sábado, 22 de outubro de 2022

Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (7.2) - Eram seis advogados

Cem Anos de Solidão


Gabriel Garcia Márquez


(7.1)



para jomí garcía ascot 

e maría luisa elío



continuando...


Eram seis advogados de paletó e chapéu que suportavam com duro estoicismo o bravo sol de novembro. Úrsula hospedou-os em casa. Passavam a maior parte do dia trancados no quarto, em conciliábulos herméticos, e ao anoitecer pediam uma escolta e um conjunto de acordeões e tomavam conta da taberna de Catarino. “Não os incomodem”, ordenava o Coronel Aureliano Buendía. “Afinal, eu sei o que querem.” 

No início de dezembro, a entrevista longamente esperada, que muitos tinham previsto como uma discussão interminável, resolveu-se em menos de uma hora. Na abafada sala de visitas, junto ao espectro da pianola amortalhada com um lençol branco, o Coronel Aureliano Buendía não se sentou desta vez dentro do círculo de giz que traçaram os seus ajudantes de campo. Ocupou uma cadeira entre os seus assessores políticos, e embrulhado na manta de lã escutou em silêncio as breves propostas dos emissários. Pediam, em primeiro lugar, renunciar à revisão dos títulos de propriedade da terra para recuperar o apoio dos proprietários liberais. Pediam, em segundo lugar, renunciar à luta contra a influência clerical para obter o suporte do povo católico. Pediam, por último, renunciar às aspirações de igualdade de direitos entre os filhos naturais e os legítimos para preservar a integridade dos lares. 

— Quer dizer — sorriu o Coronel Aureliano Buendía quando terminou a leitura — que só estamos lutando pelo poder. 

— São reformas táticas — respondeu um dos delegados. 

— No momento, o essencial é ampliar a base popular da guerra. Depois se vê. 

Um dos assessores políticos do Coronel Aureliano Buendía se apressou a intervir. 

— É um contrassenso — disse. — Se estas reformas são boas, quer dizer que bom é o regime conservador. Se com elas conseguimos ampliar a base popular da guerra, como dizem os senhores, quer dizer que o regime tem uma ampla base popular. Quer dizer, em suma, que durante quase vinte anos estivemos lutando contra os sentimentos da nação. Ia continuar, mas o Coronel Aureliano Buendía o interrompeu com um sinal. 

“Não perca tempo, doutor”, disse. “O importante é que a partir deste momento só lutamos pelo poder.” Sem deixar de sorrir, tomou os papéis que lhe entregaram os delegados e se dispôs a assin ar. 

— Já que é assim — concluiu — não temos nenhum inconveniente em aceitar. Os seus homens se olharam consternados. 

— Desculpe, coronel — disse suavemente o Coronel Gerineldo Márquez — mas isto é uma traição. 

O Coronel Aureliano Buendía deteve no ar a pena com tinta, e descarregou sobre ele todo o peso de sua autoridade. 

— Entregue as suas armas — ordenou. 

O Coronel Gerineldo Márquez se levantou e pôs as armas na mesa. 

— Apresente-se no quartel — ordenou-lhe o Coronel Aureliano Buendía. 

— O senhor fica à disposição dos tribunais revolucionários. 

Assinou logo a declaração e entregou os papéis aos emissários, dizendo: 

— Senhores, aí têm o documento. Sirvam-se dele. 

Dois dias depois, o Coronel Gerineldo Márquez, acusado de alta traição, foi condenado à morte. Refestelado na rede, o Coronel Aureliano Buendía foi insensível às súplicas de demência. Na véspera da execução, desobedecendo à ordem de não ser incomodado, Úrsula o visitou no seu quarto. De luto fechado, investida de uma estranha solenidade, permaneceu de pé os três minutos da entrevista. “Sei que você vai fuzilar Gerineldo”, disse serenamente, “e eu não posso fazer nada para impedir. Mas uma coisa eu aviso: logo que eu veja o cadáver, juro pelos ossos de meu pai e de minha mãe, pela memória de José Arcadio Buendía, juro diante de Deus, que vou tirá-lo de onde você se meter e matá-lo com as minhas próprias mãos.” Antes de abandonar o quarto, sem esperar nenhuma resposta, concluiu: 

— E a mesma coisa que eu teria feito se você tivesse nascido com rabo de porco. 

Naquela noite interminável, enquanto o Coronel Gerineldo Márquez evocava as suas tardes mortas no quarto de costura de Amaranta, o Coronel Aureliano Buendía arranhou durante muitas horas, tentando rompê-la, a dura casca da sua solidão. Os seus únicos momentos felizes, desde a tarde remota em que seu pai o levara para conhecer o gelo, haviam transcorrido na oficina de ourivesaria, onde passava o tempo armando peixinhos de ouro. Tivera que promover 32 guerras, e tivera que violar todos os seus pactos com a morte e fuçar como um porco na estrumeira da glória, para descobrir com quase quarenta anos de atraso os privilégios da simplicidade. Ao amanhecer, moído pela atormentada vigília, apareceu no quarto do condenado uma hora antes da execução. “Terminou a farsa, compadre”, disse ao Coronel Gerineldo Márquez. “Vamos embora daqui antes que os mosquitos te executem.” O Coronel Gerineldo Márquez não pôde reprimir o desprezo que lhe inspirava aquela atitude. 

— Não, Aureliano — replicou. — Mais vale estar morto que ver você transformado num general de chanfalho. 

— Você não vai me ver assim — disse o Coronel Aureliano Buendía. — Ponha os sapatos e me ajude a acabar com esta guerra de merda. 

Ao dizer isto, não imaginava que era mais fácil começar uma guerra que terminá-la. Precisou de quase um ano de rigor sanguinário para forçar o governo a propor condições de paz favoráveis aos rebeldes, e outro ano para persuadir os seus partidários da conveniência de aceitá-las. Chegou a inconcebíveis extremos de crueldade para sufocar as rebeliões dos seus próprios oficiais, que resistiam a mercadejar a vitória, e terminou se apoiando em forças inimigas para acabar de subjugá-los. 

Nunca foi melhor guerreiro do que então. A certeza de que finalmente lutava pela sua própria libertação e não por ideais abstratos, por ordens que os políticos podiam virar para o direito e para o avesso segundo as circunstâncias, infundiu-lhe um entusiasmo apaixonado. O Coronel Gerineldo Márquez, que lutou pelo fracasso com tanta convicção e tanta lealdade como antes lutara pelo triunfo, reprovava a sua temeridade inútil. “Não se preocupe”, sorria ele. “Morrer é muito mais difícil do que se acredita.” No seu caso era verdade. A certeza de que o seu dia estava marcado investido de uma imunidade misteriosa, uma imortalidade a prazo fixo que o fez invulnerável aos riscos da guerra, e lhe permitiu finalmente conquistar uma derrota que era muito mais difícil, muito mais sangrenta e custosa que a vitória. 

Em quase vinte anos de guerra, o Coronel Aureliano Buendía tinha estado muitas vezes em casa, mas o estado de urgência em que chegava sempre, o aparato militar que o acompanhava a toda parte, a aura de lenda que dourava a sua presença e à qual nem a própria Úrsula foi insensível, terminaram por convertê-lo num estranho. Na última vez que esteve em Macondo e ocupou uma casa com as suas três concubinas, não foi visto na sua a não ser duas ou três vezes, quando teve tempo para aceitar convites para comer. Remedios, a bela, e os gêmeos, nascidos em plena guerra, mal o conheciam. Amaranta não conseguia conciliar a imagem do irmão que passara a adolescência fabricando peixinhos de ouro com a do guerreiro mítico que havia interposto entre ele e o resto da humanidade uma distância de três metros. Mas quando se soube da proximidade do armistício e se pensou que ele regressava outra vez convertido num ser humano, resgatado por fim para o coração dos seus, os afetos familiares adormecidos por tanto tempo renasceram com mais força do que nunca. 

— Finalmente — disse Úrsula — vamos ter outra vez um homem em casa. 

Amaranta foi a primeira a suspeitar de que o haviam perdido para sempre. Uma semana antes do armistício, quando ele entrou em casa sem escolta, precedido por dois ordenanças descalços que depositaram no corredor os arreios da mula e o baú dos versos, saldo único da sua antiga bagagem imperial, ela o viu passar em frente do quarto de costura e o chamou. O Coronel Aureliano Buendía pareceu ter dificuldade em reconhecê-la. 

— Sou Amaranta — disse ela de bom humor, feliz pela sua volta, e lhe mostrou a mão com a atadura negra. — Olhe. 

O Coronel Aureliano Buendía dirigiu-lhe o mesmo sorriso da primeira vez em que a viu com a atadura, na remota manhã em que voltou a Macondo sentenciado à morte. 

— Que horror — disse — como o tempo passa! 

O exército regular teve que proteger a casa. Ele chegara escarnecido, cuspido, acusado de ter endurecido a guerra apenas para vendê-la mais cara. Tremia de febre e de frio e tinha outra vez as axilas cheias de furúnculos. Seis meses antes, quando ouviu falar do armistício, Úrsula abriu e varreu a alcova nupcial, e queimou mirra nos cantos, pensando que ele regressaria disposto a envelhecer devagar entre as mofadas bonecas de Remedios. Mas na verdade, nos dois últimos anos ele pagara as suas quotas finais à vida, inclusive a do envelhecimento. Ao passar diante da oficina de ourivesaria, que Úrsula tinha preparado com especial cuidado, nem sequer percebeu que as chaves estavam postas no cadeado. Não notou os minúsculos e profundos estragos que o tempo fizera na casa e que depois de uma ausência tão prolongada teriam parecido um desastre a qualquer homem que conservasse vivas as suas recordações. Não o magoou a cal descascada nas paredes, nem os sujos algodões de teia de aranha nos cantos, nem a poeira das begônias, nem os túneis do cupim nas vigas, nem o musgo das dobradiças, nem nenhuma das armadilhas insidiosas que lhe estendia a saudade. Sentou-se na varanda, embrulhado na manta e sem tirar as botas, como que esperando apenas que estiasse, e permaneceu a tarde inteira vendo a chuva cair sobre as begônias. Úrsula compreendeu então que não o teria em casa por muito tempo. “Se não é a guerra”, pensou, “só pode ser a morte.” Foi uma suposição tão nítida, tão convincente, que ela a identificou como um presságio. 

Nessa noite, no jantar, o suposto Aureliano Segundo partiu o pão com a mão direita e tomou a sopa com a esquerda. Seu irmão gêmeo, o suposto José Arcadio Segundo, partiu o pão com a mão esquerda e tomou a sopa com a direita. Era tão precisa a coordenação dos seus movimentos que não pareciam dois irmãos sentados um em frente ao outro, e sim um artifício de espelhos. O espetáculo que os gêmeos tinham concebido desde que tomaram consciência de que eram iguais foi repetido em honra do recém-chegado. Mas o Coronel Aureliano Buendía não percebeu. Parecia tão alheio a tudo que nem sequer prestou atenção a Remedios, a bela, que passou despida para o quarto. Úrsula foi a única que se atreveu a perturbar a sua abstração. 

— Se você vai embora outra vez — disse-lhe no meio do jantar — pelo menos trate de se lembrar de como éramos esta noite. 

Então o Coronel Aureliano Buendía se deu conta, sem espanto, de que Úrsula era o único ser humano que tinha conseguido desentranhar a sua miséria, e pela primeira vez em muitos anos se atreveu a olhá-la na cara. Tinha a pele gretada, os dentes carcomidos, o cabelo minguado e sem cor, e o olhar atônito. Comparou-a com a lembrança mais antiga que tinha dela, na tarde em que ele tivera o presságio de que uma panela de sopa fervendo ia cair da mesa, e a encontrou espedaçada. Num instante descobriu os arranhões, os vergões, os calos, as úlceras e as cicatrizes que deixara nela mais de meio século de vida cotidiana e comprovou que estes estragos não provocavam nele sequer um sentimento de piedade. Fez então um último esforço para procurar no seu coração o lugar onde se haviam apodrecido os afetos e não conseguiu encontrá-lo. Em outra época, pelo menos, experimentava um confuso sentimento de vergonha quando surpreendia na sua própria pele o cheiro de Úrsula, e em mais de uma ocasião sentira os seus pensamentos interferidos pelo pensamento dela. Mas tudo isso tinha sido arrasado pela guerra. A própria Remedios, sua esposa, era naquele momento a imagem apagada de alguém que podia ter sido sua filha. As inumeráveis mulheres que conhecera no deserto do amor, e que espalharam a sua semente em todo o litoral, não tinham deixado nenhum rasto nos seus sentimentos. A maioria delas entrava no quarto na escuridão e ia embora antes da alvorada, e no dia seguinte era apenas um pouco de tédio na memória corporal. O único afeto que prevalecia contra o tempo e a guerra foi o que sentiu pelo seu irmão José Arcadio quando ambos eram crianças, e não estava baseado no amor, mas na cumplicidade. 

— Perdão — desculpou-se diante do pedido de Úrsula. 

— É que esta guerra acabou com tudo. 

Nos dias subsequentes ocupou-se em destruir todas as marcas da sua passagem pelo mundo. Reduziu a oficina de ourivesaria até deixar apenas os objetos impessoais, deu as suas roupas aos ordenanças e enterrou as suas armas no quintal com o mesmo sentido de penitência com que o seu pai havia enterrado a lança que dera morte a Prudencio Aguilar. Conservou somente uma pistola, e com uma bala apenas. Úrsula não interveio. A única vez que se meteu foi quando ele estava se preparando para destruir o retrato de Remedios que se conservava na sala, iluminado por uma lâmpada eterna. “Esse retrato deixou de pertencer a você há muito tempo”, disse a ele. “É uma relíquia de família.” Na véspera do armistício, quando já não havia em casa um só objeto que permitisse recordá-lo, levou à padaria da casa o baú com os versos, no momento em que Santa Sofía de la Piedad se preparava para acender o forno. 

— Acenda com isto — disse a ela, entregando-lhe o primeiro rolo de papéis amarelados. — Arde melhor, porque são coisas muito antigas. 

Santa Sofía de la Piedad, a silenciosa, a condescendente, a que nunca contrariara nem os próprios filhos, teve a impressão de que aquele era um ato proibido. 

— São papéis importantes — disse. 

— Nada disso — disse o coronel. — São coisas que uma pessoa escreve para si mesma. 

— Então — ela disse — queime o senhor mesmo, coronel. 

Não apenas o fez, mas espedaçou também o baú com uma machadinha e jogou os cavacos no fogo. Horas antes, Pilar Ternera o visitara. Depois de tantos anos sem vê -la, o Coronel Aureliano Buendía se assombrou de quanto havia envelhecido e engordado, e de quanto havia perdido o esplendor do seu riso; mas também se assombrou da profundidade que havia atingido na leitura das cartas. “Cuidado com a boca”, disse ela, e ele se perguntou se da outra vez em que dissera, no apogeu da glória, não havia sido uma visão surpreendentemente antecipada do seu destino. Pouco depois, quando o seu médico pessoal acabou de lhe extirpar os furúnculos, ele perguntou sem demonstrar interesse particular qual era o lugar exato do coração. O médico o auscultou e pintou-lhe em seguida um círculo no peito com um algodão sujo de iodo.

continua página 111...

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