domingo, 25 de setembro de 2022

histórias davóinha: becos sem saída (III) 19bs – a notícia

becos sem saída


(III) o descolocado
19bs – a notícia

baitasar


pronto, o assunto feijoada estava apostado, sem mais nenhuma algazarra ou tumulto, assim como se veio o dia se foi, as crianças dormem tranquilas, sem queixas de importância, isso faz bem, pois assim ficam em paz, levanta os olhos até a muriquinha e sorri, pega a chupeta rósea e esconde embaixo do travesseiro da futuro

o virgílio se veio bem antes, não recebeu chamado de serviço nem precisou fazer reforço de ajuda, resmungou que amanhã vai puxar o carrinho das garrafas vazias, papelão, vidro quebrado e ferro-velho, o silêncio do sono invade a cama resfriada, cada um para o seu lado, o braseiro segue amornado, a distância aumentando, não querem mais filhos, não querem correr riscos com as contas de um calendário deixado de lado, e muito pouco compreendido, É mais fácil não fazer do que se arrepender

o gosto do não feito desanimava mais e mais

virgílio ronca quase no instante em que fecha os olhos, memória vira e revira as vontades, boceja, desiste de cutucar a onça da vara curta quando lembra a quem cabe a tarefa de acalentar as crianças, lavar fraldas, dar a mamada, limpar os mijados e o cocô, não reclama, as meninas são ensinadas assim, como segurar nos braços, como aconchegar, confortar, embalar, tranquilizar, é a herança mímica da exibição de amor ensinada desde sempre às meninas e interditada aos guris

quando um não quer, a outra se vira do jeito que pode, finge que também não quer e dorme, ou finge que dorme e geme enquanto as coxas queimam até esfriarem, Assim é melhor, risco zero!, e fico sem nenhum pecado da carne sem vontade de se confessar, gosta desse jeito, se descobrindo dona dela mesma

fica ali, esbugalhada e quieta, vigiando a escuridão com seus ruídos, fantasmas latejando, tecendo o dia que há de vir, entre sal, alhos, cebolas e tomates, a banha derretendo entre os feijões, a água fervente com bofes, rins, coração, fígado, toucinhos, miúdos e patas

o fechamento dos olhos se demora e o abraço do sono não lhe chega com as mesmas facilidades do virgílio, o adormecer continua arredio e desconfiado, pede aos anjos um tantinho de sono, Os abicus não devem andar por esses lados com seus olhos de águia. Queria tanto uma conversa pra boi dormir. Mais uma noite de cachorro.

depois de tanto fuxicar-se, os miolos adormecem, os ouvidos emudecem os olhos e ela afunda no assoalho da cama, dorme com a boca escancarada que parece ter o fundo e as larguras da vastidão sem fim

acorda tonta, de porre, sem lucidez, ramelenta, melada nos lábios grossos, a mamada escorrida, Maria Futuro!

e assim o dia começa e se vai, sem maiores temores ou sustos, a mesma rotineira usança do dia até que outra noite vai entrando do beco para dentro da casinha da memória, os miúdos acomodados para o sono, a miúda reclamando sua mamada, revisa com resmungos, cantos e encantos o cercadinho enquanto escuta suas músicas no rádio, O seria da vida sem esse companheiro?

o apresentador do programa musical anuncia uma das suas músicas preferidas, gosta de cantarolar pelos becos da casa, algumas mais que outras, como gosta da filharada, ela gosta de todos, claro, sempre atenta aos movimentos do lamparino e supimpo, mas os olhos que guarda para maria futuro são de mãe, amiga e cúmplice, ela fica tomada de felicidade testemunhando a miúda crescer

Agora, para nossas queridas ouvintes, os sabores de um samba-canção de 60, autoria de Evaldo Gouveia e Jair Amorim, na voz de Tristão da Silva: A Notícia!


Hoje a notícia correu
Vieram logo me dizer
Mas verdade é que eu
Estava farta de saber

O amor que acaba é igual
A todo amor que chega ao fim.
E afinal, quem sou,
Para mudar coisas assim.

Os meus problemas são meus,
Deixem comigo a solução.
E os meus fracassos à Deus,
É que revelo quantos são.

Um conselho é tão fácil de dar,
Qualquer um cita exemplos no fim
Mas se um dia eu tiver de chorar
Ninguém chora por mim.

se inspira nas suas veias, no seu tédio, nas paredes, na fome, nas flores empoeiradas de plástico, na feijoada, na cama fria, nas tantas e tantas mágoas da vida, na cachaça, no labirinto de lágrimas, no grito congelado na garganta, na frieza daquela vida de escassez, sai a cantarolar pela casa, Adoro Tristão, faz coro ao cantor, Ninguém chora por mim!!!!

em uma mistura de susto e indignação ouve o apresentador interromper a sua cantoria, estacionaa junto das paredes mornas do fogão, as pedras rachando, o hino nacional tocando, Ouviram do Ipiranga às margens plácidas...

Ué, que diabo é isso?!

Boa noite, Boa noite, ela responde àquela voz sobranceira e grave, pausada e definitiva, anunciando o discurso do excelentíssimo ministro da justiça

O Presidente da República, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e considerando que a revolução de 31 de março de 1964, maria memória perde sua atenção daquela falação tão sisuda, quer estar alegre, convencida das boas intenções, solidariedade e fraternidade das pessoas de bem, da família, batuque, deus, saravá, a voz sisuda e dura a persegue pela casa, tortura seus ouvidos

O Presidente da República, no interesse nacional, poderá decretar a intervenção nas Vilas e Municípios, ela só quer ser feliz na voz do tristão, alguém cale essa boca e toque sua canção, não está entendendo aquela falação toda

O Presidente da República em qualquer dos casos previstos na Constituição, poderá decretar o Estado de Sítio, deus!, ela confia em você, faça alguma coisa

Fica suspensa a garantia de Habeas Corpus, nos casos de crimes políticos, contra a Segurança Nacional, deus!, ela não sabe disso de habeas corpus, jesus amado passe para o lado dos torturados, imediatamente, sem vacilar, seja duro com os torturadores, ela ainda não sabe, mas há males que vêm para o mal

Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com esse Ato Institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos, obá!, não a abandone, ela conta com você

O presente Ato Institucional entra em vigor, nesta data. Revogadas as disposições em contrário, 13 de dezembro de 1968; 147º da Independência e 80º da República, deus!, faça-o calar-se

Desfaz-se a cadeia Nacional de Rádios, deus!, ela não está entendendo nada, explique-se, a voz se cala e memória volta a ouvir o hino nacional, está assustada, continua parada junto a fornalha de pedra e barro, quando compraram o fogão à gás – usado e com um dos dois bicos entupido – não deixou o virgílio desmanchar o fogão de pedra, E quando não tivermos o dinheiro para o gás? Deixa aí, é a nossa reserva para os dias piores.

o rádio volta às canções

olha para os lados, respira aliviada, nada mudou, foi só um susto, uma voz silenciosa lhe diz para desligar o rádio, O que não se sabe não assusta, desjunta o plug da tomada da parede, um zelo cuidadoso e desconfiado, todo cuidado é pouco, Deus é bom, nada de ruim vai nos acontecer.

está exausta, maria futuro continua adormecida, aproveita e se vai para o sono, um silêncio desalumiado se abre e a toma nos braços, Deus é pai, sente que ele cruza os braços às suas costas, feito um leão-de-chácara, a voz lhe escapa, está toda encolhida, dobrada e abraçada nos joelhos, não consegue explicar tanto medo em mais um dia se acabando



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