domingo, 28 de abril de 2019

Stendhal - O Vermelho e o Negro: Pensar faz sofrer (XIX)

Livro I 

A verdade, a áspera verdade. 
Danton 


Capítulo XIX

PENSAR FAZ SOFRER


O grotesco dos acontecimentos de cada dia nos oculta a verdadeira infelicidade das paixões.

 BARNAVE







AO RECOLOCAR OS móveis ordinários no quarto que o sr. de La Mole havia ocupado, Julien encontrou uma folha de papel muito espesso, dobrada em quatro. Leu, ao final da primeira página:

Para S. E. o marquês de La Mole, par de França, cavaleiro das ordens do rei etc. etc.

Era uma petição, numa letra grossa de cozinheira.

“SENHOR MARQUÊS, 
“Em toda a minha vida tive princípios religiosos. Em Lyon, expus-me às bombas, por ocasião do cerco de 93, de execrável memória. Comungo, vou todo domingo à missa na igreja paroquial. Nunca faltei ao dever pascal, mesmo em 93, de execrável memória. Minha cozinheira – antes da Revolução eu tinha criadagem – faz abstinência às sextas-feiras. Gozo em Verrières de uma consideração geral e, ouso dizer, merecida. Marcho sob o pálio nas procissões, ao lado do sr. cura e do sr. prefeito. Nessas grandes ocasiões, carrego um grande círio por mim adquirido. Em Paris, no ministério das Finanças, estão os certificados do que digo. Peço ao sr. marquês a agência de loteria de Verrières, que em breve estará vaga de uma maneira ou de outra, estando o titular muito doente, e tendo aliás votado mal nas eleições etc. 
DE CHOLIN.” 

À margem dessa petição havia uma anotação assinada De Moirod, e que começava por esta frase:

“Tive a honra de falar ontem da boa pessoa que faz esse pedido” etc. 

Assim, mesmo esse imbecil do Cholin mostra-me o caminho que devo seguir, pensou Julien. 

Oito dias depois da passagem do rei de *** por Verrières, de todas as inumeráveis mentiras, tolas interpretações, discussões ridículas etc. etc., tendo por objeto, sucessivamente, o rei, o bispo de Agde, o marquês de La Mole, as 10 mil garrafas de vinho, o pobre acidentado Moirod que, na esperança de uma condecoração, só saiu de casa um mês depois de sua queda, o que subsistia era a indecência extrema de terem nomeado para a guarda de honra Julien Sorel, filho de um carpinteiro. É o que diziam, sobre esse ponto, os ricos fabricantes de tecidos pintados que, noite e dia, pregavam a igualdade no café, até ficarem roucos. Aquela mulher arrogante, a sra. de Rênal, fora a autora dessa abominação. O motivo? Os belos olhos e o rosto jovem do padrezinho Sorel explicavam tudo.

Pouco depois do retorno a Vergy, Stanislas-Xavier, o caçula dos meninos, adoeceu com febre, o que ocasionou imediatamente remorsos terríveis na sra. de Rênal. Pela primeira vez ela censurou-se por seu amor de uma forma constante; pareceu compreender, como por milagre, o erro enorme em que se deixara arrastar. Embora de um caráter profundamente religioso, até então não havia pensado na extensão de seu crime aos olhos de Deus. 

Outrora, no convento do Sagrado Coração, amara a Deus com paixão; assim, ela o temia na atual circunstância. Os combates que dilaceravam sua alma eram tanto mais terríveis quanto não havia nenhuma razão para seus temores. Julien percebeu que o menor argumento a irritava, em vez de acalmá-la; ela via nisso a linguagem do inferno. Entretanto, como o próprio Julien gostava muito do pequeno Stanislas, ele achou melhor falar da doença dele, que logo se agravou. Com isso, o remorso contínuo tirou da sra. de Rênal até a faculdade de dormir; ela não saía de um silêncio feroz: se tivesse aberto a boca, teria sido para confessar seu crime a Deus e aos homens. 

– Suplico-lhe, dizia-lhe Julien assim que se viam a sós, não fale a ninguém; que eu seja o único confidente de seus sofrimentos. Se ainda me ama, não fale: suas palavras não podem tirar a febre ao nosso Stanislas. 

Mas essas consolações não produziam nenhum efeito; ele não sabia que a sra. de Rênal pusera na cabeça a ideia de que, para apaziguar a cólera do Deus zeloso, teria que odiar Julien ou ver seu filho morrer. Era por sentir que não podia odiar seu amante que ela estava tão infeliz. 

– Afaste-se de mim, disse ela um dia a Julien; em nome de Deus, abandone esta casa: é sua presença que está matando meu filho. 

Deus castiga-me, acrescentou em voz baixa, ele é justo; adoro sua equidade; meu crime é terrível, e eu vivia sem remorsos! Foi o primeiro sinal do abandono de Deus: devo ser punida duplamente. 

Julien ficou profundamente tocado. Não podia ver nisso nem hipocrisia, nem exagero. Ela acredita matar seu filho ao me amar, e no entanto a infeliz me ama mais que seu filho. É o remorso que a está matando, não há dúvida; eis o que é grandeza nos sentimentos. Mas como pude inspirar tal amor, eu, tão pobre, tão mal-educado, tão ignorante, às vezes tão grosseiro em minhas maneiras? 

Uma noite, o estado do menino agravou-se. Por volta das duas da madrugada, o sr. de Rênal veio vê-lo. O menino, consumido pela febre, estava muito vermelho e não pôde reconhecer o pai. De repente, a sra. de Rênal lançou-se aos pés do marido; Julien viu que ela ia contar tudo e condenar-se para sempre. 

Por sorte, esse movimento singular incomodou o sr. de Rênal. 

– Adeus! Adeus!, disse ele, afastando-se. 

– Não, escuta-me, gritou a mulher, de joelhos diante dele. Fica sabendo toda a verdade. Sou eu que estou matando meu filho. Estou tirando a vida que lhe dei. O céu me castiga, aos olhos de Deus sou culpada de assassinato. É preciso que eu me perca e me humilhe a mim mes​ma; talvez esse sacrifício apazigue o Senhor. 

Se o sr. de Rênal fosse um homem de imaginação, teria compreendido tudo. 

– Ideias romanescas, exclamou, desvencilhando-se da mulher que procurava abraçar seus joelhos. Isso não passa de ideias romanescas! Julien, mande chamar o médico quando amanhecer. 

E retirou-se para deitar-se. A sra. de Rênal ficou de joelhos, meio desfalecida, repelindo com um movimento convulsivo Julien, que queria socorrê-la. 

Julien ficou atônito. Então é isso o adultério!, pensou... Seria possível que aqueles padres tão velhacos... tivessem razão? Eles que cometem tantos pecados teriam o privilégio de conhecer a verdadeira teoria do pecado? Que coisa mais estranha! 

Vinte minutos depois de o sr. de Rênal ter-se retirado, Julien ainda via a mulher que ele amava com a cabeça apoiada à pequena cama do filho, imóvel e quase sem sentidos. Eis aí uma mulher de gênio superior, reduzida ao máximo de infelicidade porque me conheceu, ele pensou. 

As horas avançam rapidamente. Que posso fazer por ela? É preciso decidir. Não se trata mais de mim agora. Que me importam os homens e seus pobres disfarces? Que posso fazer por ela?... abandoná-la? Mas seria deixá-la exposta à dor mais terrível. O autômato do marido mais a prejudica do que a serve. Ele dirá uma palavra dura, por ser grosseiro; ela é capaz de enlouquecer, de jogar-se pela janela. 

Se a abandono, cesso de vigiá-la, ela confessará tudo. E sabe lá se ele não fará um escândalo, apesar da herança que ela deve receber. Ela poderá dizer tudo, ó meu Deus! Àquele filho da... do padre Maslon, que, a pretexto da doença de uma criança de seis anos, não sai mais desta casa, e não sem propósito. Em sua dor e em seu temor a Deus, ela esquecerá tudo o que sabe do homem, vendo nele apenas o padre. 

– Vai embora!, disse-lhe repentinamente a sra. de Rênal, abrindo os olhos. – Eu daria mil vezes minha vida para saber o que te pode ser mais útil, respondeu Julien: nunca te amei tanto, meu anjo; ou melhor, somente a partir deste instante, começo a te adorar como mereces sê-lo. Que seria de mim longe de ti, e com a consciência de que és infeliz por minha causa? Mas meus sofrimentos não importam. Partirei, sim, meu amor. Mas, se te abandono, se deixo de velar por ti, de estar constantemente entre ti e teu marido, dirás tudo a ele, te condenarás. Pensa que é com ignomínia que ele te expulsará de casa; Verrières inteira, Besan​çon inteira falarão desse escândalo. Todas as culpas cairão sobre ti; jamais te reabilitarás dessa vergonha... 

– É o que peço, ela exclamou, pondo-se de pé. Sofrerei, tanto melhor. 

– Mas com esse escândalo abominável farás também a infelicidade dele! 

– Estarei me humilhando, lançando-me na lama; e assim talvez possa salvar meu filho. Essa humilhação, aos olhos de todos, não seria uma penitência pública? Tanto quanto minha fraqueza é capaz de julgar, não é esse o maior sacrifício que posso fazer a Deus?... Desse modo, talvez ele queira aceitar minha humilhação e deixar-me meu filho! Mostra-me um outro sacrifício mais penoso e o farei. 

– Deixa que eu me castigue. Também sou culpado. Queres que me retire para a Trapa? A austeridade dessa vida pode apaziguar teu Deus... Ah, céus! Pudera tomar para mim a doença de Stanislas!... 

– Oh! Tu o amas, tu, disse a sra. de Rênal, levantando-se e lançando-se nos braços dele.

Mas no mesmo instante o repeliu com horror. 

– Acredito em ti! Acredito em ti! Ela continuou, depois de ajoelhar-se de novo; ó meu único amigo! Por que não és o pai de Stanislas? Então não seria um pecado horrível amar-te mais que a teu filho. 

– Aceitas que eu permaneça e que daqui por diante te ame apenas como a um irmão? É a única expiação razoável, ela pode apaziguar a cólera do Altíssimo. 

– E eu, ela exclamou, levantando-se e segurando a cabeça de Julien entre as duas mãos e mantendo-a diante dos olhos à distância, e eu, te amarei como a um irmão? Está em meu poder amar-te como a um irmão? 

Julien desfazia-se em lágrimas. 

– Eu te obedecerei, disse ele caindo a seus pés, te obedecerei, não importa o que me ordenes; é tudo o que me resta a fazer. A cegueira tomou conta de meu espírito, não vejo que partido tomar. Se te abandono, dizes tudo a teu marido, te condenas e a ele também. Depois desse ri​dí​culo, jamais ele será nomeado deputado. Se permaneço, julgas-me a causa da morte de teu filho e morrerás de dor. Queres experimentar o efeito de minha partida? Se quiseres, aceito punir-me por nosso erro deixando-te por oito dias. Irei passá-los no retiro que indicares. Na abadia de Bray-le-Haut, por exemplo: mas jura-me, durante minha ausência, nada confessar a teu marido. Considera que não poderei mais voltar, se falares. 

Ela prometeu, ele partiu, mas foi chamado de volta ao cabo de dois dias. 

– Sem ti é impossível cumprir meu juramento. Falarei a meu marido, se não estiveres aqui constantemente para me ordenares com teus olhos a calar-me. Cada hora desta vida abominável parece-me durar um dia. 

Por fim, o céu apiedou-se dessa mãe infeliz. Aos poucos Stanislas deixou de correr perigo. Mas o espelho partira-se, sua razão havia conhecido a extensão do pecado; ela não pôde mais retomar o equilíbrio. Os remorsos permaneceram e foram o que deviam ser num coração tão sincero. Sua vida foi o céu e o inferno: o inferno, quando não via Julien, o céu, quando estava a seus pés. Não tenho mais nenhuma ilusão, ela dizia a ele, mesmo nos momentos em que ousava entregar-se a todo o seu amor: estou condenada, irremediavelmente condenada. És jovem, cedeste às minhas seduções, o céu pode te perdoar; mas, quanto a mim, estou condenada. Sei disso por um sinal certo. Tenho medo: quem não teria medo diante da visão do inferno? Mas, no fundo, não me arrependo. Cometeria de novo meu pecado se ele precisasse ser cometido. Que apenas o céu não me puna já neste mundo e em meus filhos, e terei mais do que não mereço. Mas tu, pelo menos, meu Julien, ela exclamava noutros momentos, és feliz? Achas que te amo o bastante? 

A desconfiança e o orgulho sofredor de Julien, que carecia sobretudo de um amor de sacrifício, não resistiram diante de um sacrifício tão grande, tão indubitável e feito a todo instante. Ele adorava a sra. de Rênal. Por mais que ela seja nobre, e eu o filho de um operário, ela me ama... Não sou junto dela um camareiro encarregado das funções de amante. Afastado esse temor, Julien cedeu a todas as loucuras do amor, a suas incertezas mortais. 

– Pelo menos, dizia ela ao vê-lo duvidar sobre seu amor, que eu te faça muito feliz durante os poucos dias que vamos passar juntos! Apressemo-nos; talvez amanhã não esteja mais contigo. Se o céu me punir em meus filhos, em vão buscarei viver apenas para amar-te, não vendo que é meu crime que os mata. Não poderei sobreviver a esse golpe. Mesmo que o quisesse, não poderia; eu enlouqueceria. Ah! Se eu pudesse tomar para mim teu pecado, assim como me ofereceste tão generosamente tomar a febre ardente de Stanislas! 

Essa grande crise moral mudou a natureza do sentimento que unia Julien à sua amante. Seu amor não foi mais apenas admiração pela beleza, orgulho de possuí-la. 

Desde então, a felicidade deles era de uma natureza superior, a chama que os devorava foi mais intensa. Tinham transportes cheios de loucura. Essa felicidade teria parecido maior aos olhos do mundo. Mas não reencontraram mais a serenidade deliciosa, a ventura sem nuvens, a felicidade fácil dos primeiros momentos de amor, quando o único receio da sra. de Rênal era não ser amada o bastante por Julien. A felicidade deles tinha às vezes a fisionomia do crime. 

Nos momentos mais felizes e aparentemente mais tranquilos, a sra. de Rênal exclamava de repente, apertando a mão de Julien num movimento convulsivo: 

– Ah! Meu Deus! Vejo o inferno. Que suplícios horríveis! Bem que os mereci!, e abraçava-o, colando-se a ele como a hera ao muro. 

Julien tentava em vão acalmar essa alma agitada. Ela tomava-lhe a mão, cobrindo-a de beijos. Depois, recaía num devaneio sombrio: O inferno, dizia, seria um favor para mim; teria ainda alguns dias na terra a passar com ele, mas o inferno já neste mundo, a morte de meus filhos... Contudo, talvez a esse preço meu crime fosse perdoado... Ah! Meu Deus, não me concedei o perdão a esse preço! Essas pobres crianças não vos ofenderam; eu, só eu sou culpada: amo um homem que não é meu marido. 

Julien via em seguida a sra. de Rênal alcançar momentos aparentemente tranquilos. Procurava conter-se, não queria envenenar a vida de quem ela amava. 

Em meio a essas alternâncias de amor, de remorsos e de prazer, os dias passavam para eles com a rapidez de um raio. Julien perdeu o hábito de refletir. 

A srta. Elisa tinha um pequeno processo em Verrières e foi até lá acompanhá-lo. Encontrou o sr. Valenod muito irritado com Julien. Ela odiava o preceptor e falava-lhe dele com frequência. 

– O senhor não me perdoaria se eu dissesse a verdade!... disse ela ao sr. Valenod. Os patrões estão todos de acordo entre si quanto às coisas importantes... Nunca perdoam certas confissões aos pobres criados... 

Com essas frases de costume, que a impaciente curiosidade do sr. Valenod descobriu um meio de abreviar, ele ficou sabendo das coisas mais mortificantes para seu amor-próprio. 

Aquela mulher, a mais distinta da região, que durante seis anos ele cercara de tantas atenções, e infelizmente com o conhecimento de todos, aquela mulher tão orgulhosa, cujos desdéns tantas vezes haviam-no feito corar, acabava de fazer-se amante de um operariozinho disfarçado de preceptor. E, a fim de que nada faltasse ao despeito do sr. diretor do asilo, a sra. de Rênal adorava esse amante. 

– E o sr. Julien, acrescentava a camareira com um suspiro, nem precisou de esforço para fazer essa conquista, não saiu de sua frieza de costume em relação à sra. de Rênal. 

Elisa só tivera certeza desse namoro no campo, mas acreditava que ele datava de muito antes. 

– É certamente por isso, acrescentou com despeito, que a um tempo atrás ele recusou desposar-me. E eu, imbecil, que ia consultar a sra. de Rênal, que lhe pedia para falar com o preceptor. 

Nessa mesma noite, o sr. de Rênal recebeu da cidade, junto com seu jornal, uma longa carta anônima que lhe informava em detalhes o que se passava em sua casa. Julien viu-o empalidecer ao ler essa carta escrita em papel azulado e lançar para ele olhares carregados. Durante toda a noite o prefeito permaneceu carrancudo, e em vão Julien buscou ser agradável pedindo-lhe explicações sobre a genealogia das melhores famílias da Borgonha.




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ADVERTÊNCIA DO EDITOR

Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.


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Henri-Marie Beyle, mais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.


Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.

Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.

"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.

Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.

Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.

Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.

Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.

O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.



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Leia também:

Stendhal - O Vermelho e o Negro: O Primeiro Adjunto (XVII)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Um Rei em Verrières (XVIII)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Pensar faz sofrer (XIX)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: As Cartas Anônimas (XX)


Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (1a)

 Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Vol 1


1
Estudos de Costumes 
- Cenas da Vida Privada



Memórias de duas jovens esposas





PRIMEIRA PARTE




I – LUÍSA DE CHAULIEU A RENATA DE MAUCOMBE



continuando...




10 de outubro


Eu tinha chegado às três horas da tarde. Cerca das cinco e meia, Rosa veio dizer-me que minha mãe já voltara e eu desci, para apresentar-lhe meus respeitos. Minha mãe ocupa no andar térreo um apartamento cuja disposição é igual ao meu, no mesmo pavilhão. Eu estou no andar acima do dela, e temos a mesma escada dissimulada. Meu pai reside no pavilhão oposto; mas como do lado do pátio há mais o espaço ocupado, no nosso lado, pela grande escadaria, seu apartamento é muito mais vasto do que os nossos. Não obstante os deveres da posição que a volta dos Bourbon lhes restituiu, meu pai e minha mãe continuam a habitar o andar térreo, podendo nele receber, tão grandes são as casas de nossos maiores. Encontrei minha mãe no seu salão, onde nada foi mudado. Ela estava em grande toilette. De degrau em degrau eu a mim mesma perguntava como seria para mim essa mulher, que foi tão pouco mãe que, em oito anos, dela não recebi mais do que as duas cartas que conheces. Achando que era indigno de mim mesma fingir uma ternura impossível, compus-me um aspecto de religiosa idiota e entrei bastante embaraçada intimamente. Esse embaraço logo se dissipou. Minha mãe foi de uma graça perfeita; não me manifestou falsas ternuras, não foi fria, não me tratou como estranha, não me abrigou em seu seio como uma filha amada; recebeu-me como se tivesse estado comigo na véspera e foi a mais meiga e mais sincera amiga; falou-me como a uma mulher-feita e logo me beijou na testa. 

— Minha querida filha — disse ela —, se devia morrer no convento é melhor que viva conosco. Você frustrou os projetos de seu pai e os meus, mas não estamos mais no tempo em que os pais eram cegamente obedecidos. A intenção do sr. de Chaulieu, que coincide com a minha, é de não pouparmos coisa alguma para tornar-lhe a vida agradável e deixar-lhe ver o mundo. Na sua idade eu teria pensado como você; por isso não lhe quero mal; você não pode compreender o que nós lhe pedíamos. Não me vai achar de uma severidade ridícula. Se suspeitou de meu coração, breve terá de reconhecer que se enganou. Embora eu queira deixá-la completamente livre, creio que nos primeiros tempos andará acertada se ouvir os conselhos de uma mãe que procederá consigo como uma irmã. 

A duquesa falava com voz suave e endireitando minha capa de colegial. Seduziu-me. Aos trinta e oito anos é bela como um anjo; seus olhos são de um negro azulado, os cílios são como fios de seda, a testa é sem rugas, a tez tão alva e rósea que até parece que se pinta, os ombros e o colo admiráveis, um busto arqueado e fino como o teu, as mãos de rara beleza e uma alvura de leite; unhas onde mora a luz de tão polidas, o dedo mínimo levemente afastado, e o polegar de uma perfeição de marfim. Tem finalmente o pé correspondente à mão, o pé espanhol da srta. de Vandenesse. Se aos quarenta ela é tão bela, será bela ainda aos sessenta. 

Respondi, minha corça, como filha obediente. Fui para ela o que ela foi para mim, melhor ainda; sua beleza venceu-me, perdoei-lhe o abandono em que me deixara, compreendi que uma mulher como ela fora arrastada pelo seu papel de rainha. Disse-lhe ingenuamente como se estivesse falando contigo. É possível que ela não esperasse ouvir uma linguagem de amor na boca da filha. As sinceras homenagens de minha admiração sensibilizaram-na profundamente: suas maneiras se modificaram, tornando-se ainda mais amáveis; ela tratou-me por tu: 

— És uma boa filha e espero que nos tornemos amigas. 

Essa expressão pareceu-me de uma adorável ingenuidade. Não lhe quis deixar ver o sentido em que a interpretava, pois logo compreendi que a devo deixar crer que ela é muito mais fina e espirituosa do que sua filha. Fiz-me portanto de boba, e ela ficou encantada comigo. Por várias vezes beijei-lhe as mãos, dizendo-lhe que me sentia feliz ao vê-la tratar-me assim, que dessa forma ela me punha à vontade, e cheguei até a confessar-lhe o meu terror. Ela sorriu, enlaçou-me pelo pescoço para atrair-me e beijar-me na fronte, com um gesto cheio de ternura. 

— Querida filha — disse —, temos hoje convidados para jantar, e há de achar, como eu, preferível esperar que a costureira lhe tenha preparado suas toilettes para fazer sua entrada na sociedade; assim, pois, quando tiver visto seu pai e seu irmão, subirá para os seus aposentos. 

Aquiesci de muito bom grado. A encantadora toilette de minha mãe era a primeira revelação daquele mundo entrevisto em nossos sonhos, mas não senti o menor impulso de ciúme. Meu pai chegou. 

— Senhor, eis a sua filha — disse a duquesa. 

Meu pai assumiu, subitamente, para mim, as mais ternas maneiras; representou tão bem seu papel que acreditei que também tivesse o coração correspondente. 

— Ei-la então aqui, a filha rebelde — disse-me, tomando-me as duas mãos nas suas e beijando-as com mais galantaria do que paternidade. E atraiu-me a seus braços, enlaçando-me a cintura e apertando-me para beijar-me nas faces e na fronte. — Compensará o pesar que nos causa a sua mudança de vocação pelos prazeres que nos darão seus triunfos na sociedade. Não acha, senhora, que ela será muito bonita e que um dia poderá ter orgulho dela? 

— Aqui está seu irmão, Rhétoré. 

— Afonso — disse ele a um belo rapaz que acabara de entrar —, aqui está sua irmã religiosa que quer atirar as vestes talares às urtigas. 

Meu irmão, sem grande pressa, tomou-me a mão e apertou-a. 

— Beije-a — disse-lhe o duque. E ele beijou-me nas duas faces. 

— Encantado por vê-la, minha irmã — disse ele —, e ponho-me do seu lado, contra meu pai. 

Agradeci-lhe, mas parece-me que ele bem poderia ter ido a Blois, quando ia a Orléans ver nosso irmão, o marquês, em sua guarnição. Retirei-me com receio de que chegasse algum estranho. Fiz algumas arrumações no meu aposento, coloquei em cima do veludo escarlate da bela mesa tudo o que precisava para escrever-te, refletindo na minha nova situação. Eis aí, minha bela corça branca, sem faltar uma vírgula, como se passaram as coisas, por ocasião da volta de uma rapariga de dezoito primaveras, após uma ausência de nove anos, a uma das mais ilustres famílias do reino. A viagem cansara-me, e também as emoções desse regresso ao seio da família: deitei-me, pois, como no convento, às oito horas, depois de ter ceado. Haviam conservado até um pequeno serviço de porcelana de Saxe que aquela querida princesa guardava para comer sozinha, nos seus aposentos, quando isso lhe vinha à fantasia.





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Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.

Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844.[1] Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).

Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava.[1] De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.


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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Balzac, Honoré de, 1799-1850. 
          A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac;                            orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São                  Paulo: Globo, 2012. 

          (A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1                    0.000 kb; ePUB 

1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série. 

12-13086                                                                               cdd-843 

Índices para catálogo sistemático: 
1. Romances: Literatura francesa 843

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Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (2)



sábado, 27 de abril de 2019

Edgar Allan Poe - Contos: A Sombra

Edgar Allan Poe - Contos




A Sombra 
Título original: Shadow — A Parable
Publicado em 1835






Na verdade, embora caminhe através do vale da Sombra... 

— Salmos de David





Vós, que me ledes, estais ainda entre os vivos; mas eu, que escrevo, terei desde há muito partido para o mundo das sombras. Na verdade, estranhas coisas virão, inúmeras coisas secretas serão reveladas, e muitos séculos decorrerão antes que estas notas sejam lidas pelos homens. E quando eles as tiverem lido, uns não acreditarão, outros porão as suas dúvidas, e muito poucos de entre eles encontrarão matéria para fecundas meditações nos caracteres que eu gravo com um estilete de ferro nestas tabuinhas. 

O ano havia sido um ano de terror, cheio de sensações mais intensas que o terror, sensações para as quais não há nome na Terra. Muitos prodígios, muitos sinais haviam ocorrido, e de todos os lados, em terra e no mar, se tinham amplamente estendido as asas negras da Peste. Aqueles, porém, que eram sábios, conhecedores dos desígnios das estrelas, não ignoravam que os céus prenunciavam desgraça; e, para mim (o grego Oino), como para outros, era evidente que atingíamos o fim desse septingentésimo nonagésimo quarto ano, em que, à entrada do Carneiro, o planeta Júpiter fazia a sua conjunção com o anel vermelho do terrível Saturno. O espírito particular dos céus, se não me engano muito, manifestava o seu poder não só sobre o globo físico da Terra, mas também sobre as almas, os pensamentos e as meditações da humanidade. 

Uma noite, estávamos sete nos fundos de um nobre palácio, numa sombria cidade chamada Ptolemais, sentados em volta de algumas garrafas de vinho cor de púrpura de Quios. O compartimento não tinha outra entrada senão uma alta porta de bronze; e a porta havia sido moldada pelo artífice Corinos e, produto de hábil mão de obra, fechava por dentro. De igual modo, protegiam esse compartimento melancólico negras tapeçarias, que nos poupavam a visão da Lua, das estrelas lúgubres e das ruas despovoadas. Mas o sentimento e a lembrança do Flagelo não se tinham expulsado facilmente. Havia à nossa volta, junto de nós, coisas que não posso definir distintamente, coisas materiais e coisas espirituais — um peso na atmosfera, uma sensação de abafamento, uma angústia e, acima de tudo, esse terrível modo de existência que ataca as pessoas nervosas quando os sentidos estão cruelmente vivos e despertos e as faculdades do espírito entorpecidas e apáticas. Esmagava-nos um peso mortal. Estendia-se-nos pelos membros, pelo mobiliário da sala, pelos copos por onde bebíamos; e todas as coisas pareciam oprimidas e prostradas naquele abatimento — todas, exceto as chamas das sete lâmpadas de ferro que iluminavam a nossa orgia. Alongando-se em delgados fios de luz, elas assim se quedavam, ardendo pálidas e imóveis; e na mesa redonda de ébano em redor da qual nos sentávamos, e cujo brilho transformava em espelho, cada um dos convivas contemplava a palidez do próprio rosto e o brilho inquieto dos olhos tristes dos seus camaradas. 

Não obstante, compelíamo-nos a rir, e estávamos alegres à nossa maneira — uma maneira histérica; e cantávamos as canções de Anacreonte, que não passam de loucura; e bebíamos à larga, muito embora a púrpura do vinho nos lembrasse a púrpura do sangue. É que no compartimento havia uma oitava personagem — o jovem Zoilo. Morto, estendido a todo o comprimento e amortalhado, era o gênio e o demônio do cenário. Ai! esse não tomava parte no nosso divertimento: apenas a sua fisionomia, convulsionada pelo mal, e os seus olhos, em que a Morte só semi-extinguira o fogo da peste, pareciam tomar pela nossa alegria tanto interesse quanto os mortos são capazes de tomar pela alegria daqueles que têm de morrer. Mas embora eu, Oino, sentisse os olhos do defunto fixos em mim, a verdade é que me esforçava por não me aperceber do amargor da sua expressão, e, olhando obstinadamente para as profundezas do espelho de ébano, eu cantava em voz alta e sonora as canções do poeta de Teos. Gradualmente, porém, o meu canto cessou, e os ecos, rolando ao longe por entre as negras tapeçarias do aposento, foram enfraquecendo, indistintos, e desvaneceram-se. 

Mas eis que do fundo dessas tapeçarias negras onde morria o eco da canção se ergueu uma sombra, escura, indefinida — uma sombra semelhante àquela que a Lua, quando está baixa no céu, pode desenhar com as formas de um corpo humano; mas não era a sombra nem de um homem, nem de um deus, nem de nenhum ser conhecido. E, tremendo por instantes no meio dos reposteiros, ela ficou, enfim, visível e firme, sobre a porta de bronze. Mas a sombra era vaga, sem forma, indefinida; não era a sombra nem de um homem, nem de um deus — nem de um deus da Grécia, nem de um deus da Caldeia, nem de nenhum deus egípcio. E a sombra jazia sobre a grande porta de bronze e sob a cornija em arco, sem se mexer, sem pronunciar uma palavra, fixando-se cada vez mais e acabando por ficar imóvel. E a porta em que a sombra assentava, se bem me recordo, tocava os pés do jovem Zoilo. 

Nós, porém, os sete companheiros, tendo visto a sombra sair dos reposteiros, não ousávamos contemplá-la de frente; baixávamos os olhos e olhávamos sempre para as profundezas do espelho de ébano. Por fim, eu, Oino, aventurei-me a pronunciar algumas palavras em voz baixa, e perguntei à sombra a sua morada e o seu nome. E a sombra respondeu: 

— Eu sou a Sombra, e a minha morada é ao lado das Catacumbas de Ptolemais, e muito perto dessas planuras: infernais que encerram o canal impuro de Caronte. 

E então, todos nós, os sete, erguemo-nos horrorizados dos nossos assentos, e ali ficamos — trêmulos, arrepiados, cheios de assombro. O timbre de voz da Sombra não era o timbre da voz de um só indivíduo, mas de uma multidão de seres; e essa voz, variando as suas inflexões de sílaba para sílaba, enchia-nos confusamente os ouvidos, a imitar os timbres conhecidos e familiares de milhares de amigos desaparecidos!




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Edgar Allan Poe (nascido Edgar Poe; Boston, Massachusetts, Estados Unidos, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, Maryland, Estados Unidos, 7 de Outubro de 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense. Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe foi um dos primeiros escritores americanos de contos e é geralmente considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao emergente gênero de ficção científica. Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.

Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).

Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.

Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.


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Edgar Allan Poe

CONTOS

Originalmente publicados entre 1831 e 1849 






Edgar Allan Poe - Contos: Um Homem na Lua (01)

Edgar Allan Poe - Contos: Um Homem na Lua (02)

Edgar Allan Poe - Contos: Um Homem na Lua (03)

Edgar Allan Poe - Contos: Um Homem na Lua (04)

Edgar Allan Poe - Contos: Um Homem na Lua (05)

Edgar Allan Poe - Contos: Um Homem na Lua (06)

Edgar Allan Poe - Contos: Um Homem na Lua (fim)