João Ubaldo Ribeiro
Os Estados contemporâneos, democráticos ou não, costumam ser constitucionais, isto é, estão submetidos a uma lei que se sobrepõe a todas as outras e em cujo arcabouço geral a ordem jurídica se inscreve, chamada normalmente de Constituição. Não é necessário que a Constituição seja escrita ou esteja corporificada num documento único. O que interessa é a existência de um conjunto de normas, até mesmo costumeiras, que subordinem todas as outras, configurando também princípios gerais a que as outras hão forçosamente de conformar-se. Neste sentido, nos países democráticos a Constituição é o verdadeiro pacto nacional, ou seja, o conjunto de normas sob as quais o país escolheu viver.
a) promulgadas, quando foram votadas por uma assembleia eleita para este fim, e
b) outorgadas, quando são escritas por um ou mais juristas e impostas ao país pelo governante. Nossa primeira Constituição, outorgada no Primeiro Império, em 1824, deveria ter sido fruto do trabalho de uma Assembleia Constituinte, com representantes das então 17 províncias brasileiras. Isto não quer dizer que resultaria de um processo democrático, como o entendemos hoje, porque se tratava de representantes de oligarquias (eleitos indiretamente) a que a grande massa do povo não tinha acesso, até mesmo porque vivíamos em pleno regime escravocrata.
De qualquer forma, a discussão é acadêmica, porque d. Pedro I
dissolveu a Assembleia Constituinte e outorgou sua própria
Constituição ao país, cujo regime ficou definido como “monárquico,
hereditário e constitucional representativo”. “Inviolável e sagrado”, o
imperador exercia ainda o Poder Moderador, figura hoje inexistente,
que lhe conferia enorme gama de prerrogativas e atribuições, tornadas
mais significativas pelo fato de que cabia a ele também a chefia do
Poder Executivo. São ainda características interessantes da
Constituição de 1824: a Câmara dos Deputados era composta por
representantes eleitos para um mandato temporário e o Senado era
vitalício, com seus membros nomeados pelo imperador a partir de
listas tríplices de eleitos; a renda mínima para que se pudesse ser
eleito deputado era de 200 mil-réis anuais líquidos e, para senador,
800 mil-réis; as eleições eram indiretas e os trabalhadores não
votavam, pois não possuíam a renda mínima necessária para serem
eleitores (por isso se diz que a eleição era censitária, isto é, só podia
ser eleitor quem possuísse uma determinada renda; para ser eleito, já
vimos acima a renda mínima); os analfabetos podiam votar, porque a
maioria dos proprietários rurais não era alfabetizada; a religião oficial
era a Católica Apostólica Romana, cabendo ao imperador a
nomeação dos bispos.
As Constituições republicanas se sucederam a partir de 1891,
com a promulgação da primeira, largamente inspirada em sua
equivalente americana e fruto, inicialmente, do trabalho de uma
comissão de juristas, o chamado anteprojeto. O projeto que resultou
desse trabalho foi promulgado por decreto, sujeito à aprovação de
um Congresso Constituinte, o que terminou por acontecer depois de
um processo tumultuado.
Novamente a participação popular na elaboração da
Constituição foi mínima. As mudanças na ordem jurídica, contudo,
foram bastante amplas, a começar, é claro, pela extinção da
monarquia e do Poder Moderador. Instituiu-se o sufrágio universal,
isto é, o direito de voto para todos os cidadãos do sexo masculino
maiores de 21 anos, sem distinção de renda, mas os analfabetos
perderam o direito ao voto; o mandato dos senadores se tornou
temporário (nove anos), enquanto o dos deputados se fixou em três
anos, eleitos pelo voto distrital misto (nos próximos capítulos
examinaremos melhor isto); adotou-se a forma de Estado federativo
(que também veremos adiante), com vinte estados e um distrito
federal; instituiu-se a eleição direta em todos os níveis, inclusive
para presidente da República; a Igreja Católica deixou de ser oficial;
criaram-se garantias individuais amplas, tais como o habeas corpus, a
liberdade de opinião e de imprensa, o direito de reunião, o sigilo de
correspondência etc. Contudo, esses avanços padeceram ainda, como
padeceriam outros que viriam a seguir, de um distanciamento entre a lei
e a realidade — o fenômeno, conhecido pelos brasileiros, da “lei que
não cola” — pois, até hoje, muitos dos princípios consagrados na
Constituição de 1891 continuam a vigorar, mas apenas no papel.
Depois da Revolução de 1930, em período muito conturbado da
vida brasileira, uma Assembleia Constituinte elabora e promulga, em
1934, uma nova Constituição, que também representou algumas
mudanças, tais como a extensão do direito de voto às mulheres e
certos benefícios para os trabalhadores, entre os quais salário mínimo,
férias remuneradas e indenização por demissão sem justa causa.
A Constituição de 1934, entretanto, teve vida curta. Em 10 de
novembro de 1937, depois de um golpe que fechou o Congresso, o
Brasil recebia nova Constituição, desta feita outorgada e de cunho
declaradamente autoritário. O presidente da República (leia-se
ditador) recebeu poderes amplíssimos, desde a decretação, a seu
arbítrio, de estado de emergência nacional (com a consequente
suspensão das liberdades públicas) até a nomeação de interventores
para os estados. Quanto aos trabalhadores, preservaram-se as
conquistas trabalhistas de cunho paternalista e se cerceou a
liberdade sindical, abolindo-se até mesmo o direito de greve.
Esse período, conhecido como Estado Novo, abrangeu uma
ditadura opressiva e mesmo sanguinária, cujo fim só chegou com o
golpe de 29 de outubro de 1945, que depôs o ditador e promoveu
eleições diretas para a Presidência da República e para uma
Assembleia Constituinte. Pode-se afirmar que, na formação dessa
Assembleia Constituinte, o grau de participação popular foi bem maior
que nos casos precedentes, embora longe de ser tão significativo
quanto devia. O alto número de analfabetos, as dificuldades
burocráticas para votar, a existência de currais eleitorais e fraudes
generalizadas contribuíram de modo decisivo para tornar essa
participação comparativamente reduzida. A Constituição de 1946 é
conhecida como liberal, e muitos de seus dispositivos, de feitio
progressista e alicerçados em princípios avançados, nunca passaram
de letra morta. Mas não chega a ser injusto dizer-se que ela foi a
mais democrática que tivemos, como frequentemente se alega.
A essa Constituição seguiu-se a situação criada a partir de
1964. Instalado no poder, o governo militar inicialmente baixou
instrumentos denominados atos institucionais, de que continuou a
dispor mesmo depois de ter promulgado sua Constituição. Ao declarar-se vitorioso, o movimento de 1964, em suas próprias palavras,
“investiu-se do Poder Constituinte”. Alicerçado nessa auto investidura,
que na verdade usurpou a soberania popular, ele exerceu esse Poder
Constituinte, de início, através dos atos institucionais. Seguiram-se,
convivendo ainda com os atos institucionais, a Constituição de 1967 e a
Emenda Constitucional de 1969, tão extensa e restritiva que é
considerada por muitos uma outra Constituição. Em 1979 foram
feitas novas alterações constitucionais, inclusive com a revogação dos
atos institucionais, no que conflitassem com a Constituição.
Com o advento da chamada Nova República, o Brasil convocou
uma Assembleia Constituinte para elaborar a nova Constituição, a
partir de um anteprojeto preparado por uma comissão de notáveis
indicada pelo Ministério da Justiça. O crescente grau de
conscientização política da população, canalizado em grande parte
por entidades associativas dos tipos mais variados, aumentou muito
o interesse popular pela Constituição.
Contudo, uma consequência desse interesse em torno da
Constituição foi a hipertrofia de sua imagem pública. Pretendeu-se
incluir no texto constitucional uma gama de dispositivos
excessivamente específicos — como se do texto dependesse o
atendimento direto de todo tipo de reivindicação ou aspiração.
Paralelamente, atribuiu-se à Constituição um poder que, por certo,
nenhum texto legal consegue ter, ou seja, resolver todos os
problemas da sociedade. Por isso, a chamada “Constituição cidadã”,
como passou a ser conhecida a Constituição de 88, listou mais
direitos que deveres, atendeu a reivindicações setoriais e regionais e,
de certa forma, “engessou” o desenvolvimento brasileiro. Por isso
mesmo, começou a ser reformada já em 1993, num processo que
ainda está longe de seu fim.
Desprezando o trabalho da Comissão Arinos (como se chamou a
comissão de notáveis que redigiu o anteprojeto), os constituintes
votaram uma Constituição muito extensa, composta de 245 artigos e
mais setenta de disposições transitórias. As grandes novidades da
Constituição de 1988, comparada às anteriores, tratam da extensão
do sufrágio universal, da participação popular no processo legislativo
e da possibilidade de edição de medidas provisórias (com força de lei)
pelo presidente da República.
A Constituição estendeu os limites do sufrágio universal,
tornando facultativo o voto dos analfabetos, jovens (entre 16 e 18 anos)
e idosos (maiores de setenta anos). Quanto à participação popular, até
1988 as Constituições brasileiras contemplavam a representação, mas
não a participação. Na representação, o cidadão abre mão de sua
capacidade de participar do processo legislativo, em nome de alguém
que o representa através do voto. Já a participação é direta, através
de plebiscitos, referendos e iniciativa popular.
O plebiscito é uma consulta popular sobre uma medida a ser
tomada. O referendo é uma consulta popular sobre alguma medida
que já foi tomada. Por exemplo, faz-se uma lei e esta é submetida à
população, que referenda ou não o seu texto. Estas duas formas de
participação popular servem para consultar a população sobre
questões que não são partidárias, mas da sociedade como um todo.
Aborto, divórcio, determinado tipo de imposto etc. são temas típicos
de consulta popular. No caso brasileiro, o plebiscito de 1961 para
saber se a população queria continuar com o sistema parlamentarista
foi um caso típico de referendo (embora tenha ficado conhecido como
plebiscito). Já o plebiscito de 1993, sobre a forma de governo
(monarquia ou república) e o sistema (parlamentarismo ou
presidencialismo) a serem adotados no país, foi chamado
corretamente de plebiscito.
A iniciativa popular foi inspirada na Constituição americana. Se
um grupo de cidadãos quiser enviar um projeto de lei à Câmara dos
Deputados, poderá fazê-lo sem a intermediação dos partidos
políticos, mas o processo não é simples; o projeto de lei deve ser
subscrito por, no mínimo, 1% do eleitorado nacional, distribuído por
pelo menos cinco estados, com não menos de 3/10% dos eleitores
de cada um deles.
Finalmente, há o caso das medidas provisórias, inspirado na
Constituição italiana, parlamentarista. Com este mecanismo, colocou-se enorme poder nas mãos do presidente da República, pois este, em
caso de “relevância e urgência”, pode adotar medidas provisórias, com
força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.
Estas medidas devem ser convertidas em lei no prazo máximo de
trinta dias, caso contrário perdem a eficácia. Mas o Poder Executivo
pode reeditá-las, o que tem feito reiteradamente. Até agora, as
tentativas de se limitar o número e o prazo de validade das MPs não
têm obtido êxito.
Na verdade, a existência de uma Constituição, por melhor que
ela seja, não quer por si dizer muita coisa. É uma piada corrente
afirmar que, se Constituição resolvesse alguma coisa, a Bolívia, que
já teve dezenas de Constituições, seria mais desenvolvida que a Suécia.
Enquanto os Estados Unidos, país desenvolvido e democrático, estão em
sua primeira e única Constituição, a França, igualmente desenvolvida e
democrática, está em sua trigésima Constituição.
A Constituição é apenas um marco referencial, um arcabouço
genérico, uma definição de princípios abrangentes. Cabe à lei ordinária
reger as questões do dia-a-dia dentro desse arcabouço, e cabe à
sociedade promover os meios para cumprir os ideais corporificados
no texto constitucional. Uma Constituição não existe no vácuo, mas
em funcionamento. E só funcionará se, além de legítima, for um
texto suficientemente genérico e econômico (as Constituições muito
longas e detalhadas costumam, historicamente, ter vida curta, o que
não é de surpreender) para acomodar o pluralismo que se pretende
numa sociedade democrática e para ter o grau de flexibilidade
necessário à sua sobrevivência diante de futuras alterações da
realidade.
1 - Você acha que é possível haver um Estado democrático sem Constituição?
2 - Dê uma olhada em alguns textos constitucionais, não só do Brasil mas de outros países. Depois disso, você acha que conceberia uma estrutura formal para a Constituição brasileira melhor do que a atualmente adotada?
3 - Imagine que você é uma espécie de “reformador constitucional” e escolha um dispositivo (artigo, seção ou capítulo) da Constituição para mudá-lo, dando-lhe o conteúdo e a redação que achar melhor.
4 - Na sua opinião, o Poder Constituinte deve residir mesmo no povo ou estaria melhor se conferido a um grupo especialmente preparado para a tarefa?
5 - Experimente dar uma ideia do que você entende por uma Constituição legítima.
6 - Você acha necessário que a Constituição brasileira contenha dispositivos mencionando especificamente os problemas da mulher, do negro, do índio e de outras categorias discriminadas? Em caso afirmativo, por quê?
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João Ubaldo Ribeiro - Política: Como a Política interessa a todos e a cada um (a)
João Ubaldo Ribeiro - Política: Como a Política interessa a todos e a cada um (b)
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João Ubaldo Ribeiro (1941-2014) foi romancista, cronista, jornalista, tradutor e professor brasileiro. Membro da Academia Brasileira de Letras ocupou a cadeira n.º 34. Em 2008 recebeu o Prêmio Camões. Foi um grande disseminador da cultura brasileira, sobretudo a baiana. Entre suas obras que fizeram grande sucesso encontram-se "Sargento Getúlio", "Viva o Povo Brasileiro" e "O Sorriso do Lagarto".
João Ubaldo Ribeiro nasceu na ilha de Itaparica, na Bahia, no dia 23 de janeiro de 1941, na casa de seus avós. Era filho dos advogados Manuel Ribeiro e de Maria Filipa Osório Pimentel.
João Ubaldo foi criado até os 11 anos, em Sergipe, onde seu pai trabalhava como professor e político. Fez seus primeiros estudos em Aracaju, no Instituto Ipiranga.
Em 1951 ingressou no Colégio Estadual Atheneu Sergipense. Em 1955 mudou-se para Salvador, e ingressou no Colégio da Bahia. Estudou francês e latim.
© 1998 by João Ubaldo Ribeiro
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Catalogação-na-fonte S
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R369p
Ribeiro, João Ubaldo 3 ed. Política; quem manda, por que manda, como manda / João Ubaldo Ribeiro. — 3.ed.rev. por Lucia Hippolito. — Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
Apêndice
1. Ciência política. I. Título
CDD 320
CDU 32
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