sábado, 7 de janeiro de 2023

Marcel Proust - O Tempo Recuperado (Por outro lado)

em busca do tempo perdido

volume VII
O Tempo Recuperado



Por outro lado, não teria por que me estender sobre aquela estadia perto de Combray, e que possivelmente foi o momento de minha vida em que menos pensei em Combray, a não ser porque, precisamente por isso, encontrei ali uma comprovação, sequer provisória, de certas idéias que antes tive sobre os Guermantes, e também de outras idéias que tive sobre Méséglise. Todas as noites reatava, em outro sentido, nossos antigos passeios à Combray, quando íamos todas as tardes pelo caminho do Méséglise. Agora comíamos no Tansonville a uma hora em que antes, em Combray, levávamos já muito tempo dormindo. E como era a estação estival e, além disso, porque, depois do almoço, Gilberte ficava pintando na capela do castelo, não saíamos de passeio até umas duas horas antes da comida. O deleite de antigamente, ver, à volta, como o céu de púrpura enquadrava o Calvário ou se banhava no Vivonne, substituía-o agora o de sair de noite, quando já não encontrávamos no povo mais que o triângulo azulado, irregular e movediço das ovelhas que voltavam. Em uma metade dos campos ficava o sol; na outra iluminava já a lua, que não demorava para banhá-los por inteiro. Ocorria que Gilberte me deixava caminhar sem ela, e eu me adiantava, deixando atrás minha sombra, como um navio que segue navegando através das superfícies encantadas; geralmente me acompanhava. Estes passeios estavam acostumados a ser meus passeios de menino: como não ia sentir mais vivamente ainda que antigamente o caminho de Guermantes o sentimento que nunca saberia escrever, ao que se somava outro, o de que minha imaginação e minha sensibilidade se debilitaram, quando vi a pouca curiosidade que me inspirava Combray? Que pena comprovar o pouco que revivia meus anos de outro tempo! Que estreito e que feio me parecia o Vivonne junto ao caminho de sirga! [sirga corda para embarcação] Não é que eu notasse grandes diferenças materiais no que recordava. Mas, separado dos lugares que atravessava por toda uma vida diferente, não havia entre eles e eu nenhuma contiguidade em que nasce, inclusive antes de nos darmos conta, a imediata, deliciosa e total deflagração da lembrança. Certamente, sem compreender bem qual era sua natureza, entristecia-me pensar que minha faculdade de sentir e de imaginar devia haver diminuído, posto que aqueles passeios já não me deleitavam. A mesma Gilberte, que me compreendia menos ainda do que me compreendia eu mesmo, aumentava minha tristeza ao compartilhar meu assombro.

«Mas não lhe faz sentir nada – dizia-me – tomar essa ladeira que subia em outro tempo?»

E ela mesma mudara tanto que já não me parecia bela, que não o era já absolutamente. Enquanto caminhávamos, via mudar a paisagem, tivera que subir as encostas, baixar outras. Gilberte e eu falávamos, muito agradavelmente. Mas não sem dificuldade. Há em tantos seres várias capas diferentes: o caráter do pai, o caráter da mãe; atravessamos uma e logo outra. Mas no dia seguinte mudou a ordem de superposição. E ao final não se sabia quem distribuirá as partes, em quem poderíamos confiar para a sentença. Gilberte era como esses países com os que outros países não se atrevem a aliar-se porque mudam muito frequentemente de governo. Mas no fundo é um engano. A memória do ser mais sucessivo estabelece nele uma espécie de identidade e lhe faz não querer faltar algumas promessas que recorda, até no caso de não as haver assinado. Quanto à inteligência, a de Gilberte, como alguns absurdos de sua mãe, era muito viva. Mas, e isto não afeta o seu valor próprio, lembrança que, naquelas conversações que tínhamos no passeio, várias vezes me causou grande estranheza. Uma delas, a primeira, me dizendo:

«Se você não tivesse muita fome e se não fosse tão tarde, tomando esse caminho da esquerda e virando logo à direita, em menos de um quarto de hora estaríamos nos Guermantes». É como se me houvesse dito: «Tome à esquerda, depois à direita, e tocará o intangível, chegará às inacessíveis lonjuras das quais, na terra, não se conhece nunca mais que a direção, que o “para”» -o que eu acreditei antigamente que poderia conhecer somente dos Guermantes, e possivelmente, em certo sentido, não me enganava-.

Outra de minhas surpresas foi ver as «fontes de Vivonne», que eu me figurava como algo tão extraterrestre como a Entrada aos Infernos, e que não era mais que uma espécie de tanque quadrado de que saíam borbulhas. E a terceira foi quando Gilberte disse-me:

«Se quiser, poderemos de todos os modos sair um dia depois de almoçar e poderemos ir aos Guermantes, indo pelo Méséglise, que é o caminho mais bonito», frase que, trocando todas as ideias de minha infância, ensinou-me que um e outro caminho não eram tão inconciliáveis como eu acreditava. Mas o que mais me chocou foi o pouco que, naquela temporada, revivi meus anos de outro tempo, o pouco que desejava voltar a ver Combray, o estreito e feio que me pareceu Vivonne. Mas quando Gilberte comprovou para mim algumas das minhas representações do caminho do Méséglise, foi em um daqueles passeios, noturnos por fim, embora fossem antes da comida - mas ela comia tão tarde!-.

Ao baixar ao mistério de um vale perfeito e profundo estofo pela luz da lua, detivemo-nos um instante, como dois insetos que vão cravar-se no coração de um cálice azulado.

Gilberte, possivelmente por ter uma simples fina atenção de dona-de-casa que lamenta nossa próxima partida e que tivesse querido nos fazer melhor as honras dessa região que parecemos apreciar, teve então uma dessas palavras com as quais sua habilidade de mulher do mundo sabe tirar partido do silêncio, da simplicidade, da sobriedade na expressão do sentimento, nos fazendo acreditar que ocupamos em sua vida um lugar que nenhuma outra pessoa poderia ocupar. Derramando bruscamente para ela a ternura que me embargava pelo ar delicioso, pela brisa que se respirava, disse-lhe:

- O outro dia falava de você na ladeira. Como a amava então!

Respondeu-me:

- Por que não me dizia isso? Eu não me figurava isso. Eu lhe amava. E até por duas vezes insinuei a você.

- Quando?

- A primeira vez em Tansonville. Ia você de passeio com sua família, eu voltava; nunca tinha visto um moço tão bonito. Tinha o costume - acrescentou em um tom vago e pudico- de ir jogar com uns amigos nas ruínas da torre do Roussainville. E dirá você que eu estava muito mal educada, pois havia ali garotas e meninos de todo gênero que se aproveitavam da escuridão. O coroinha da igreja de Combray, Teodoro, que há que reconhecer que era muito simpático (que bem estava!) e que se tornou muito feio (agora é de farmacêutico em Méséglise), divertia-se com todas as aldeãs das cercanias. Como me deixavam sair sozinha, assim que podia me escapava correndo. Quanto gostava de ver que você chegava; lembro-me muito bem que, como não dispunha mais que de um minuto para lhe fazer compreender o que desejava, expondo que me vissem seus pais e meus, o indiquei de uma maneira tão crua que agora me dá vergonha. Mas você me olhou de maneira tão má que compreendi que não queria.

De repente pensei que a verdadeira Gilberte, a verdadeira Albertine, eram possivelmente as que se entregaram no primeiro momento em seu olhar, uma diante do sebe de espinheiros rosa, a outra na praia. E fui eu o que, sem compreendê-lo, sem havê-lo revivido até mais tarde em minha memória, depois de um intervalo no qual, por minhas conversações, toda uma distância de sentimento me fez temer serem tão francas como no primeiro momento, danifiquei tudo com minha estupidez. Falhei-as mais completamente - embora, em realidade, o relativo fracasso com elas fora menos absurdo - pelas mesmas razões que Saint-Loup à Raquel.

- E a segunda vez - prosseguiu Gilberte - foi, muitos anos depois, quando lhe encontrei em sua porta, o dia que lhe voltei a ver em casa de minha tia Oriane; não lhe reconheci no primeiro momento, ou talvez lhe reconhecia sem sabê-lo, porque tinha a mesma vontade que em Tansonville.

- Mas no intervalo houve nos Champs-Elysées.

- Sim, mas então você me queria muito, eu sentia uma inquisição em tudo o que fazia.

Não pensei em lhe perguntar quem era aquele moço com o qual descia pela avenida dos Champs-Elysées o dia em que ia voltar para vê-la, o dia em que me reconciliaria fazendo as pazes com ela quando ainda era tempo, aquele dia que teria mudado toda minha vida se não tivesse encontrado com as duas sombras que caminhavam juntas no crepúsculo. Se o tivesse perguntado, possivelmente me diria a verdade, como Albertina se tivesse ressuscitado. Com efeito, quando, passados os anos, encontramos mulheres as quais já não amamos, não está a morte entre elas e nós, quão mesmo se já não fossem deste mundo porque o fato de que nosso amor não exista já converte em mortos às que eram então ou ao que fomos nós? Também podia ocorrer que não se lembrasse ou que mentisse. Em todo caso, sabê-lo já não me interessava, porque meu coração mudara mais ainda que o rosto de Gilberte. Este rosto eu já não gostava há muito, mas, sobretudo, já não me faria sofrer, já não poderia conceber, se tornasse a pensar nisso, que tivesse me fazer sofrer tanto ao encontrar Gilberte caminhando devagar junto a um moço, pensando: «acabou-se, renuncio para sempre à vê-la». Do estado de minha alma, que, aquele longínquo ano, não tinha sido para mim mais que uma longa tortura, não ficava nada. Pois neste mundo onde tudo se gasta, onde tudo perece, há uma coisa que cai em ruínas, que se destrói mais completamente ainda, deixando ainda menos vestígios que a Beleza: é a Dor.

Mas, embora não me surpreende não lhe haver perguntado então com quem descia pelos Champs-Elysées, pois tinha visto já muitos exemplos desta mesma falta de curiosidade que concede o Tempo, em troca me surpreende um pouco não ter contado à Gilberte que, antes de encontrá-la aquele dia, tinha vendido um vaso chinês antigo para comprar flores. (Perguntei-lhe. Era Léia vestida de homem. Sabia que conhecia Albertine, mas não podia dizer mais. Ocorre, pois, que certas pessoas se voltamos a encontrar em nossa vida para preparar nossos prazeres e nossas dores.)

[Na edição de La Pléiade se separa no rodapé de página essa passagem, «que contradiz o contexto», e que no manuscrito se encontra em um papel suplementar. (N. da T)]

Pois naqueles tempos tão tristes que seguiram àquele encontro, meu único consolo foi pensar que algum dia poderia lhe contar sem perigo aquela intenção tão tenra.


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