quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (6.2) - Jamais cobrava o serviço

Cem Anos de Solidão


Gabriel Garcia Márquez


(6.2)



para jomí garcía ascot 

e maría luisa elío



continuando...


Jamais cobrava o serviço. Jamais negava o favor, como não o negara aos inumeráveis homens que a procuraram até o crepúsculo da sua maturidade, sem lhe proporcionar nem dinheiro nem amor, apenas, algumas vezes, prazer. As suas cinco filhas, herdeiras de uma semente fogosa, perderam-se pelos caminhos da vida desde a adolescência. Dos dois varões que chegou a criar, um morreu lutando nas hostes do Coronel Aureliano Buendía e o outro foi ferido e capturado aos quatorze anos, quando tentava roubar um engradado de galinhas num povoado do pântano. De certo modo, Aureliano José foi um homem alto e moreno que durante meio século lhe foi anunciado pelo rei de copas, e que como todos os enviados pelo baralho chegou ao seu coração quando já estava marcado pelo signo da morte. Ela viu isso nas cartas.

— Não saia esta noite — disse a ele. — Fique para dormir aqui, que a Carmelita Montiel já cansou de me implorar para que a ponha no seu quarto.

Aureliano José não captou o profundo sentido de súplica que tinha aquela oferta.

— Diga a ela que me espere à meia-noite — disse.

Foi ao teatro, onde uma companhia espanhola anunciava O Punhal do Zorro, que na realidade era a obra de Zorrilla com o nome trocado por ordem do Capitão Aquiles Ricardo, porque os liberais chamavam de godos os conservadores [1]. Apenas no momento de entregar o bilhete na entrada é que Aureliano José percebeu que o Capitão Aquiles Ricardo, com dois soldados armados de fuzis, estava passando em revista a plateia. “Cuidado, capitão”, advertiu Aureliano José. “Ainda não nasceu o homem que vai botar as mãos em cima de mim.” O capitão tentou revistá-lo à força, e Aureliano José, que estava desarmado, saiu correndo. Os soldados desobedeceram a ordem de atirar. “É um Buendía”, explicou um deles. Cego de raiva, o capitão lhe arrancou o fuzil, abriu espaço no meio da rua, e apontou.

— Cornos! — chegou a gritar. — Oxalá fosse o Coronel Aureliano Buendía.

Carmelita Montiel, uma virgem de vinte anos, acabava de se banhar em água de flor de laranjeira e estava esparramando folhas de alecrim na cama de Pilar Ternera, quando soou o disparo. Aureliano José estava destinado a conhecer com ela a felicidade que lhe negara Amaranta, a ter sete filhos e a morrer de velhice nos seus braços, mas a bala de fuzil que lhe entrou pelas costas e lhe despedaçou o peito estava dirigida por uma má interpretação das cartas. O Capitão Aquiles Ricardo, que era na verdade quem estava destinado a morrer nessa noite, morreu realmente quatro horas antes de Aureliano José. Mal soou o disparo, foi derrubado por dois balaços simultâneos cuja origem não se aclarou nunca, e um grito da multidão estremeceu a noite.

— Viva o Partido Liberal! Viva o Coronel Aureliano Buendía!

À meia-noite, quando Aureliano José acabou de sangrar e Carmelita Montiel encontrou em branco as cartas do seu futuro, mais de quatrocentos homens já haviam desfilado diante do teatro e descarregado os seus revólveres contra o cadáver abandonado do Capitão Aquiles Ricardo. Foi necessária uma patrulha para colocar sobre uma carreta o corpo pesado de chumbo, que se decompunha como um pão molhado.
Contrariado pelas impertinências do exército regular, o General José Raquel Moncada mobilizou as suas influências políticas, voltou a vestir o uniforme e assumiu a chefatura civil e militar de Macondo. Não esperava, entretanto, que a sua atitude conciliatória pudesse impedir o inevitável. As notícias de setembro foram contraditórias. Enquanto o governo anunciava que mantinha o controle de todo o país, os liberais recebiam informações secretas de levantes armados no interior. O regime não admitiu o estado de guerra enquanto não se proclamou num decreto que se havia reunido um conselho de guerra, na ausência do Coronel Aureliano Buendía, e que ele havia sido condenado à morte. Ordenava-se que a primeira guarnição que o capturasse cumprisse a sentença. “Isto quer dizer que ele voltou”, alegrou-se Úrsula diante do General Moncada. Mesmo ele, porém, não sabia ao certo.
Na realidade, o Coronel Aureliano Buendía já estava no país havia mais de um mês. Precedido por boatos contraditórios, sabido ao mesmo tempo nos lugares mais afastados, o próprio General Moncada não acreditou na sua volta a não ser quando se anunciou oficialmente que ele se havia apoderado de dois estados do litoral. “Parabéns, comadre”, disse a Úrsula, mostrando o telegrama. “Dentro em breve há de tê-lo aqui.”
Úrsula se preocupou então pela primeira vez. “E o senhor, que é que vai fazer, compadre?”, perguntou. O General Moncada já se havia interrogado sobre isto muitas vezes. — O mesmo que ele, comadre: — respondeu — cumprir com o meu dever. No dia primeiro de outubro, ao amanhecer, o Coronel Aureliano Buendía, com mil homens bem armados, atacou Macondo, e a guarnição recebeu ordem de resistir até o fim. Ao meio-dia, enquanto o General Moncada almoçava com Úrsula, um tiro de canhão rebelde, que retumbou pelo povoado inteiro, reduziu a pó a fachada da tesouraria municipal. “Eles estão tão bem armados quanto nós”, suspirou o General Moncada, “e além disso lutam com mais vontade.” Às duas da tarde, enquanto a terra tremia com os tiros de canhão de ambos os lados, despediu-se de Úrsula com a certeza de que estava lutando uma batalha perdida.

— Rogo a Deus que esta noite você ainda não tenha Aureliano em casa — disse. — Se acontecer, dê a ele um abraço meu, porque não espero tornar a vê-lo nunca mais.

Nessa mesma noite foi capturado, quando tentava fugir de Macondo, depois de escrever uma extensa carta ao Coronel Aureliano Buendía, na qual lhe recordava os propósitos comuns de humanizar a guerra e lhe desejava uma vitória definitiva contra a corrupção dos militares e as ambições dos políticos de ambos os partidos. No dia seguinte o Coronel Aureliano Buendía almoçou com ele na casa de Úrsula, onde ele tinha sido posto em custódia até que um conselho de guerra revolucionário decidisse o seu destino. Foi uma reunião familiar. Mas enquanto os adversários esqueciam a guerra para evocar lembranças do passado, Úrsula teve a sombria impressão de que o seu filho era um intruso. Tivera-a desde que o vira entrar protegido por um ruidoso aparato militar que revirou os quartos pelo direito e pelo avesso até se convencer de que não havia nenhum risco. O Coronel Aureliano Buendía não só aceitou a situação como também distribuiu ordens de uma severidade extrema, e não permitiu que ninguém se aproximasse a menos de três metros de sua pessoa, nem sequer Úrsula, enquanto os membros da sua escolta não acabavam de distribuir as patrulhas em volta da casa. Vestia um uniforme de brim ordinário, sem insígnias de qualquer espécie, e umas botas altas com esporas lambuzadas de barro e sangue seco. Levava no cinto uma pistola com o coldre desabotoado, e a mão sempre apoiada na coronha revelava a mesma tensão vigilante e resoluta do olhar. A sua cabeça, agora com entradas profundas, parecia cozinhada em fogo lento. O seu rosto gretado pelo sol do Caribe tinha adquirido uma dureza metálica. Estava preservado da velhice iminente por uma vitalidade que tinha alguma coisa que ver com a frieza das entranhas. Estava mais alto do que quando partiu, mais pálido e ósseo, e manifestava os primeiros sintomas de resistência à saudade. “Meu Deus”, disse Úrsula para si, alarmada. “Agora parece um homem capaz de tudo.” E era. A manta asteca que trouxe para Amaranta, as recordações que emitiu no almoço, as divertidas anedotas que contou, eram meros resíduos do seu humor de outros tempos. Nem bem se cumpriu a ordem de enterrar os mortos na fossa comum, designou o Coronel Roque Carnicero para a missão de apressar os julgamentos de guerra, e ele próprio então se empenhou na extenuante tarefa de impor as reformas radicais que não deixassem pedra sobre pedra da restabelecida estrutura do regime conservador. “Nós temos que nos antecipar aos políticos do partido”, dizia aos seus assessores. “Quando abrirem os olhos para a realidade, encontrarão os fatos consumados.” Foi então que decidiu rever os títulos de propriedade da terra, até cem anos atrás, e descobriu as violências legalizadas do seu irmão José Arcadio. Anulou os registros de uma assentada. Num último gesto de cortesia, abandonou as suas ocupações por uma hora e visitou Rebeca para pô-la ao corrente da sua determinação.
Na penumbra da casa, a viúva solitária que um dia fora a confidente dos seus amores reprimidos, e cuja obstinação lhe salvara a vida, era um espectro do passado. Fechada de negro até os punhos, com o coração convertido em cinzas, mal tinha notícia da guerra. O Coronel Aureliano Buendía teve a impressão de que a fosforescência dos seus ossos transpassava a pele, e que ela se movia através de uma atmosfera de fogos fátuos, num ar estancado onde ainda se percebia um discreto cheiro de pólvora. Começou por aconselhá-la a que moderasse o rigor do luto, que ventilasse a casa, que perdoasse ao mundo a morte de José Arcadio. Mas Rebeca já estava a salvo de qualquer vaidade. Depois de procurá-la inutilmente no sabor da terra, nas cartas perfumadas de Pietro Crespi, na cama tempestuosa do marido, encontrara a paz naquela casa onde as lembranças se materializaram pela força da evocação implacável, e passeavam como seres humanos pelos quartos fechados. Ereta na sua cadeira de balanço de vime, olhando para o Coronel Aureliano Buendía como se fosse ele quem parecesse um espectro do passado, Rebeca nem sequer se comoveu com a notícia de que as terras usurpadas por José Arcadio seriam restituídas aos seus legítimos donos.

— Será feito o que você mandar, Aureliano — suspirou.

— Sempre acreditei, e confirmo agora, que você é um desnaturado.

A revisão dos títulos de propriedade terminou ao mesmo tempo que os julgamentos sumários, presididos pelo Coronel Geríneldo Márquez, e que concluíram com o fuzilamento de toda a oficialidade do exército regular prisioneira dos revolucionários. O último tribunal de guerra foi o do General José Raquel Moncada. Úrsula interveio. “E o melhor governante que tivemos em Macondo”, disse ao Coronel Aureliano Buendía. “Não tenho mesmo nada a dizer do seu bom coração, do afeto que nos dedica, porque você o conhece melhor que ninguém.” O Coronel Aureliano Buendía fixou nela um olhar de reprovação:

— Não posso me arrogar o direito de administrar justiça — respondeu. — Se a senhora tem alguma coisa a dizer, faça-o diante do tribunal de guerra.

Úrsula não só o fez como também levou para testemunharem todas as mães dos oficiais revolucionários que viviam em Macondo. Uma por uma, as velhas fundadoras do povoado, várias tendo participado da temerária travessia da serra, exaltaram as virtudes do General Moncada. Úrsula foi a última da fila. A sua dignidade patética, o peso do seu nome, a convincente veemência da sua declaração fizeram vacilar por um momento o equilíbrio da justiça. “Os senhores levaram muito a sério esta brincadeira horrível, e fizeram bem, porque estão cumprindo com o seu dever”, disse aos membros do tribunal. “Mas não se esqueçam de que, enquanto Deus nos der vida, nós continuamos sendo mães, e por muito revolucionários que vocês sejam temos o direito de lhes abaixar as calças e dar uma boa coça diante da primeira falta de respeito.” O júri se retirou para deliberar quando ainda ressoavam estas palavras no âmbito da escola transformada em quartel. A meia-noite, o General José Raquel Moncada foi condenado à morte. O Coronel Aureliano Buendía, apesar das violentas recriminações de Úrsula, negou-se a comutarlhe a pena. Pouco antes do amanhecer, visitou o condenado no quarto do tronco.

— Lembre-se, compadre — disse a ele — que não sou eu quem o está fuzilando, e sim a revolução.

O General Moncada nem sequer se levantou do catre ao vê-lo entrar.

— Vá à merda, compadre — respondeu.

Até aquele momento, desde a sua volta, o Coronel Aureliano Buendía não se permitira uma oportunidade de olhá-lo com o coração. Assombrou-se de quanto tinha envelhecido, do tremor das suas mãos, da resignação um pouco rotineira com que esperava a morte, e então experimentou um profundo desprezo por si mesmo, que confundiu com um princípio de misericórdia.

— Você sabe melhor que eu — disse — que todo tribunal de guerra é uma farsa, e que na verdade você vai pagar os crimes dos outros, porque desta vez nós vamos ganhar a guerra a qualquer preço. Você no meu lugar não teria feito a mesma coisa?

O General Moncada endireitou o corpo para limpar os grossos óculos de tartaruga com as fraldas da camisa. “Provavelmente”, disse. “Mas o que me preocupa não é que você me fuzile, porque afinal para gente como nós esta é a morte natural.”
Colocou os óculos sobre a cama e tirou o relógio de bolso. “O que me preocupa”, acrescentou, “é que de tanto odiar os militares, de tanto combatê-los, de tanto pensar neles, você acabou por ficar igual a eles. E não há ideal na vida que mereça tanta baixeza.” Tirou a aliança e a medalha da Virgem dos Remédios e pôs junto com os óculos e o relógio.

— Nesse ritmo — concluiu — você não só será o ditador mais despótico e sanguinário da nossa história como também acabará por fuzilar a minha comadre Úrsula, tentando apaziguar a sua consciência.

O Coronel Aureliano Buendía permaneceu impassível, O General Moncada entregou-lhe então os óculos, a medalha, o relógio e a aliança, e mudou de tom.

— Mas eu não fiz você vir aqui para repreendê-lo — disse. — Queria pedir a você o favor de enviar estas coisas a minha mulher.

O Coronel Aureliano Buendía guardou-as nos bolsos.

— Continua em Manaure?

— Continua em Manaure — confirmou o General Moncada — na mesma casa atrás da igreja para onde você enviou aquela carta.

— Farei com muito gosto, José Raquel — disse o Coronel Aureliano Buendía.

Quando saiu na brisa azul da neblina, o rosto se lhe umedeceu como no outro amanhecer do passado, e só então compreendeu por que determinara que a sentença se cumprisse no pátio, e não no muro do cemitério. O pelotão, formado diante da porta, rendeu-lhe as honras de chefe de Estado.

— Já podem trazê-lo — ordenou.

continua página 103...

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[1] José Zorrilla é um dramaturgo romântico espanhol, autor, entre outras, de duas peças de muito êxito e bilheteria até hoje: D. Juan Tenorio e El Puflal del Godo. A mudança para Zorro traz também a evocação dos bangbang seriados, versão moderna do capa e espada romântico. (N. T.)

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