é o sentido de realidade. Há ainda uma realidade que existe, independente das tentativas de enfraquecer sua autoridade. O argumento constitui, de fato, uma defesa da realidade e dos ameaçados padrões para se reagir a ela mais plenamente.

Nos termos do ataque mais radical — cínico — contra essa crítica, nada existe para se defender: o enorme estômago da modernidade digeriu a realidade e cuspiu essa papa, em forma de imagens. Segundo uma análise muito influente, vivemos numa “sociedade do espetáculo”. Toda situação tem de se transformar em espetáculo para ser real — ou seja, interessante — para nós. As próprias pessoas aspiram a tornar-se imagens: celebridades. A realidade renunciou. Só existem representações: mídia.


Bela retórica, essa. E para muitos bastante persuasiva, porque uma das características da modernidade é que as pessoas gostam de ter a sensação de que podem prever sua própria experiência. (Esse modo de ver se associa especialmente à obra do falecido Guy Debord, que julgava descrever uma ilusão, uma mistificação, e à obra de Jean Baudrillard, que afirma crer que imagens, realidades simuladas, são tudo o que existe agora; parece um tipo de especialidade francesa.) É comum dizer-se que a guerra, assim como tudo o que parece real, é midiática. Esse foi o diagnóstico de vários franceses importantes que foram visitar rapidamente Sarajevo durante o sítio, entre eles André Glucksmann: a guerra não seria vencida ou perdida por nada que acontecesse em Sarajevo, ou mesmo na Bósnia, mas em função do que acontecesse na mídia. Muitas vezes se afirma que o “Ocidente” passou, cada vez mais, a ver a guerra, propriamente dita, como um espetáculo. Declarações da morte da realidade — como da morte da razão, da morte do intelectual, da morte da literatura séria — parecem ter sido aceitas sem maior reflexão por muitos que tentam compreender o que há de errado, ou de vazio, ou de estupidamente triunfante, na política e na cultura contemporâneas.

Dizer que a realidade se transforma num espetáculo é um provincianismo assombroso. Universaliza o modo de ver habitual de uma pequena população instruída que vive na parte rica do mundo, onde as notícias precisam ser transformadas em entretenimento — esse estilo maduro de ver as coisas, que constitui uma aquisição suprema do “moderno” e um pré-requisito para desmantelar as formas tradicionais de política fundada em partidos, que propiciam discórdia e debate genuínos. Supõe que todos sejam espectadores. De modo impertinente e sem seriedade, sugere que não existe sofrimento verdadeiro no mundo. Mas é absurdo identificar o mundo a essas regiões de países abastados onde as pessoas gozam o dúbio privilégio de ser espectadores ou furtar-se a ser espectadores da dor de um outro povo, assim como é absurdo fazer generalizações acerca da capacidade de se mostrar sensível aos sofrimentos de outros com base na atitude desses consumidores de notícias, que não conhecem, na própria pele, nada a respeito de guerra, de injustiça em massa e de terror. Existem centenas de milhões de espectadores de tevê que estão longe de sentirem-se impassíveis ante o que vêem na televisão. Eles não se dão ao luxo de fazer pouco-caso da realidade.

Tornou-se um clichê da discussão cosmopolita em torno de imagens de atrocidade supor que elas produzem um efeito reduzido e que existe algo intrinsecamente cínico acerca da sua difusão. Por mais que agora se considerem importantes as imagens de guerra, isso não desfaz a suspeita que paira em torno do interesse por essas imagens e das intenções daqueles que as produzem. Essa reação provém das duas extremidades do espectro: dos cínicos, que nunca estiveram perto de uma guerra, e dos esgotados pela guerra, que padecem as desgraças fotografadas.

Cidadãos da modernidade, consumidores de violência como espetáculo, adeptos da proximidade sem risco aprendem a ser cínicos a respeito da possibilidade da sinceridade. Algumas pessoas farão qualquer coisa a fim de não se comover. Como é fácil, da sua poltrona, longe do perigo, reivindicar uma posição de superioridade. Com efeito, ridicularizar os esforços daqueles que deram testemunho dos fatos em zonas de guerra tachando seu trabalho de “turismo de guerra” é um ponto de vista tão recorrente que invadiu até o debate sobre a fotografia de guerra como profissão.

Persiste o sentimento de que o apetite por tais imagens é um apetite vulgar ou baixo; que é o comércio do macabro. Em Sarajevo, nos anos do sítio, não era raro ouvir, no meio de um bombardeio ou das descargas de atiradores de tocaia, um habitante de Sarajevo gritar para os fotojornalistas, facilmente identificáveis graças ao equipamento pendurado em seu pescoço: “Vocês estão secos por uma explosão para poderem fotografar alguns cadáveres, não é?”.

Às vezes estavam, se bem que com menos frequência do que se poderia imaginar, visto que o fotógrafo na rua, no meio de um bombardeio ou das descargas de atiradores de tocaia, corre tanto risco de ser morto quanto os civis que focaliza. Além do mais, buscar uma boa matéria não era o único motivo para a avidez e a coragem dos fotojornalistas que cobriram o sítio. No decorrer do conflito, a maioria dos tarimbados jornalistas que cobriam os acontecimentos em Sarajevo não se manteve neutra. E os habitantes da cidade queriam que seus apuros fossem registrados em fotos: as vítimas têm interesse na representação de seus sofrimentos. Mas desejam que seu sofrimento seja visto como algo único. No início de 1994, o fotojornalista inglês Paul Lowe, que havia mais de um ano vivia na cidade sitiada, montou uma exposição, numa galeria de arte parcialmente destruída, com fotos que havia tirado ali mesmo, ao lado de outras, tiradas na Somália, anos antes; os habitantes de Sarajevo, conquanto sequiosos de ver novas imagens da destruição em curso da sua cidade, mostraram-se ofendidos pela inclusão das fotos da Somália. Lowe pensara que a questão era muito simples. Ele era um fotógrafo profissional e ali estavam dois conjuntos de fotos de que se orgulhava. Para os habitantes de Sarajevo, também era muito simples. Pôr seus sofrimentos lado a lado com os sofrimentos de outro povo significava compará-los (qual o pior inferno?), rebaixar o martírio de Sarajevo a mero exemplo. As atrocidades ocorridas em Sarajevo nada tinham a ver com o que se passava na África, exclamavam eles. Sem dúvida, havia um traço racista na sua indignação — bósnios são europeus, o povo de Sarajevo nunca se cansava de sublinhar esse fato para seus amigos estrangeiros. Mas eles também teriam protestado se fotos de atrocidades cometidas contra civis na Tchetchênia ou em Kosovo, na realidade em qualquer outro país, tivessem sido incluídas na exposição. É intolerável ter o próprio sofrimento equiparado ao de outra pessoa.


continua pág 305...

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Leia também:

Susan Sontag - Na Caverna de Platão (01)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (1)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (2)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (3)
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Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 6. (1)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 6. (2)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 7. (1)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 7. (2) 
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 8. 
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"Quando o mundo estiver unido
na busca do conhecimento, e
não mais lutando por dinheiro e
poder, então nossa sociedade
poderá enfim evoluir a um novo
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"... conversar me dá a chance de saber o que penso...,
mas se não escutar continuo conversando comigo mesmo."

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