sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Marcel Proust - Sodoma e Gomorra (Cap I - A casa da Sra. de Villeparisis)

em busca do tempo perdido

volume IV
Sodoma e Gomorra



Capítulo Primeiro
Primeira Parte


A casa da Sra. de Villeparisis, atravessava o pátio vagarosamente, varrido, envelhecido pela luz do dia e de cabelos grisalhos. Fora necessária uma indisposição da Sra. de Villeparisis (consequência da enfermidade do Marquês de Fierbois, com quem o barão se achava mortalmente rompido) paf! que o Sr. de Charlus fizesse uma visita àquela hora, quem sabe pela primeira vez em sua vida. Pois, com aquela singularidade dos Guermantes, - em vez de se conformarem com a vida mundana, modificavam-na segundo seus hábitos pessoais (não mundanos, julgavam, e dignos, portanto, quase humilhasse diante deles essa coisa sem valor, o mundanismo, o desgostoso modo é que a Sra. de Marsantes não tinha dias marcados, e recebia as amigas todas as manhãs das dez ao meio-dia), o barão, reservando esse tempo para a leitura, a busca de antiguidades, etc., nunca fazia uma visita senão entre às quatro e às seis da tarde. Às seis, ia ao Jockey ou passeava pelo Bois. Ao cabo de um instante, fiz um novo movimento de recuo para não ser visto por Jupien; em breve estaria em sua hora de ir para o escritório, de onde só voltava para o jantar, e isso mesmo nem sempre, desde que sua sobrinha se achava fora, há uma semana, com suas aprendizes, na costureira de uma freguesa para terminar um vestido.

Depois, percebendo que ninguém podia me ver, resolvi não me mexer de novo com receio de perder, caso devesse realizar-se o milagre, a chegada, quase impossível de aguardar tantos obstáculos de distância, de riscos e de perigos, do insensato enviado de tão longe, como embaixador, à virgem que há bastante tempo prolongava a sua espera. Sabia eu que tal espera não era mais passiva na flor macho, cujos estames se haviam virado espontaneamente para o inseto pudesse mais facilmente recebê-la; do mesmo modo, a flor fêmea que ali se achava, curvaria faceira os seus "estilos" e, para ser mais bem penetrada por ele, andaria imperceptivelmente a metade do caminho como uma adolescente hipócrita, mas fogosa. As próprias leis do mundo vegetal são governadas por leis cada vez mais altas. Se a visita de um inseto, isto é, a entrega da semente de uma outra flor, é habitualmente necessária para fecundar uma flor, é porque a autofecundação, a fecundação da flor por ela mesma, como os casamentos repetidos dentro de uma família, levaria à degenerescência e à esterilidade, ao passo que o acasalamento operado pelos insetos confere às gerações seguintes da mesma espécie um vigor desconhecido de seus ancestrais. Entretanto, tal progresso só pode ser excessivo e a espécie chegar a se desenvolver desmensuradamente; então, assim como uma antitoxina protege contra a doença, como a tireoide regula nossa gordura, como a derrota vem punir o orgulho, cansaço, o prazer, e como o sono, por sua vez, repousa do cansaço, num ato excepcional de autofecundação vem, no momento próprio, dar volta em torno, a sua freada, para restituir à nova flor que dela se desviara exageradamente. Minhas reflexões tinham seguido uma vertente que descreverei mais tarde, e eu já deduzira da aparente astúcia das flores uma conseqüência sobre toda uma parte inconsciente da obra literária, quando vi o Sr. de Charlus que tornava a sair da casa da marquesa. Haviam se passado apenas uns poucos minutos desde a sua entrada. Talvez tivesse sabido pela velha parenta, ou por um criado, da grande melhora, ou antes, da cura completa daquilo que não passara de uma indisposição da Sra. de Villeparisis. Neste momento, em que ele não se julgava observado por ninguém, de pálpebras baixas contra o sol, o Sr. de Charlus relaxara em sua fisionomia aquela tensão, amortecera aquela vitalidade fictícia, que nele mantinham a animação de conversa e a força de vontade. Pálido como um mármore, tinha um nariz imponente, e seus finos traços já não recebiam de um olhar voluntarioso um sentido diferente que alterasse a beleza de seu modelo; sendo apenas um Guermantes, parecia já esculpido, ele, Palamede XV, na capela de Combray. No entanto, esses traços gerais de toda uma família assumiam, no rosto do Sr. de Charlus, uma finura mais espiritualizada, sobretudo mais suave. Por ele, eu lastimava que adulterasse normalmente com tantas violências, esquisitices desagradáveis, mexericos, durezas, suscetibilidades e arrogâncias, que ocultasse sob uma brutalidade postiça a amenidade, a bondade que, no momento em que saía da casa da Sra. de Villeparisis, eu via estampar-se tão ingenuamente em seu rosto. Piscando contra o sol, parecia sorrir quase; visto assim em repouso e como que ao natural, achei em seu rosto algo de tão afetuoso, de tão desarmado, que não pude deixar de pensar como o Sr. de Charlus se zangaria caso soubesse estar sendo observado; pois, no que me fazia pensar esse homem tão inflamado, que tanto gabava a sua virilidade, a quem todo mundo parecia odiosamente efeminado, no que ele de imediato me fazia pensar de tal modo possuía os traços, a expressão e o sorriso, era numa mulher! 

Ia mover-me de novo para que ele não pudesse me perceber; não tive tempo nem necessidade disso. O que vi! Frente a frente, naquele pátio onde seguramente nunca se haviam encontrado (o Sr. de Charlus só vinha ao palácio Guermantes à tarde, às horas em que Jupien estava no escritório), o barão, tendo subitamente aberto bem os olhos meio cerrados, observava com atenção extraordinária o antigo alfaiate à porta da loja, ao passo que este, repentinamente pregado em seu lugar diante do Sr. de Charlus, enraizado como uma planta, contemplava com ar maravilhado a corpulência do barão, que envelhecia. Coisa mais espantosa ainda, como mudasse a atitude do Sr. de Charlus, a de Jupien pôs-se logo em harmonia com ela, como se seguisse as leis de uma arte secreta. O barão, que agora dissimulara a impressão que sentira, mas que, apesar da indiferença, parecia não se afastar senão contra a vontade, ia e vinha, olhava meio vago da maneira como pensava realçar a beleza de suas pupilas, passando um aspecto presunçoso, negligente e ridículo. 

Ora, Jupien, perdendo iodo com ar humilde e bondoso que sempre lhe conhecera, tinha (em perfeita, simetria com o barão) erguido a cabeça de novo, dera a seu talhe uma vantagem, pousara o punho nas ancas com uma impertinência grotesca; fazia ressaltar o traseiro, assumia poses com a coqueteria que poderia; a orquídea para com o besouro providencialmente surgido. Eu não sabia que ele pudesse parecer tão antipático. Mas ignorava também que fosse capaz de representar de improviso a sua parte naquela espécie de cena de mudos, que (embora se encontrasse pela primeira vez em presença de Charlus) dava a impressão de ter sido longamente ensaiada não chega espontaneamente a essa perfeição a não ser quando achamos um compatriota no estrangeiro, com quem então o entendimento se faz o mesmo, visto que o intérprete é idêntico e sem que nenhum dos dois nunca mais se tenha encontrado.

Aliás, aquela cena positivamente não era nada cômica; estava própria de uma singularidade ou, se preferem, de uma naturalidade cuja beleza aumentava a cada instante. O Sr. de Charlus, por mais que aparentasse um ar desligado, baixava distraidamente as pálpebras, erguia-as de vez em quando e, então, lançava a Jupien um olhar atento. Mas (sem dúvida por pensar que semelhante cena não poderia prolongar-se indefinidamente naquele local, seja por motivos que se compreenderão mais tarde, seja por aquele sentimento da brevidade de todas as coisas que faz com que se deseje que cada tiro acerte no alvo, e que torna tão emocionante o espetáculo de todo amor), cada vez que o Sr. de Charlus encarava Jupien, era como se seu olhar fosse acompanhado de uma palavra, o que o tornava infinitamente dessemelhante dos olhares em geral dirigidos a uma peste que se conhece ou não se conhece; olhava Jupien com a fixidez particular de alguém que vai nos dizer:

"Perdoe a minha indiscrição, mas o senhor tem um longo fio branco nas costas", ou então:
"Não creio estar enganado: o senhor também deve ser de Zurique; parece-me já tê-lo encontrado muitas vezes na loja do antiquário."

Assim, a cada dois minutos a mesma questão parecia intensamente se colocar a Jupien na olhadela do Sr. de Charlus como essas frases interrogativas de Beethoven, repetidas indefinidamente a intervalos iguais, e destinadas com um luxo exagerado de preparativos a conduzir um novo motivo, uma mudança de tom, uma "reentrada". Precisamente, a beleza dos olhares do Sr. de Charlus e de Jupien, pelo contrário, provinha do fato de que, ao menos provisoriamente, tais olhares não pareciam ter por finalidade levar a alguma coisa. Essa beleza, era a primeira vez que eu via o barão e Jupien manifestá-la. Nos olhos de um e de outro, o que acabara de erguer-se era o céu, não o de Zurique, mas de alguma cidade oriental cujo nome eu ainda não adivinhara. Qualquer que fosse a interrupção que pudesse deter o Sr. de Charlus e o alfaiate, o seu acordo parecia concluído, e aqueles inúteis olhares não eram mais que prelúdios rituais, semelhantes às festas celebradas antes de um matrimônio já combinado. Mais próximos da natureza ainda e a multiplicidade dessas comparações é por si só tanto mais natural que um mesmo homem, ao ser examinado durante alguns minutos, parece sucessivamente um homem, um homem-pássaro ou um homem-inseto, etc. -, dir-se-ia dois pássaros, o macho e a fêmea, o macho procurando avançar, a fêmea - Jupien já não respondendo com qualquer sinal a essa manobra, mas encarando o seu novo amigo sem espanto, com uma fixidez alheada, sem dúvida considerada mais perturbadora e a única útil, uma vez que o macho dera os primeiros passos, e contentando-se em alisar as plumas. Enfim, a indiferença de Jupien já pareceu não lhe bastar; daquela certeza de ter conquistado, a se fazer perseguir e desejar, não havia mais que um passo, e Jupien, resolvendo partir para o trabalho, saiu pela porta principal. Entretanto, só depois de ter voltado duas ou três vezes a cabeça é que escapuliu para a rua, aonde o barão, receando perder a sua pista (assobiando com ar fanfarrão, não sem gritar um "até logo" ao porteiro, que, meio bêbado e ocupado em atender a visitantes num quartinho atrás da cozinha, nem sequer o ouviu), correu vivamente para alcançá-lo. No mesmo instante em que o Sr. de Charlus atravessava a porta zumbindo como um grande besouro, um outro, este verdadeiro, entrava no pátio. Quem sabe não era este o esperado há tanto tempo pela orquídea, e que vinha trazer-lhe o pólen tão raro sem o qual ela continuaria virgem? Porém, fui desviado ao seguir as evoluções do inseto, pois, após alguns instantes, prendendo mais a minha atenção, Jupien (talvez para apanhar um pacote que levou mais tarde, e que esquecera na emoção que lhe causara o aparecimento do Sr. de Charlus, talvez apenas por um motivo mais natural), Jupien voltou, seguido pelo barão. Este, disposto a apressar as coisas, pediu fogo ao alfaiate, mas observou logo: 

- Peço-lhe fogo, mas vejo que esqueci meus charutos. 

- As leis da hospitalidade prevaleceram sobre as regras da coqueteria. - Entre, vai ter tudo o que quiser - disse o alfaiate, em cuja fisionomia o desdém cedeu lugar ao contentamento. A porta da loja voltou a fechar-se atrás deles e não pude ouvir mais nada. Perdera de vista o besouro, não sabia se ele era o inseto necessário à orquídea, mas já não duvidava, quanto a um inseto bem raro e a uma flor cativa, da milagrosa possibilidade da conjunção, quando o Sr. de Charlus (simples comparação no tocante aos acasos providenciais, sejam quais forem, e sem a menor pretensão científica de relacionar certas leis da botânica com aquilo que às vezes se chama impropriamente a homossexualidade), que, há muito tempo, só vinha a esta casa às horas em que Jupien estava ausente, pela casualidade de uma indisposição da Sra. de Villeparisis, encontrara o alfaiate e, com ele, a boa fortuna reservada aos homens do gênero do barão por uma dessas criaturas que até podem ser, como se verá, infinitamente mais jovens que Jupien, e mais belas, o homem predestinado para que aqueles tenham a sua parte de volúpia neste mundo: o homem que só ama os velhos.

Aliás, o que acabo de dizer aqui é o que só haveria de compreender alguns minutos mais tarde, de tal modo aderem à realidade essas propriedades de ser invisível, até que uma circunstância a tenha despojado delas. Em todo caso, no momento sentia-me bastante aborrecido por não mais ouvir a conversa do velho coleteiro com o barão. Percebi então a loja para alugar, separada da de Jupien apenas por um tabique bastante delgado. Para chegar até ela, bastava subir ao nosso apartamento, ir à cozinha, descer a escada de serviço até os porões, segui-los internamente em toda a extensão do pátio e, chegado à altura do subsolo, em que há poucos meses o marceneiro ainda serrava a sua madeira, e onde Jupien tencionava pôr o seu carvão, subir os poucos degraus que davam acesso ao interior da loja. Assim, todo o caminho se faria às escondidas, eu não seria visto por ninguém. Era o meio mais prudente. Não foi o que adotei, mas, indo ao longo das paredes, contornei o pátio ao ar livre, procurando não ser visto. Se não o fui, penso que o devo mais ao acaso que à cautela. Quanto ao fato de me haver arriscado a semelhante imprudência, quando o caminho pelos porões era tão seguro, vejo três razões possíveis, caso haja alguma. Primeiro, a impaciência. Depois, talvez, uma recordação obscura do episódio de Montjouvain, escondido diante da janela da Srta. Vinteuil. De fato, as coisas desse gênero, a que assisti, tiveram sempre, no cenário, o caráter mais imprudente e menos verossímil, como se tais revelações só devessem constituir a recompensa de um ato cheio de riscos, embora em parte clandestino. Por fim, mal ouso confessar a terceira razão, devido a seu caráter de infantilidade, que foi, segundo creio, inconscientemente determinante. Desde que, para seguir e ver desmentidos os princípios militares de Saint-Loup, eu acompanhara em minúcias a guerra dos Boers, fora levado a reler antigas histórias de explorações, de viagens. Tais histórias me haviam apaixonado, e aplicava-as à vida corrente para criar mais ânimo. Quando as crises me forçavam a ficar vários dias e várias noites seguidas não apenas sem dormir, mas sem me deitar, sem comer nem beber, no instante em que o sofrimento e a exaustão chegavam a tal ponto que eu achava nunca mais me livraria deles, então eu pensava num determinado viajante atirado à praia, intoxicado por ervas daninhas, tremendo de febre em suas roupas ensopadas pela água do mar, e que, no entanto, sentia-se melhor ao fim de dois dias e retomava o caminho ao acaso, em busca de quaisquer habitantes que talvez fossem antropófagos. Seu exemplo me fortificava, dava-me esperança, e eu sentia vergonha de ter desanimado por um momento. Lembrando os bôers que, tendo pela frente exércitos ingleses, não temiam se expor no instante em que era necessário atravessar regiões de campo raso antes de encontrar um cerrado, eu pensava:

"Tinha graça que eu fosse mais pusilânime, quando o teatro das operações é simplesmente o nosso próprio pátio, e quando eu, que me bati em duelo tantas vezes sem nenhum medo, devido ao Caso Dreyfus, o único ferro que tenha a temer é o do olhar dos vizinhos, que têm mais que fazer que olhar para o pátio."

Mas, quando entrei na loja, evitando ao máximo fazer estalar o assoalho, dando-me conta de que o mais leve rumor da loja de Jupien era ouvido no aposento em que eu estava, pensei o quanto Jupien e o Sr. de Charlus tinham sido imprudentes e como o acaso lhes fora providencial. Não ousava mexer-me. O palafreneiro dos Guermantes, aproveitando sem dúvida a ausência deles, transportara para a sala em que me encontrava uma escada de mão, guardada até então na estrebaria. E, se eu subisse nela, poderia abrir os postigos e ouvir como se estivesse na própria loja de Jupien. Mas receei fazer barulho. Além do mais, era inútil. Nem tive mesmo de lamentar só haver chegado ao meu aposento ao fim de alguns minutos. Pois, conforme o que ouvi nos primeiros instantes no de Jupien, e que não passaram de sons inarticulados, suponho que foram ditas poucas palavras. É verdade que aqueles sons eram tão violentos que, se não tivessem sido sempre repetidos uma oitava mais alta por um gemido paralelo, eu poderia julgar que uma pessoa degolava outra junto de mim, e que, a seguir, o assassino e sua vítima ressuscitada tomavam um banho para apagar os sinais do crime. Mais tarde concluí que existe uma coisa tão ruidosa como a dor: é o prazer, sobretudo quando a ele se ajuntam - na falta do receio de ter filhos, o que não podia ser o caso atual, apesar do exemplo inconvincente da Legenda Áurea preocupações imediatas de propriedade. Por fim, ao cabo de meia hora, aproximadamente (durante a qual eu subira a escada com pés de gato, para espreitar pelo postigo, que, não abri), iniciou-se uma conversação. 


continua na página 05...
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Sodoma e Gomorra (Cap I - A casa da Sra. de Villeparisis) 
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