volume VII
O Tempo Recuperado
continuando...
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Françoise, já presenciara tudo o que o Sr. de Charlus havia feito com Jupien, e tudo o que Robert de Saint-Loup fazia por Morel, não atribuía àquele traço que reaparecia em certas gerações dos Guermantes, porém, visto que Legrandin ajudava bastante a Théodore, pessoa tão moralista e cheia de preceitos; acabara por acreditar tratar-se de um hábito, cuja universalidade o tornava respeitável. Dizia sempre acerca de um rapaz, fosse Morel ou Théodore:
- Encontrou um senhor que sempre se interessou por ele e o ajudou bastante. -
E como em casos semelhantes, os protetores são os que amam, sofrem e perdoam, Françoise entre eles e os menores que aluem desviavam, não hesitava em lhes conferir o melhor, em achar-lhes "bom coração". Sem vacilar, censurava Théodore que havia boas peças a Legrandin, embora parecesse não ter quaisquer dúvidas sobre a natureza de suas relações pois acrescentava:
- Então o pequeno compreendeu que é preciso dar um pouco de si mesmo, e falou: "Leve-me consigo, hei de o querer muito bem; hei de lisonjeá-lo, e, palavra de honra; aquele senhor tem tão bom coração que, é claro, Théodore com certeza encontrará junto dele talvez mais do que merece, pois é uma cabeça oca; mas aquele senhor é tão bom que eu várias vezes disse à Jeannette (a noiva de Théodore): "Menina, se algum dia estiver em dificuldade, procura aquele senhor. Seria capaz de dormir no chão e dar sua cama." E gostou demais do pequeno (Théodore) para despedi-lo. É claro que não o abandonará nunca.
Por polidez indaguei à sua irmã o sobrenome de Théodore, que agora estava no Midi.
- Mas foi ele quem me escreveu sobre o meu artigo no Fígaro! - expliquei ao saber que ele se chamava Sautton.
Da mesma forma, estimava mais a Saint-Loup que a Morel e acho, apesar de todas as bobagens que o pequeno (Morel) havia feito, o marquês não o abandonaria pois era homem de grande coração, a menos que ele próprio sentisse muitos reveses.
Robert insistia para que eu ficasse em Tansonville e uma vez deixou a par, conquanto ele visivelmente já não procurasse agradar-me, que a minha presença fora motivo de alegria tal para a esposa, a ponto de, segundo esta transportá-la de felicidade uma noite inteira, uma noite em que Gilberte se sentisse triste que eu, chegando sem prevenir, milagrosamente a salvara "talvez de coisa pior”, - acrescentou. Pediu-me que tentasse persuadi-la de que a amava, dizendo-me que a mulher a quem igualmente amava, amava-a mais que a Gilberte, e romperia em breve com ela. - E no entanto - acrescentou tamanha fatuidade e tanta necessidade de confidência, que, por momentos, que o nome de Charlie, malgrado Robert, iria "sair", como um número que tenho do que me orgulhar. Essa mulher que me dá tantas provas de carinho que vou sacrificar à Gilberte se enamorar. Sou o primeiro que, ao receber a notícia fiquei pasmo. Evidentemente comecei a ver a pobre Gilberte algo de Rachel; que, a rigor, se por semelhança real tão pouco nítida ele se casasse. Possivelmente devia-se também a uma verdadeira similitude de alguns traços (devido, por exemplo a origem hebraica, embora em Gilberte tão pouco acentuada), pela qual Robert quando sua família quis que se casasse em igualdade de fortuna, sentiu-se atraído por Gilberte. Também se explicava porque Gilberte quando encontrara fotografias de Raquel, da qual ignorava até o nome, para agradar à Robert começou a imitar certos hábitos da atriz como o de levar uma fita de veludo no cabelo sentindo que seus prazer era isso. E às vezes, ao passar vinte e quatro punha à mesa tão bela como do que era nos dias frente uma atriz, uma fixidez excessiva, na curiosidade, aliás, em o cuidado com que o fez. Fazendo uma rica palheta, e lhe fazia a boca sangrenta e isso lhe caía bem, ao passo que se soubesse que o marido de cujo modelo o Sr. de Guermantes segue a mentira empalideceria e acentuaria as olheiras.
Num tom intencionalmente de carinho espontâneo de outrora, com voz de fazer ver Gilberte feliz. Ela fez tanto por tudo isso era ainda o amor-próprio; e, sem ousar dizer que era Charlie a seu amor que o violinista lhe dedicava, do não inventado em todos os por menores presentes sempre solicitando mais dinheiro.
E era a Paris pouco a narrativa, pois ainda estou em Paris, numa recepção, e de longe; nela, a sua conversa, viva e envolvente apesar de tudo, permitia-me retratar o passado; fiquei impressionado ao ver como se transformava. Parecia-se cada vez mais à mãe; mas a altiva esbelteza que herdara dela, e que nela era perfeita, se exagerava e endurecia, devido à educação mais esmerada. O olhar penetrante dos Guermantes dava-lhe o aspecto de estar inspecionando todos os lugares onde passava, mas de forma quase inconsciente, por uma espécie de hábito instinto animal. Mesmo imóvel, a sua coloração, ouro sólido de um dia ensolarado; mais própria dele que de todos os Guermantes, como que lhe conferia uma plumagem, fazia dele uma espécie tão rara, tão preciosa, que se desejaria obtê-lo para uma coleção mitológica; mas quando, além disso, essa luz mudada em pássaro se punha em movimento, em ação, quando, por exemplo, via Robert de Saint-Loup entrar numa festa onde eu já me encontrava, eram tantos os meneios de cabeça, tão macia e orgulhosamente alçada sob a aigrette dos cabelos um tanto ralos, tantos os movimentos de pescoço, mais ágeis, e graciosos do que os humanos, que, ante a curiosidade e a admiração, mundana, meio zoológica, que despertava, as pessoas se indagavam se estavam no faubourg Saint-Germain ou no Jardin des Plantes, se contemplavam um senhor atravessando o salão ou uma ave passeando na gaiola. Aliás, todo retorno à elegância volátil dos Guermantes de bico pontudo, de olhar aguçados agora utilizado por seu vício novo, que deles se servia para dissimular. Quanto se servia deles, mais se assemelhava ao que Balzac chama de "tia". Não era necessário ter muita imaginação para perceber que o gorjeio se prestava a interpretação semelhante à da plumagem. Ele começava a dizer frases que considerava do século XVII e assim imitava as maneiras dos Guermantes. Porém um nada indefinível com que se transformassem nas do Sr. de Charlus.
- Deixo-te por um instante - disse-me ele naquela recepção em que a Sra. de Marsantes se achava no meio de nós. -Vou fazer um pouquinho de corte à minha mãe.
Quanto ao amor de que me falava sem cessar, não era somente o que nutria por Charlie, embora fosse este o único a importar para ele. Seja qual for o amor de um homem, enganamo-nos sempre acerca do número de pessoas com quem mantém ligações, pois interpretamos falsamente as amizades como ligações amorosas, o que é um erro por acréscimo, mas também porque julga que uma ligação comprovada exclui outra, o que é outro gênero de erro. Pessoas podem dizer: "A amante de X..., conheço-a", pronunciar dois nomes diferentes, e ambas não estarem enganadas. Uma mulher rara a quem amamos basta para todas as nossas necessidades; enganamo-la com uma outra a que amamos.
Quanto ao marido, a ele inclinado a quem os Guermantes pensavam que possuíam esses, as mulheres que exibiam; eram os mais sábios sobre a terra, e supondo que tal mulheres deslumbrantes, essas tendências respondem que podiam ser mulher em dobro, se dizia o mesmo à inversão, fazia algum tempo.
Os Courvoisier se comportavam com maior prudência. O jovem visconde de Courvoisier acreditava ser o único no mundo, e da origem do mesmo, ao que atraíra um de seu sexo. Caso que esta inclinação era coisa do diabo, lutou contra ela, casou-se com uma mulher preciosa e lhe fez filhos. Depois, um primo seu o ensinou que essa inclinação é bastante frequente; chegou sua bondade até o extremo de lhe levar aos lugares onde podia satisfazê-la. Monsieur de Courvoisier amou mais ainda a sua mulher, intensificou seu zelo prolífico, ela e ele eram citados como o melhor matrimônio de Paris. Não se dizia o mesmo de Saint-Loup, porque Robert, em vez de contentar-se com o investimento, matava a sua mulher de ciúmes sustentando queridas, com as quais não sentia prazer. É possível que Morel, como era tão moreno, o fora necessário ao Saint-Loup como o é a sombra ao raio de sol. Nesta família tão antiga se imagina muito bem a um grande senhor loiro dourado, inteligente, com todos os prestígios e mantendo secreta uma afeição ignorada por todos. Por outra parte, Robert não deixava nunca aludir na conversação a essa classe de amores que era a sua. Se eu dizia uma palavra sobre o assunto: «Ah!, não sei -respondia com um desinteresse tão profundo que deixava cair o monóculo-, eu não tenho nem idéia dessas coisas. Se você desejar dados sobre isso, querido, aconselho-te que dirija a outro. Eu sou um soldado, e não há mais que falar. Minha indiferença por essas coisas é tão grande como meu interesse apaixonado pela guerra dos Balcãs. Em outro tempo interessava a ti a etimologia das batalhas. Então te dizia eu que voltaríamos a ver, até nas condições mais diferentes, as batalhas típicas, por exemplo o grande ensaio de cerco pelo flanco, a batalha de Ulm. Bom, pois por mais especiais que sejam estas guerras balcânicas, Loullé-Bourgas continua sendo Ulm, envolver pelo flanco. Estas são as coisas das quais pode me falar. Mas disso a que avalanches sei tanto como de sânscrito».
continua na página 016...
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A Prisioneira (Prefácio)Volume 6
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