sábado, 7 de setembro de 2019

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (5)

 Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Vol 1


1
Estudos de Costumes 
- Cenas da Vida Privada



Memórias de duas jovens esposas





PRIMEIRA PARTE




V – RENATA DE MAUCOMBE A LUÍSA DE CHAULIEU




Outubro


Como tua carta me comoveu! Sobretudo pela comparação de nossos destinos. Em que sociedade brilhante vais viver! Em que tranquilo retiro terminarei eu minha obscura carreira! Quinze dias depois de minha chegada ao Castelo de Maucombe, do qual já te falei demasiado para voltar a falar-te dele, e onde tornei a encontrar meu quarto, pouco mais ou menos, no mesmo estado em que o deixara, mas de onde pude compreender a sublime paisagem do vale de Gémenos, que, quando criança, eu olhava sem nele nada ver, meu pai e minha mãe, acompanhados por meus dois irmãos, levaram-me a jantar em casa de um vizinho nosso, um velho sr. de l’Estorade, gentil-homem que enriquecera muito, como se enriquece na província, graças à avareza. Esse ancião não pudera livrar o filho único da rapacidade de Bonaparte; depois de o ter salvo da conscrição, fora forçado a mandá-lo para o exército, em 1813, na qualidade de guarda de honra: após Leipzig, o velho barão de l’Estorade não mais teve notícias dele. O sr. de Montriveau, que o sr. de l’Estorade foi visitar em 1814, afirmou ter visto o rapaz ser aprisionado pelos russos. A sra. de l’Estorade morreu de desgosto, quando se faziam pesquisas inúteis na Rússia. O barão, velho muito cristão, praticava essa linda virtude teologal, que nós, em Blois, cultivávamos: a esperança! Essa o fazia ver seu filho em sonhos, e ele acumulava suas rendas para esse filho; ele se encarregava das partes que tocavam a esse filho nas heranças que lhe vinham da família da falecida sra. de l’Estorade. Ninguém tinha coragem de zombar daquele velho. Acabei por adivinhar que a volta inesperada desse filho era a causa da minha volta. Quem diria que, durante as vagabundagens de nossos pensamentos, meu “futuro” caminhava lentamente, a pé, através da Rússia, da Polônia e da Alemanha? Sua má sorte não cessou a não ser em Berlim, onde o ministro francês lhe facilitou o regresso à França. O sr. de l’Estorade, o pai, pequeno fidalgo da Provença com cerca de dez mil libras de renda, não tem um nome bastante europeu para que alguém se interessasse pelo cavaleiro de l’Estorade, cujo nome tresandava a aventureiro. 

Doze mil francos, produto anual dos bens da sra. de l’Estorade, somados às economias paternas, constituem para o pobre guarda de honra uma fortuna considerável na Provença, algo assim como duzentas e cinquenta mil libras, além dos seus bens imóveis. O bom sr. de l’Estorade comprara, na véspera do dia em que devia rever o cavaleiro, uma bela propriedade mal administrada, na qual se propôs a plantar dez mil amoreiras que semeara no seu alfobre, na previsão daquela aquisição. O barão, ao tornar a encontrar o filho, não teve mais do que um pensamento, casá-lo, e casá-lo com uma moça nobre. Meu pai e minha mãe partilharam, a meu respeito, o projeto do vizinho, assim que o velho lhes comunicou sua intenção de aceitar Renata de Maucombe, sem dote, e de lhe assegurar no contrato a importância total que deve tocar à dita Renata nas suas sucessões. Desde sua maioridade, meu irmão mais moço, João de Maucombe, declarou ter recebido dos pais um adiantamento equivalente ao terço da herança. Eis como as famílias nobres da Provença sofismam o infame Código Civil do sr. de Bonaparte, o qual fará com que metam no convento tantas moças nobres quantas ele fez casarem. A nobreza francesa, segundo o pouco que ouvi a respeito do assunto, está muito dividida sobre tão grave matéria. 

Aquele jantar, querida, era uma entrevista entre a tua corça e o exilado. Procedamos com ordem. A criadagem do conde de Maucombe envergou suas velhas librés agaloadas e seus chapéus bordados; o cocheiro calçou suas grandes botas de acordeão, empilhamo-nos cinco na velha carruagem e chegamos majestosamente, cerca das duas horas, para almoçarmos às três, na casa de campo, onde mora o barão de l’Estorade. O sogro não tem castelo, mas uma simples casa de campo, situada no sopé de uma de nossas colinas, onde desemboca o nosso belo vale, cujo orgulho é indiscutivelmente a velha fortaleza de Maucombe. Essa casa de campo é um bastião: quatro muralhas de pedra revestidas de um cimento amarelado, cobertas de telhas caneladas, de um belo vermelho. Os telhados vergam sob o peso dessa cobertura. A abertura das janelas, dispostas sem nenhuma simetria, tem postigos enormes, pintados de amarelo. O jardim que cerca essa habitação é um jardim provençal, ladeado de pequenos muros, feitos com grandes pedras redondas dispostas em camadas e onde o gênio do pedreiro brilha no modo pelo qual as coloca, alternadamente inclinadas ou de pé: o revestimento de barro que os cobre caiu em alguns lugares. O aspecto senhorial desse bastião lhe é dado por uma grade, à entrada, no caminho. Choraram muito tempo para ter essa grade; é tão magra que me lembrou a irmã Angélica. A casa tem uma escadaria exterior de pedra, a porta ostenta um telheiro que um camponês do Loire recusaria para a sua elegante casa de pedras brancas, de telhado azul, onde o sol ri. O jardim e os arredores são horrivelmente poeirentos, as árvores estão queimadas. Vê-se que de há muito a vida do barão consistia em levantar-se, deitar-se, tornar-se no dia seguinte sem outra preocupação mais do que juntar vintém a vintém. Ele come o que comem os seus dois criados, que são um rapaz provençal e a velha camareira da sua esposa. As peças têm pouco mobiliário. Entretanto, o solar de Estorade metera-se em despesas. Esvaziara seus armários, convocara todo o bando dos seus servos para aquele jantar, que nos foi servido numa velha baixela de prata negra e amolgada. O exilado, querida mimosa, é como a grade, bem magro! É pálido, sofreu, é taciturno. Aos trinta e sete anos, parece ter cinquenta. O ébano dos seus ex-bonitos cabelos de rapaz está mesclado de branco, como a asa de uma cotovia. Seus belos olhos azuis são encovados: é um pouco surdo, o que o faz parecer-se com o cavaleiro da Triste Figura; não obstante, consenti graciosamente em me tornar sra. de l’Estorade, em me deixar dotar com duzentos e cinquenta mil libras, mas com a condição expressa de ser senhora de reformar o bastião e de fazer um parque. Exigi formalmente de meu pai que me concedesse um filete de água, que poderá vir de Maucombe até aqui. Daqui a um mês, serei sra. de l’Estorade, querida, porque agradei. Depois dos gelos da Sibéria, um homem se acha muito disposto a reconhecer méritos nestes olhos negros que, segundo dizias, faziam amadurecer os frutos para os quais eu olhava. Luís de l’Estorade parece sentir-se excessivamente feliz de desposar a bela Renata de Maucombe, tal é o glorioso apelido de tua amiga. Enquanto te preparas a colher as alegrias da mais ampla existência, a de uma srta. de Chaulieu, em Paris, onde reinarás, tua pobre corça, Renata, essa filha do deserto, caiu do empíreo onde nos alcandorávamos nas realidades vulgares de um destino simples como o de uma margarida. Sim, querida, a mim mesma jurei consolar esse rapaz sem mocidade, que saiu do regaço materno para a guerra, e das alegrias de seu bastião para os gelos e os trabalhos da Sibéria. A uniformidade dos meus dias futuros será variada pelos humildes prazeres do campo. Estenderei o oásis do vale de Gémenos à roda da nossa casa, que ficará majestosamente sombreada por belas árvores. Terei gramados sempre verdes na Provença, farei com que o meu parque suba até as colinas; no ponto mais elevado, colocarei um bonito quiosque, de onde talvez meus olhos possam ver o brilhante Mediterrâneo. A laranjeira, o limoeiro, os mais ricos produtos da botânica embelezarão meu refúgio, e nele serei mãe de família. Uma poesia natural, indestrutível, nos cercará. Conservando-me fiel aos meus deveres, não será de temer desgraça alguma. Meus sentimentos cristãos são partilhados por meu sogro e pelo cavaleiro de l’Estorade. Ah! Mimosa, vejo a vida como uma dessas grandes estradas da França, lisa e suave, sombreada por árvores eternas. Não haverá dois Bonapartes neste século: poderei conservar meus filhos, se os tiver, educá-los, fazer deles homens, e por eles gozarei a vida. Se não falhares ao teu destino, tu que serás a esposa de um grande da terra, os filhos de tua Renata terão uma ativa proteção. Adeus, pois, pelo menos para mim, aos romances e às situações estranhas de que nos imaginávamos as heroínas. Já sei de antemão a história de minha vida: ela será preenchida pelos grandes acontecimentos da dentição dos senhores de l’Estorade, por sua alimentação, pelos estragos que eles farão nos meus bosquetes e na minha pessoa; bordar-lhes bonés, ser amada e admirada por um pobre homem doentio, na entrada do vale de Gémenos, eis os meus prazeres. Talvez, um dia, a camponesa vá passar os invernos em Marselha; mas mesmo então ela aparecerá somente sobre o estreito palco da província, cujos bastidores não são perigosos. Nada terei a temer, nem mesmo uma dessas admirações que nos tornam vaidosas. Nós nos interessaremos muito pelos bichos-da-seda para os quais teremos folhas de amoreira para vender. Conheceremos as estranhas vicissitudes da vida provençal e as tempestades de um lar sem brigas possíveis: o sr. de l’Estorade anuncia sua intenção formal de se deixar guiar por sua esposa. Ora, como nada farei para mantêlo nessas sábias intenções, é provável que ele persista nelas. Tu, querida Luísa, serás a parte romântica de minha existência. Por isso conta-me minuciosamente tuas aventuras, descreve-me os bailes, as festas, dize-me exatamente como te vestes, quais as flores que coroam teus lindos cabelos louros, e as palavras dos homens e suas maneiras. Serás duas a ouvir, a dançar, a sentir pressões na ponta dos teus dedos. Eu bem quisera divertir-me em Paris, enquanto fosses mãe de família na Crampade, que tal é o nome de nosso bastião. Pobre homem que julga desposar uma única mulher! Notará ele que se trata de duas? Começo a dizer loucuras. Como não mais as posso fazer senão por meio de um procurador, detenho-me. Portanto um beijo em cada uma das faces, meus lábios são ainda os da mocinha (ele não se atreveu mais do que a pegar-me na mão). Oh! Nós nos tratamos com um respeito e uma decência bastante inquietadora. Pois bem, recomeço... Adeus, querida.



p. s. — Estou abrindo tua terceira carta. Querida, posso dispor de uns mil francos, gasta-os para mim em coisas bonitas que não se possam achar nestas redondezas, nem mesmo em Marselha. Ao percorrer as lojas para ti mesma, pensa na tua reclusa da Crampade. Lembra-te que, quer de um lado, quer do outro, nossos pais não têm em Paris uma pessoa de gosto para tais aquisições. Responderei mais tarde à tua carta.






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Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.

Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844.[1] Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).

Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava.[1] De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.


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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Balzac, Honoré de, 1799-1850. 
          A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac;                            orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São                  Paulo: Globo, 2012. 

          (A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1                    0.000 kb; ePUB 

1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série. 

12-13086                                                                               cdd-843 

Índices para catálogo sistemático: 
1. Romances: Literatura francesa 843

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Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (6)

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