volume IV
Sodoma e Gomorra
Capítulo Primeiro
Capítulo Primeiro
Primeira Parte
Jupien recusava, decidido, o dinheiro que o Sr. de Charlus queria lhe oferecer.,
Depois, o barão deu um passo para fora da loja.
- Por que você usa o queixo rapado desse modo? - disse Jupien ao Sr. de Charlus em tom carinhoso. - É tão bonito uma bela barba!
- Puf! É detestável - deu o barão.
Entretanto, demorava-se ainda no limiar da porta e Jupien informações sobre o bairro. Não sabe nada acerca do vendedor de castanhas da esquina? Não, não o da esquerda, este é um horror, mais no lado par, um rapagão bem moreno. E o farmacêutico de frente tem um ciclista muito gentil que leva os seus medicamentos.
Essas perguntas notadamente aborreceram a Jupien, pois, erguendo-se com o despeito de grande amante traída, respondeu:
- Vejo que tem no coração volúpia!
Proferida em tom doloroso, glacial e amaneirado, esta censura foi claramente sensível ao Sr. de Charlus, que, para desfazer a má impressão que sua ansiedade produzira, dirigiu a Jupien, baixinho demais para que eu distinguisse bem as palavras, uma rogativa que, sem dúvida, exigiria que eles continuassem sem sua permanência na loja, o que sensibilizou o alfaiate o bastante para dissipar-lhe a mágoa, pois ele ficou olhando o rosto do barão, gordo, congestionado sob os seus cabelos grisalhos, com o ar inundado de felicidade de alguém cujo amor-próprio acaba de ser profundamente lisonjeado decidindo conceder ao Sr. de Charlus o que este lhe pedia, Jupien, fez algumas observações faltosas de distinção, como:
- Puxa, que bunda! - disse ao barão com ar risonho, emocionado, superior e grato:
- Bem, vamos lá, seu garotão!
- Se insisto na questão do condutor de bonde - prosseguiu de Charlus com tenacidade -, é que, fora tudo o mais, poderia ter interesse para a volta. Acontece-me, realmente, como ao califa que corria Bagdá disfarçado em simples mercador, condescender em seguir alguma criaturinha cuja silhueta me agrade.
Fiz aqui a mesma observação que tinha feito sobre Bergotte. Se alguma vez ele tivesse de responder diante de um tribunal, empregaria não frases próprias para convencer os juízes, mas essas frases bergotescas que seu temperamento literário especial sugeriria naturalmente e lhe daria prazer em empregá-las. Semelhante o Sr. de Charlus, falando ao alfaiate, servia-se da mesma linguagem que empregaria com as pessoas mundanas do seu meio, até exagerando os tiques, ou porque a timidez contra a qual se esforçava por lutar a um orgulho excessivo, ou porque, impedindo-o de se dominar sentimo-nos mais inibidos diante de alguém que não pertence ao meio, ela o forçava a revelar, a desnudar sua natureza, que, de fé orgulhosa e um tanto louca, como dizia a Sra. de Guermantes.
- Para perder seu rastro - continuou ele como um professorzinho, um jovem e belo médico, no mesmo bonde da criaturinha, de quem mesmo no feminino para seguir a regra (como se diz, falando que Vossa Alteza está bem-disposta?). Se ela muda de bonde, faço, tal os micróbios da peste, a coisa incrível chamada "baldeação", tomo um número que, ainda que o entreguem a mim, nem sempre é o número 1! Assim, mudo até três ou quatro vezes de "carro". Por vezes arribo às onze horas da noite para chegar em Orléans, é preciso voltar! Se se tratasse apenas da garantia de Orléans! Mas uma vez, por exemplo, não tendo podido entabular conversa antes, fui mesmo até Orléans, num desses vagões horríveis em que se tem por vista inteira, em meio a triângulos de trabalhos manuais ditos "de malha", a fotografia das principais obras-primas de arquitetura da rede ferroviária. Só restava um lugar vago, e eu tinha à minha frente, como monumento histórico, uma "vista" da catedral de Orléans, que é a mais feia da França, e tão cansativa de olhar, assim a contragosto, como se me tivessem obrigado a olhar as suas torres na bolinha de vidro de uma dessas canetas óticas que produzem oftalmias. Desci nos Aubrais ao mesmo tempo que a minha criaturinha, que, ai de mim, tinha toda a família à espera na plataforma (quando supunha tivesse todos os defeitos, menos o de possuir uma família)! Só tive como consolo, enquanto esperava o trem que me levaria de volta a Paris, a casa de Diane de Poitiers. Por mais que ela tivesse enfeitiçado a um de meus régios antepassados, eu teria preferido uma beleza mais viva. Por isso, para remediar o aborrecimento desses regressos solitários, é que eu gostaria muito de conhecer algum servente dos vagões-leito, um motorista de ônibus. Aliás, não fique chocado - concluiu o barão -, tudo isto é uma questão de gênero. O que diz respeito aos jovens da alta sociedade, por exemplo, não desejo nenhuma posse física, mas não fico tranquilo enquanto não lhes toco, não quero dizer materialmente, enquanto não lhes toco a corda sensível. Uma vez que, em lugar de deixar minhas cartas sem resposta, um rapaz não cessa mais de me escrever, e está à minha disposição moral, fico sossegado, ou pelo menos ficaria se logo não me dominasse a preocupação por um outro. Muito curioso, não é mesmo? A propósito de jovens da alta sociedade, não conhece algum dentre os que vêm aqui?
- Não, meu boneco. Ah, sim, um moreno, bem alto, de monóculo, que ri sempre e vive se voltando.
- Não percebo quem você quer dizer.
Jupien completou o retrato, o Sr. de Charlus não conseguia descobrir de quem se tratava, pois ignorava que o antigo coleteiro era uma dessas pessoas, mais numerosas do que se julga, que não lembram a cor dos cabelos das pessoas a quem conhecem pouco. Mas para mim, que sabia dessa fraqueza de Jupien, que trocava moreno por louro, o retrato me pareceu relacionar-se precisamente com o duque de Châtellerault.
- Voltando aos jovens que não são do povo - continuou o barão -, no momento a minha cabeça está virada por um estranho rapaz, um jovem burguês inteligente, que se mostra a meu respeito de uma descortesia incrível. Não faz a menor idéia da prodigiosa personagem que sou e do vibrião microse que ele representa. Afinal, que importa! Esse burrinho pode zurrar o quiser diante de minhas augustas vestes de bispo.
- Bispo! Exclamou Jupien, que nada compreendera das últimas frases que o Sr. de Charlus acabava de pronunciar, mas a quem a palavra "bispo" deixara estupefato - Mas isto não vai bem com a religião - disse ele.
- Tenho três papas, na família - respondeu o Sr. de Charlus e o direito a me vestir em público, devido a um título cardinalício, já que a sobrinha do meu tio-avô trouxe a meu avô o título de duque, que lhe foi substituído. Vejo que metáforas o deixam surdo e que a história da França lhe é indiferente, de resto -acrescentou, talvez menos à maneira de conclusão do que só uma advertência -, essa atração que exercem sobre mim os rapazes me fogem, naturalmente de medo, pois apenas o respeito lhes encerra a bestialidade para gritarem que me amam, exige, da parte deles, uma posição eminente. Contudo, a sua fingida indiferença pode produzir, apesar disso - um efeito diretamente contrário. Tolamente prolongada, ela me causa dó. Para dar um exemplo numa classe que lhe será mais familiar: quando fizeram reparos em meu palácio, a fim de que não se sentissem enciumadas todas as duquesas que disputavam a honra de poder dizer que me haviam hospedado, fui passar alguns dias "de hotel", como se costuma dizer. Um dos camareiros era meu conhecido; mostrei-lhe um curioso boy que fechava as portinholas e se mantinha refratário às minhas propostas. Por fim exasperado, para lhe provar que minhas intenções eram puras, mandei oferecer-lhe uma quantia ridiculamente elevada, unicamente para que ele subisse e me falasse por cinco minutos no meu quarto. Esperei-o inutilmente. Tomei-lhe então uma tal repugnância que saí pela porta de serviço, para não enxergar de novo a cara daquele safado. Soube depois que nunca lera nenhuma de minhas cartas, que tinham sido interceptadas. A primeira pelo camareiro do meu andar, que era invejoso; a segunda, pelo porteiro do dia, que era virtuoso; a terceira, pelo porteiro da noite, que ambicionava o jovem boy e dormia com ele à hora em que Diana se levantava. Nem por isso deixou de persistir a minha repugnância; e, se me houvessem trazido o boy como um simples despojo de caça numa salva de prata, eu o poria num vômito. Porém, o mal é que temos falado de coisas sérias e agora está tudo acabado entre nós, quanto ao que eu esperava. Mas você pode me prestar muitos serviços, intervir; mesmo que não, só esta idéia já devolve um certo ânimo, e sinto que nada acabou.
Desde o começo desta cena, para os meus olhos arregalados operara-se uma revolução no Sr. de Charlus, tão completa, tão imediata como se ele tivesse sido tocado por uma varinha mágica. Até então, que não compreendera, não tinha visto. O vício (fala-se deste modo por comodidade de linguagem), o vício de cada um o acompanha à maneira daquele gênio, que era invisível para os homens enquanto ignoravam a sua presença. A bondade, a artimanha, o nome, as relações mundanas não se deixam descobrir, e cada qual as traz escondidas. O próprio Ulisses a princípio não reconheceu Atenéia. Mas os deuses são imediatamente perceptíveis aos deuses, o semelhante o é bem depressa a seu semelhante, e assim o fora ainda o Sr. de Charlus a Jupien. Até aqui eu me encontrara em presença do Sr. de Charlus da mesma forma que um homem distraído, que, diante de uma mulher grávida em cujo talhe pesadão não reparou, enquanto ela lhe repete sorrindo:
- Sim, estou meio cansada agora teima em lhe perguntar, indiscreto:
- Mas o que sente a senhora?
Até que quando alguém lhe diz:
- Está grávida e aí. - de súbito, percebe o ventre e não verá mais que este. É a razão que abre os olhos; um engano dissipado nos confere um sentido a mais.
As pessoas que não gostam de reportar-se, como exemplos dessa lei, aos senhores de Charlus de seu conhecimento, de quem por muito tempo não tinham desconfiado até o instante em que, sobre a lisa superfície do indivíduo semelhante aos outros, tenham chegado a aparecer, traçados com uma tinta até então invisível, os caracteres que compõem a palavra cara aos antigos gregos, não têm, para se convencerem de que o mundo que os rodeia lhes aparece primeiramente nu, desprovido de mil ornatos que ele oferece a outros mais cientes, senão que relembrar quantas vezes na vida lhes aconteceu estarem a ponto de cometer uma gafe. Nada, no rosto privado de caracteres desse ou daquele homem, podia lhes fazer supor que ele era exatamente o irmão ou o noivo, ou o amante de uma mulher de quem iam exclamar:
- É uma anta!
Mas então, por sorte, uma palavra que lhes sussurra um vizinho faz parar em seus lábios o termo fatal. Logo aparecem, como um Mane Thecel Fares, estas palavras: ele é o noivo, ou ele é o irmão, ou ele é o amante da mulher que não convém que se chame diante dele:
- É uma anta.
E só essa nova noção arrastará consigo todo um reagrupamento, a retirada ou o avanço da fração das noções, dali em diante completadas, que se possuíam acerca do resto da família.
Ao Sr. de Charlus era baldado que se acoplasse um outro ser, que o diferenciasse dos demais homens, como no centauro o cavalo; era baldado que este ser fizesse um só corpo com o barão; eu nunca o havia percebido. Agora o abstrato se materializara, e o ser enfim compreendido perdera logo o poder de continuar invisível, e a transmutação do Sr. de Charlus numa pessoa nova era tão completa que não só os contrastes do seu rosto, de sua voz, mas, retrospectivamente, também os próprios altos e baixos de suas relações comigo, tudo o que até então havia parecido incoerente ao meu espanto tornava-se inteligível, mostrava-se evidente, como uma frase, que não percebe qualquer sentido enquanto permanece decomposta em letras arranjadas ao acaso, exprimem-se os caracteres se acham recolocados na ordem correta, um pensamento que já não poderá ser esquecido. Além do mais, eu compreendia agora por que, ainda há pouco quando o vira sair da casa da Sra. de Villeparisis, pudera achar que o Sr. de Charlus tinha um jeito de mulher: pois era uma! Pertencia à raça daquelas criaturas, menos contraditórias que parecem, cujo ideal é viril, justamente porque seu temperamento é feminino, e que na vida são semelhantes outros homens, porém apenas na aparência; aí onde cada um traz constantemente, nesses olhos com os quais vê todas as coisas no universo, uma silhueta gravada na pupila não é para eles a de uma ninfa, mas de um efeboy. Raça sobre a qual pesa uma maldição e que tem de viver na mentira e na penúria, pois que se tem por punível e vergonhoso, por inconfessável, o falho desejo, o que é para cada criatura a doçura máxima de viver; que deve renegar seu Deus, visto que, mesmo os cristãos, quando comparecem como açoitados à barra do tribunal, é-lhes necessário, diante do Cristo e em seu nome defenderem-se como de uma calúnia daquilo que é a sua própria vida! Filhos sem mãe, à qual são obrigados a mentir mesmo à hora de lhe fechar os olhos; amigos sem amizades, apesar de todas as que inspiram o seu encanto reconhecido com frequência e das que seu coração, em geral bondoso, sentiria; porém, podem chamar-se amizades essas relações que só vegetam a favor de uma mentira e de onde os faria rejeitar com desgosto primeiro impulso de confiança e de sinceridade que se sentissem tentados a ter, a menos que se dirijam a um espírito imparcial, e até mesmo simpático, mas que então, perturbado a respeito deles por uma psicologia convencional, fará derivar do vício confessado o mesmo afeto que lhe é estranho, assim como alguns juízes pressupõem e desculpam mais facilmente o assassínio entre os invertidos e a traição entre os judeus por raridades extraídas do pecado original e da fatalidade da raça? Enfim pelo menos conforme a primeira teoria que à conta deles eu esboçava então, teoria a seguir veremos modificar-se, e na qual isto os irritaria mais que tudo essa contradição não se ocultasse a seus olhos pela própria ilusão que fazia ver e viver amantes a quem está quase fechada a possibilidade de amor, cuja esperança lhes dá forças para suportar tantos riscos e solidão; visto que justamente estão apaixonados por um homem que não teria de mulher, um homem que não seria invertido e que, por conseguinte, pode amá-los; de modo que o seu desejo permaneceria insaciável para perder-se o dinheiro, não lhes entregasse verdadeiros homens e se a imaginação não acabasse por fazê-los tomar por homens de verdade os invertidos a quem se prostituem. Sem honra, senão precária; sem liberdade, senão provisória, até a descoberta do crime; sem posição que não seja instável, como para o poeta, festejado na véspera em todos os salões, aplaudido em todos os teatros de Londres e, no dia seguinte, expulso de todos os quartos, sem poder achar um travesseiro onde repousar a cabeça, dando voltas à pedra de amolar como no verso do Poema "A cólera de Sansão", de Alfred de Vigny (1797-1863) como Sansão, ele fica repetindo:
''Os dois sexos morrerão cada qual por seu lado; excluídos até, salvo nos dias de grande infelicidade, em que a maioria se reúne ao redor de sua vítima”; como os judeus ao redor de Dreyfus de toda simpatia, e às vezes da sociedade, de seus semelhantes, aos quais dão o desgosto de ver que são, pintados num espelho que, não os adulando mais, acusa todas as taras que não tinham desejado notar em si mesmos e que os faz compreenderem que aquilo a que denominam amor (e a que, brincando com a palavra, haviam anexado, por sentido social, tudo quanto a poesia, a pintura, a música, a cavalaria, o ascetismo tinham podido acrescentar ao amor) decorre não de um ideal de beleza que tenham escolhido, mas de uma enfermidade incurável; como ainda os judeus (salvo uns poucos que só desejam conviver com os de sua raça, e têm sempre nos lábios as palavras rituais e os gracejos consagrados), fugindo uns dos outros, buscando os que lhes são mais contrários, que não querem saber deles, perdoando as suas zombarias, embriagando-se com suas complacências; mas ainda assim unidos a seus semelhantes pelo ostracismo que os fere, o opróbrio em que caíram, tendo acabado por adquirir, graças a uma perseguição idêntica à de Israel, os caracteres físicos e morais de uma raça, às vezes bela, freqüentemente horrível, encontrando apesar de todas as troças com que o mais mesclado, mais assimilado à raça adversa, é relativamente, em aparência, o menos invertido, cobre aquele que simplesmente continuou a sê-lo um descanso no convívio de seus semelhantes, e até um apoio na existência, até que, negando sempre formarem uma raça (cujo nome é a maior injúria), os que conseguem ocultar que a ela pertencem, desmascaram-nos de boa vontade, não tanto para lhes causar dano, coisa que não detestam, quanto para se desculparem, e indo buscar, como um médico pesquisa o apendicite, a inversão até na História, tendo prazer em lembrar que Sócrates era um deles, como os israelitas dizem que, era judeu, sem pensar que não havia anormais quando o homossexual a regra, nem anticristãos antes de Jesus Cristo, que só o opróbrio no crime, pois só deixou de subsistir para aqueles que eram refratários de toda pregação, a todo exemplo, a todo castigo, em virtude de uma distinção inata e de tal modo especial que repugna mais aos outros homens daquele que possa vir acompanhado de altas qualidades morais) do que vícios que se contradizem, como o roubo, a crueldade, a má-fé, mais compreendidos e, portanto, mais desculpados pelo comum dos homens; - formando uma francomaçonaria bem mais extensa, mais eficaz e suspeita que a das lojas, pois repousa numa identidade de gostos, aparências, de hábitos, de perigos, de aprendizagem, de saber, de tráfico; glossários, e na qual os próprios membros que aspiram a não ser conhecidos logo se reconhecem por traços naturais ou de convenção, involuntárias ou intencionais, que assinalam ao mendigo um de seus semelhantes o grão-senhor que lhe fecha a porta de seu carro; ao pai, no noivo da filha; ao que desejara curar-se, confessar-se, defender-se, no médico, no pai, no advogado a quem recorreu; todos forçados a proteger o seu segredo; tendo a sua parte no segredo dos outros, de que o restante da humanidade - não suspeita e que faz com que os mais inverossímeis romances de aventuras lhes pareçam verdadeiros; pois, nessa vida romanesca, anacrônica; o embaixador é amigo do preso; o príncipe, com uma certa liberdade dos que lhe confere a educação aristocrática e que um pequeno-burguês medroso não teria, ao sair da casa da duquesa, vai se entender como apache; parte reprovada da coletividade humana, porém parte importante, que se suspeita onde não está, ostensiva, insolente, impune onde é adivinhada; contando com adeptos por toda a parte, no povo, no exército, no templo, na penitenciária, no trono; vivendo enfim, ao menos um grande número, na intimidade cariciosa e arriscada dos homens da outra parte, provocando-os, brincando com eles ao falar do seu vício como se não fosse seu; jogo que se torna fácil pela cegueira ou pela falsidade dos outros, já que pode se prolongar durante anos até o dia do escândalo, em que domadores são devorados; até então obrigados a ocultar a sua vida, a virar os olhos de onde gostariam de fixá-los, a fixá-los de onde gostariam de desviá-los, de mudar o gênero de muitos adjetivos em seu vocabulário; o freio social em comparação com o freio interior que seu vício, ou o que denomina impropriamente desse modo, lhes impõe não mais em relação à outros mas a si mesmos, e de maneira que a eles próprios não pareça vício. Porém alguns, mais práticos, mais apressados, que não têm de pechinchar e de renunciar à simplificação da vida e a esse ganha tempo que pode resultar da cooperação, formaram duas sociedades, das quais a segunda é composta exclusivamente de criaturas semelhantes a eles. Isto é chocante naqueles que são pobres e vêm da província, sem relações de amizade, sem outra coisa a não ser a ambição de um dia se transformarem num médico ou advogado célebre, cujo espírito ainda está vazio de opiniões, cujo corpo é destituído das maneiras que eles esperam tornar bem depressa, assim como comprariam móveis, para seu quartinho do Quartier latin, de acordo com o que notassem e copiassem dos que já "venceram" na profissão útil e séria em que sonham se encaixar e tornar-se ilustres; nestes, seu gosto especial, herdado sem que soubessem, como a inclinação para o desenho, para a música, à cegueira, é talvez a única originalidade viva, despótica, e que em certas noites força-os a não comparecerem a determinada reunião, proveitosa à sua carreira, com pessoas das quais, para o resto, adotam os modos de falar, de pensar, de se vestir, de se pentear. Em seu bairro, onde sem isto só convivem com colegas, mestres ou algum conterrâneo já triunfante e que os protege, logo descobriram outros rapazes de quem o mesmo gosto especial os aproxima, como numa aldeia se ligam o professor secundário e o tabelião, ambos amantes da música de câmara e do marfim da Idade Média; aplicando ao objeto de sua distração o mesmo instinto utilitário, o mesmo espírito profissional que os norteia em sua carreira, reencontram-nos em sessões onde não se admite nenhum profano, desses que congregam amadores de antigas caixas de rapé, de estampas japonesas, de flores raras; e onde, devido ao prazer de se instruir, da utilidade das trocas e do temor das competições, reinam a um tempo, como numa Bolsa de Selos, a estreita harmonia dos especialistas e as ferozes rivalidades dos colecionadores. Aliás, ninguém no café onde eles têm sua mesa sabe que reunião é aquela, se se trata de uma sociedade de pesca, se é de secretários de redação, ou de filhos do Indra, de tal modo sua compostura é correta, o seu aspecto reservado e frio; a tal ponto que não ousam olhar senão às escondidas para os rapazes da moda, os jovens "leões" que, a poucos metros de distância, fazem estardalhaço de suas amantes, e entre os quais os que os admiram sem ousar erguer a vista saberão, vinte anos depois, quando uns estiverem às vésperas de entrar para uma academia, e outros forem sisudos homens de clube, que o mais sedutor, agora um corpulento e grisalho Charlus, era de fato igual a eles, mas em outra parte, em outro mundo, sob outros símbolos externos, com sinais estranhos, cuja diferença os induziu à erro. Porém, os agrupamentos são mais ou menos avançados; e, como a União das Esquerdas difere da Federação Socialista e determinada sociedade de música de Mendelssohn da Schola Cantorum, certas noites, em outra mesa, há extremistas que deixam aparecer um bracelete sob o punho da camisa, às vezes um colar pela do colarinho, forçam, com seus olhares insistentes, seus cacarejos, carícias entre si, um grupo de colegiais a fugir rapidamente, e são dos, com uma polidez em que se incuba a indignação, por um garçom, como nas noites em que serve a dreyfusistas, ficaria satisfeito em chamar a polícia se não lhe fosse conveniente guardar as gorjetas.
continua na página 09...
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Leia também:
Volume 1
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Sodoma e Gomorra (Cap I - Jupien recusava, decidido)
Sodoma e Gomorra (Cap I - São semelhantes organizações profissionais)
Volume 5
A Prisioneira (Prefácio)Volume 6
Volume 7
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