quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

O Sol é para todos: 1ª Parte (10a)

Harper Lee

O Sol é para todos


Para o sr. Lee e Alice, em retribuição ao amor e afeto


Os advogados, suponho, um dia foram crianças.
CHARLES LAMB



PRIMEIRA PARTE

10

   Aticus tinha ficado fraco, estava com quase cinquenta anos. Quando Jem e eu perguntamos por que ele era tão velho, ele disse que tinha começado tarde, e concluímos que isso comprometia a capacidade e a virilidade dele. Atticus era muito mais velho que os pais dos nossos colegas na escola e tínhamos de ficar quietos quando eles contavam vantagem: “O meu pai faz…”
   Jem era louco por futebol. Atticus estava sempre disposto a defender os chutes que ele dava, mas quando Jem queria que eles disputassem a bola, Atticus dizia:

— Estou velho demais para isso, filho. 

   Atticus não fazia nada. Trabalhava num escritório, e não numa farmácia. Não era motorista do caminhão de lixo do condado, não era xerife, não trabalhava no campo, não era mecânico, nem fazia nada que alguém pudesse admirar.
   Além disso, usava óculos. Era quase cego do olho esquerdo, o que ele considerava a maldição hereditária dos Finch. Quando queria enxergar bem alguma coisa, virava a cabeça e olhava com o direito.
   Ele não fazia as coisas que os pais dos nossos colegas de escola faziam: não caçava, não jogava pôquer, não pescava, não bebia nem fumava. Só ficava sentado na sala e lia.
   Mesmo assim, ele não passava tão despercebido quanto gostaríamos: naquele ano, a escola fervilhava de comentários sobre ele por estar defendendo Tom Robinson, e nenhum era elogioso. Depois da minha briga com Cecil Jacobs, quando passei a me comportar como uma covarde, começou a correr o boato de que Scout Finch não brigava mais, o pai tinha proibido. Não era bem assim: eu não brigava em público por causa de Atticus, mas a família era um terreno privado, e eu brigaria com unhas e dentes com quem quer que fosse, de primo de terceiro grau em diante. Francis Hancock, por exemplo, sabia disso.
   Quando nos deu os rifles de ar comprimido, Atticus não quis nos ensinar a atirar. Mas tio Jack nos mostrou os princípios básicos e explicou que nosso pai não gostava de armas. Um dia, Atticus disse a Jem:

— Preferia que você atirasse em latas no quintal, mas sei que vai atrás dos passarinhos. Atire em todos os gaios que quiser, se conseguir acertá-los, mas lembre-se: é pecado matar – um rouxinol.

   Foi a única vez que ouvi Atticus dizer que alguma coisa era pecado e comentei com a Srta. Maudie. 

— Seu pai tem razão. O rouxinol não faz nada além de cantar para o nosso deleite. Não destrói jardins, não faz ninho nos milharais, ele só canta. Por isso é um pecado matar um rouxinol. 

— Srta. Maudie, nossa vizinhança é bem velha, não é?

— É, é mais velha do que a cidade. 

— Não, eu quis dizer que as pessoas na nossa rua são velhas. Jem e eu somos as únicas crianças por aqui. A sra. Dubose tem quase cem anos, a srta. Rachel está velha, você e papai também. 

— Não acho que cinquenta anos seja muito velha — disse a srta. Maudie, ríspida. — Não estou andando de cadeira de rodas, estou? Seu pai também não. Mas tenho de admitir que a providência divina foi generosa comigo ao incendiar aquele velho mausoléu onde eu morava; estou muito velha para cuidar de uma casa daquelas. Acho que tem razão, Jean Louise, as pessoas aqui são mesmo velhas. Você não convive muito com pessoas mais novas, não é? 

— Só na escola. 

— Eu quis dizer jovens adultos. Sorte sua, sabe. É uma vantagem você e Jem terem um pai mais velho. Se ele tivesse trinta anos, sua vida seria bem diferente.

— Seria mesmo. Atticus não sabe fazer nada…  

— Você provavelmente ficaria surpresa, mas ele ainda tem muita energia — anunciou a srta. Maudie.

— O que ele sabe fazer?

— Bom, ele escreve um testamento tão perfeito que ninguém consegue achar uma brecha. 

— Aaah…

— Bem, você sabia que ele é o melhor enxadrista da cidade? Pois lá em Finch’s Landing, quando éramos jovens, Atticus Finch vencia todos os jogadores das duas margens do rio.

— Céus, srta. Maudie, Jem e eu sempre ganhamos dele no xadrez.

— Pois fique sabendo que vocês ganham porque ele deixa. Sabia que ele toca harpa de boca?

   Esse modesto talento me deu ainda mais vergonha dele.

— Bom… — ela avaliou.

— Bom o quê, srta. Maudie?

— Nada, nada. Achei que ao saber disso você ia se orgulhar dele. Nem todo mundo sabe tocar harpa de boca. Agora, saia do caminho dos carpinteiros. É melhor você ir para sua casa, vou cuidar das azáleas e não posso te vigiar. Pode despencar uma tábua em cima de você. 

   Fui para o quintal de casa e encontrei Jem atirando numa lata, o que achei uma bobagem com tanto passarinho voando por ali. Fui para o jardim e passei duas horas montando uma barricada na lateral da varanda: um pneu, um caixote de laranja, o cesto de roupa suja, as cadeiras da varanda e uma bandeirinha dos Estados Unidos que Jem recortou de uma caixa de pipocas.
   Quando Atticus chegou do trabalho, eu estava agachada fazendo pontaria no outro lado da rua.

— Qual é o seu alvo, Scout? 

— O traseiro da srta. Maudie.

   Papai virou-se e viu meu volumoso alvo debruçado sobre as moitas. Ele empurrou o chapéu para trás e atravessou a rua. 

— Maudie, achei melhor vir avisar que você corre perigo — ele disse. 

   A srta. Maudie se empertigou e olhou para mim. Disse: 

— Atticus, você é um demônio dos infernos. 

   Atticus voltou e me mandou acabar com a barricada.

— Não quero mais que aponte essa espingarda para ninguém — ele disse. 

   Gostaria que meu pai fosse um demônio dos infernos e fui consultar Calpúrnia. 

— O que o sr. Finch sabe fazer? Ora, milhões de coisas.

— O que, por exemplo? 

   Calpúrnia coçou a cabeça. 

— Bom, agora não lembro. 

   Jem sublinhou esse fato quando perguntou se papai ia participar do jogo dos metodistas e Atticus respondeu que podia dar um jeito na coluna, estava muito velho para jogar futebol. Os metodistas queriam pagar a hipoteca da igreja e desafiaram os batistas para um amistoso. Os pais de todo mundo na cidade iam jogar, menos Atticus. Jem disse que não queria ir, mas não resistia a nenhum tipo de futebol e ficou na lateral do campo, desanimado, com Atticus e eu, enquanto o pai de Cecil Jacobs fazia touchdowns para os batistas. 

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Copyright © 1960 by Harper Lee, renovado em 1988 
Copyright da tradução © José Olympio
Título do original em inglês 
TO KILL A MOCKINGBIRD 
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Um dos romances mais adorados de todos os tempos, O sol é para todos conta a história de duas crianças no árido terreno sulista norte-americano da Grande Depressão no início dos anos 1930. 

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