segunda-feira, 10 de outubro de 2022

Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 7. (1)

Diante da Dor dos Outros


para David

… aux vaincus!
Baudelaire

A sórdida mentora, a Experiência...
Tennyson


7..


Ponderemos sobre duas ideias muito disseminadas — hoje, quase com a dimensão de lugares-comuns — em torno do impacto da fotografia. Como encontro essas ideias formuladas em meus próprios ensaios sobre fotografia — o primeiro deles escrito trinta anos atrás —, sinto uma tentação irresistível de questioná-las.

A primeira ideia é que a atenção pública é guiada pelas atenções da mídia — ou seja, de forma mais categórica, pelas imagens. Quando há fotos, uma guerra se torna “real”. Assim, o protesto contra a Guerra do Vietnã foi mobilizado por imagens. O sentimento de que algo tinha de ser feito a respeito da guerra na Bósnia foi construído a partir das atenções dos jornalistas — “o efeito CNN”, como foi às vezes chamado — que trouxeram imagens de Sarajevo sitiada para o interior de milhões de salas de estar, noite após noite, durante mais de três anos. Esses exemplos ilustram a influência determinante das fotos para definir a que catástrofes e crises nós prestamos atenção, com o que nos importamos e, por fim, que juízos estão associados a esses conflitos.

A segunda ideia — pode parecer o inverso do que acabei de formular — é que, num mundo saturado, ou melhor, hipersaturado de imagens, aquelas que deveriam ser importantes para nós têm seu efeito reduzido: tornamo-nos insensíveis. No fim, tais imagens apenas nos tornam um pouco menos capazes de sentir, de ter nossa consciência instigada.

No primeiro dos seis ensaios do livro Sobre fotografia (1977), afirmei que se um fato conhecido mediante fotos se torna sem dúvida mais real do que se tais fotos nunca tivessem sido vistas, após uma exposição repetida, no entanto, esse mesmo fato se torna também menos real. Na mesma medida em que criam solidariedade, escrevi, as fotos atrofiam a solidariedade. Isso é verdade? Achei que era, quando o escrevi. Agora, não estou tão certa. Qual a prova de que as fotos produzem um impacto decrescente, de que nossa cultura de espectadores neutraliza a força moral das fotos de atrocidades?

A questão propicia um exame do principal meio de comunicação jornalístico, a tevê. Uma imagem tem sua força drenada pela maneira como é usada, pelos lugares onde é vista e pela frequência com que é vista. Imagens mostradas na tevê são, por definição, imagens das quais, mais cedo ou mais tarde, as pessoas se cansam. O que parece insensibilidade se origina na instabilidade da atenção que a tevê intencionalmente provoca e nutre por meio da sua superabundância de imagens. A saciedade de imagens mantém a atenção ligeira, mutável, relativamente indiferente ao conteúdo. O fluxo contínuo de imagens impossibilita uma imagem privilegiada. O xis da questão na tevê é que se pode mudar de canal, é normal mudar de canal, ficar inquieto, entediado. Os consumidores desanimam. Têm de ser estimulados, sacudidos sem cessar. O conteúdo é apenas um desses estímulos. Um interesse mais reflexivo pelo conteúdo demanda uma certa intensidade de consciência — exatamente aquilo que é enfraquecido pelas expectativas expressas em imagens difundidas pela mídia, cuja rarefação de conteúdo contribui, mais do que qualquer outra coisa, para o embotamento do sentimento.


O argumento de que a vida moderna consiste em uma dieta de horrores que nos corrompe e a que nos habituamos gradualmente é uma ideia básica da crítica da modernidade — uma crítica quase tão antiga quanto a própria modernidade. Em 1800, Wordsworth, no prefácio a Lirical Ballads, denunciou a corrupção da sensibilidade produzida pelos “graves fatos nacionais que ocorrem diariamente e pelo crescente acúmulo de homens nas cidades, onde a uniformidade de suas ocupações produz um anseio de acontecimentos extraordinários, que a veloz comunicação de informações satisfaz continuamente”. Esse processo de super estimulação age “com a finalidade de embotar a capacidade de discernimento da mente” e “reduzi-la a um estágio quase de torpor selvagem”.

O poeta inglês destacou o embotamento mental produzido por fatos “diários” e notícias “constantes” de “acontecimentos extraordinários”. (Em 1800!) A que tipo de acontecimento exatamente ele se refere foi discretamente deixado a cargo da imaginação do leitor. Cerca de sessenta anos depois, outro grande poeta e diagnosticador cultural — francês e, portanto, tão autorizado a ser hiperbólico quanto os ingleses são propensos ao eufemismo — apresentou uma versão mais candente do mesmo ataque. Eis o que Baudelaire escreve em seu diário no início da década de 1860:



É impossível passar os olhos por qualquer jornal, de qualquer dia, mês ou ano, sem descobrir em todas as linhas os traços mais pavorosos da perversidade humana [...]. Qualquer jornal, da primeira à última linha, nada mais é do que um tecido de horrores. Guerras, crimes, roubos, linchamentos, torturas, as façanhas malignas dos príncipes, das nações, de indivíduos particulares; uma orgia de atrocidade universal. E é com este aperitivo abominável que o homem civilizado diariamente rega o seu repasto matinal.


Os jornais ainda não traziam muitas fotos quando Baudelaire escreveu. Mas isso não torna sua descrição denunciatória do burguês que se senta, com seu jornal matutino, para tomar o café-da-manhã com um desfile dos horrores do mundo, nem um pouco diferente da crítica atual contra a quantidade de horror dessensibilizante que recebemos todos os dias, pela televisão bem como pelo jornal matutino. Tecnologias mais recentes proporcionam uma alimentação incessante: todas as imagens de desgraça e de atrocidade que conseguirmos ver, no tempo que conseguirmos arranjar.

Desde Sobre fotografia, muitos críticos sugeriram que os martírios da guerra — graças à tevê — se transformaram em uma banalidade de todas as noites. Inundados por imagens do tipo que, no passado, chocava e causava indignação, estamos perdendo nossa capacidade de reagir. A compaixão, distendida até seu limite, está ficando entorpecida. Esse é o diagnóstico a que estamos familiarizados. Mas, de fato, o que se pede, aqui? Que se restrinjam as imagens de chacina a, digamos, uma vez por semana? De forma mais geral, que trabalhemos em favor daquilo que, em Sobre fotografia, chamei de “ecologia de imagens”? Não vai existir uma ecologia de imagens. Nenhum Comitê de Guardiões vai racionar o horror a fim de conservar o frescor da capacidade de chocar. E os horrores propriamente ditos não vão abrandar-se.


continua pág 291...

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"Quando o mundo estiver unido
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