quinta-feira, 9 de março de 2023

Marcel Proust - O Tempo Recuperado (Passado mais de um ano)

em busca do tempo perdido

volume VII
O Tempo Recuperado



continuando...

Passado mais de um ano, se via que um carro ia chocar com o meu, minha única preocupação era morrer sem contar aquilo à Gilberte. Consolava-me pensando: «Não há pressa, tenho toda a vida adiante para isso». E por isso desejava não perder a vida. Agora isto me teria parecido pouco agradável de dizer, quase ridículo, e «comprometedor».

- Além disso - continuou Gilberte -, inclusive o dia que lhe encontrei em sua porta, era tão igual em Combray, se você soubesse que pouco tinha mudado!

Voltei a ver Gilberte em minha memória. Se pudesse desenhar o quadrilátero de luz que o sol riscava sob os majuelos (flores), a espécie que a moça levava na mão, o longo olhar que posou em mim. Só que eu acreditei, pelo gesto grosseiro que a acompanhou, que era um olhar de desprezo, porque o que eu desejava me parecia uma coisa que as moças não conheciam e não faziam mais que em minha imaginação, durante minhas horas de desejo solitário. Menos ainda teria acreditado que, tão facilmente, tão rapidamente, quase ante os olhos de meu avô, uma delas tivesse a audácia de fazer aquele gesto.

Não lhe perguntei com quem ia a passeio pela avenida dos Champs-Elysées o dia em que vendi os vasos chineses. O que tivesse de real sob a aparência de então era-me por completo indiferente. E, entretanto, quantos dias e quantas noites sofri me perguntando quem seria, quantas vezes tive que reprimir o palpitar do coração possivelmente mais ainda que quando não voltei a dar boa noite à mamãe naquele mesmo Combray! Dizem, e isto explica a progressiva atenuação de certas afecções nervosas, que nosso sistema nervoso envelhece. Isto não é só certo quanto a nosso “eu” permanente, que se prolonga tanto como dura nossa vida, a não ser quanto a todos nossos “eus” sucessivos, que, em suma, compõem-lhe em parte.

Por isso, a tantos anos de distância, tive que retocar uma imagem que recordava tão bem, operação que me fez bastante feliz demonstrando-me que o infranqueável abismo que então acreditava existir entre mim e certa classe de moças de dourada cabeleira era tão imaginário como o abismo do Pascal, e que me pareceu poético pelos muitos anos no fundo dos quais terei que realizá-lo. Tive um sobressalto de desejo e de saudade pensando nos metrôs do Roussainville. Mas me alegrava pensar que aquela felicidade para a que tendiam então todas minhas forças, e que já nada podia me devolver, tivesse existido fora de meu pensamento, em realidade tão perto de mim, naquele Roussainville do que eu falava tão freqüentemente, que via do gabinete que cheirava a lírios. E eu não sabia nada! Em suma, resumia tudo o que desejei em meus passeios até não poder me decidir a voltar para casa, parecendo-me ver que as árvores se entreabriam, se animavam. O que então desejava tão febrilmente, ela esteve a ponto de me fazer: gostar em minha adolescência, se eu pudesse compreendê-la e conquista-la. Naquele tempo Gilberte estava verdadeiramente mais ao lado do Méséglise, mais ainda do que eu acreditasse. E inclusive aquele dia em que a encontrei sob uma porta, embora não era madame de l'Orgeville, a qual Robert tinha conhecido nas casas noturnas (e que casualidade que fosse precisamente seu futuro marido a quem eu lhe pedisse que me explicasse isso!), não me equivocara por completo sobre o significado de seu olhar, nem sobre a classe de mulher que era e que agora me confessava ter sido.

- «Tudo isso fica muito longe – disse-me -; desde que me prometi com Robert, já não pensei nunca em mais ninguém senão nele. E dir-lhe-ei que nem sequer são esses caprichos de menina o que mais me censuro.»

Naquela morada um tanto rústica demais, que parecia local de repouso um aguaceiro, uma dessas mansões onde cada sala, e onde, no papel de parede dos quartos, as rosas pássaros das árvores, aproximavam-se e nos faziam devanescer; quando nada pois as paredes eram forradas porque estava tão destacada que se poderia colher, para o caso de ser engaiolado e domesticado, sem coisa alguma dos quartos de hoje, nos quais, sobre um fundo prateado, todas vêm perfilar-se em estilo japonês para alucinar as horas. O dia inteiro, passei-o no meu quarto que dava para os belos lilases da entrada, a folhagem verde das grandes árvores de sol, e a floresta de Méséglise. E afinal, eu só olhava, dizia comigo: "É bonito ter tanto verde na janela do meu quarto, que reconheci, no amplo quadro verdejante, pintado ou simplesmente por estar mais longe, o campanário de uma representação desse campanário, mas o próprio campo diante de meus olhos a distância das léguas e dos anos, nosso verdor e de um tom completamente diverso, tão somente apenas desenhado, inscrever-se no retângulo da janela. E, ante do quarto, até a extremidade do corredor, que era oriental avistava, como uma faixa escarlate, o revestimento de uma sava de simples musselina, porém rubra, e pronta para um raio de sol.

Em nossos passeios, Gilberte me falava de Robert, cada vez mais parecia se juntar a outras mulheres. E é verdade que muitas, mas como certas camaradagens masculinas para os homens e mulheres, com aquele caráter de defesa inutilmente feita, e de lugar que têm, na maioria das casas, os objetos que não servem para nada. Foi diversas vezes a Tansonville enquanto durou minha permanência. Estava bem diferente daquele que eu havia conhecido. A vida não o tornara mais lento, entorpecido, como ao Sr. de Charlus; muito pelo contrário, operando uma mudança inversa, dera-lhe o aspecto desenvolto de um oficial de cavalaria; conquanto ele houvesse apresentado sua demissão por ocasião do casamento, um ponto como nunca o tivera. À medida que o Sr. de Charlus se tornara pesado, Robert (e sem dúvida ele era infinitamente mais jovem, mas percebia-se que não faria senão aproximar-se mais desse ideal com a idade, como certas mulheres que sacrificam resolutamente o rosto ao talhe e, a partir de certo momento, já não deixam Marienbad, pensando que, não podendo conservar ao mesmo tempo as juventudes, será ainda a da silhueta a mais capaz de representar as outras. Tornara-se mais esbelto, mais rápido, efeito contrário de um mesmo vício; a velocidade, aliás, tinha diversas razões psicológicas, o medo de ser visto, o de não parecer ter esse medo, a febrilidade nascida do descontentamento mesmo e do tédio. Tinha o hábito de ir a certos lugares de má fama, onde, não gostava que o vissem entrar nem sair, se abismava para oferecer aos olhos malévolos de hipotéticos transeuntes o menos possível de superfície, combinação que realizava num assalto. E esse aspecto de pé-de-vento lhe ficara. Talvez também esquematizasse, desse modo, a aparente intrepidez de alguém que deseja mostrar que não tem medo e nem se preocupa em pensar. Para ser completo, seria preferível levar em consideração o desejo, quanto mais envelhecia, de parecer jovem e até da impaciência desses homens sempre entediados, sempre blasés, que são pessoas inteligentes demais para a vida relativamente ociosa que levam, e na qual suas faculdades não se realizam.

Sem dúvida, a ociosidade dessas pessoas pode traduzir até pelo desleixo. Mas, sobretudo após a moda dos exercícios físicos, ociosidade assumiu uma forma esportiva, mesmo fora das horas do esporte, que se traduz por uma vivacidade febril que julga não deixar ao tédio nem tempo nem espaço para se desenvolver, e muito menos por meio do desleixo.

Minha memória, a própria memória involuntária, havia perdido o amor de Albertine. Mas parece existir uma memória involuntária dos membros, pálida imitação da outra, que dura muito mais tempo, como certos animais ou vegetais ininteligentes vivem mais que o homem. As pernas e os braços estão cheios de lembranças entorpecidas.

[*Por inadvertência, Proust, na descrição de Saint-Loup, repete quase com as mesmas palavras a descrição de Legrandin, feita em A fugitiva. (N. do T)]

Certa vez em que deixei Gilberte muito cedo, acordei no meio da noite, no quarto de Tansonville, e, ainda meio adormecido, chamei: "Albertine." Não é que estivesse pensado nela, ou até com ela sonhado; nem que a tivesse tomado por Gilberte: é que uma reminiscência cravada em meu braço me fez procurar atrás de mim a campainha, como em meu quarto em Paris. E, ao não encontrá-la chamei: “Albertine” acreditando que a amiga defunta estava deitada ao meu lado como quando adormecíamos juntos; calculando ao despertar, o tempo que demoraria Françoise para chegar, para que Albertine pudesse, sem imprudência, tocar a companhia que eu não encontrava.

Durante essa fase deplorável, de prova de afeto no quarto em Paris; por exemplo, eu mostrava afetações de que sentia. Não é que, na realidade, eu a sentisse. Mas mentia-lhe o tempo todo; sem fundamento por causa de suas mentiras, era só para poder livrar-se exagerando-a por magoar Gilberte. Chegava dizer o seguinte: devido a negócios com Paris, e o qual, encontrado precisamente patenteando a mentira de que viera a sua terra para descansar um período. Robert enrubescia, notava-se do inconveniente, insultando-o, um bilhete desesperado em que dizia vendo-o partir de novo por uma única razão: que não a amava (e tudo isso, embora realidade); depois, mandava perguntar se era real, em parte por nervosismo como a mais audaciosa, soluçava, inundava-se; às vezes se batia no chão como se nesse ponto devia acreditar nele, supunha-o e de um modo geral, julgava-se amada, e sentia-se próxima, pensando que ele talvez tivesse remorso, não tinha coragem de contrariá-lo; e talvez menos por que fazia ele que Morel com Bergotte, onde quer que se encontrasse. Morel imitava Bergotte às maravilhas; houve necessidade de lhe pedir que fizesse uma imitação. Como esses histéricos a quem já não se precisa fazer doente, que se tornem tal ou qual pessoa, ele entrava subitamente, por si mesmo no personagem.


continua na página 012...
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Leia também:

Volume 1
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
A Prisioneira (Prefácio)
Volume 6
Volume 7
O Tempo Recuperado (Passado mais de um ano)

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