(III) o descolocado
22bs – o fanatismo não é salvador
baitasar
esse não foi um chamado de emergência, foi uma convocação com grito de pressa inadiável, não dava para fingimento embaçado ou aparecimento cauteloso, não dava para reclamar do berrante, também não dava para ficar com raiva ou sentir a injustiça daquilo tudo, não era quebranto nem falta de educação ou respeito, um raro chamamento do painho que pareciam labaredas fora da fogueira
lamparino e supimpo pararam a brincadeira com a cavalaria de pedrinhas, apareceram quase no mesmo instante em que o eco do chamativo gritado do virgílio ia sumindo, O que foi, painho? Sim, painho...
Posso saber a razão do gritedo?
não é pouca coisa continuar vivendo no beco, um lugar de muitos destinos parecidos onde não se espera mais do que viver, no beco a vida se agarra com força na própria vida enquanto é ferida de maneira estúpida, grosseira e deselegante pelo descaso da ociosidade das gente de bem, muito bem
Não é nada, Maria... é só uma conversa que quero ter com os dois moleques.
uma máscara descartável é sempre um desembaraço momentâneo, maria memória reconhecia as muitas máscaras daqueles três, ela acabara de colocar a miúda no cercado, um lugar de liberdade no regaço daquela casa, o seu quilombo, Se a guria acordar... os três vão dar atenção e cuidado pra Futuro. É melhor pra todos que essa conversinha ocorra de um jeito levinho e sem gritos.
Não se pode mais conversar aqui em casa?
memória reconhecia aqueles malabarismos, sentiu vontade de rir daquela choradeira inventada como remédio para seus avisos, chantagem dentro de um jogo de palavras, Claro que podem... e devem conversar, mas pra quê esse gritedo todo?
parece um vício – um gracioso e inevitável abuso no jeito de ver das gentes do deus por cima e da família habitual por tudo – negar as vidas descartáveis do beco, é preciso coragem para reconhecer o que sempre souberam: o beco é o gueto, não é voluntário nem deliberado viver em guetos, é indecente com os abandonados, é trágico carregar tanto abandono das outras pessoas, aquelas que carregam a família e deus nos seus estandartes, para que tenham coisas que não têm vontade nem sentido em si mesmas, coisa é coisa, gente é gente, mas parece que não é bem assim
na verdade, não é só abandono, também é ódio que só os covardes sentem, e são tão acovardados que não admitem o seu ódio, e rezam e oram e rezam e oram e gritam e cospem, não gostam da alegria barulhenta da vida, não conseguem entender a boniteza destoante da discordância e da semelhança, gostam de um deus que não canta com alegria, quer tudo igual do seu jeito, não fica agitado, e muito menos, fica espantado com tanto ódio concentrado nas vidas do beco
Tá bem... pode deixar, não vai acontecer de novo...
as vidas no beco não valem nada para essa gente de bem da villa, são vidas que só valem na medida da sua utilidade meritocrática, e mesmo assim, não mais que carniça para corvo
Parece que sou um cobra cascavel envenenada com o cheiro do próprio bafo, ela sabe que ninguém no beco é como quer, mas, muitas vezes, parece ser alguém menos que todos, uma mulher ninguém amarrada, sufocando, falando sozinha
O que é isso, Maria?
gente decadente, juízo de valores odientos contra as vidas do beco, é preciso apontar o dedo e denunciar por cada morto, por cada afetação perversa, o instinto decadente e desumano destes corvos
Eu vejo seus olhares, sinto o que pensam de mim, coloca uma das mãos na cintura, a outra aponta para os três, Não precisam dizer nada. Vocês não sabem, mas são uma multidão em casa.
para a villa, as gentes do beco precisam demonstrar que são boas porque para a família de deus – um reduto de histórias que se repetem, nunca acabam – não valem grande coisa, não são da villa, estão na villa, quando tanta gente sente ódio e medo com alegria e não escondem seu ódio, pelo contrário, sentem orgulho da mentira, o perigo é qualquer coisa – assunto, mercadoria ou pessoa – se transformar na coisa do ódio
Maria... não diz assim. Eu chamei os moleques pra pedir uma ajudinha com o fogão de pedra.
o fanatismo não é salvador, ele devora a razão, mastiga a lucidez e vomita o caos controlado – ele surge do caos, mas não é o caos, tem medo do caos exagerado, apenas o suficiente para ter o controle – sobre os instintos da alegria e amorosidade, é uma longa doença
Sei, tô me sentindo tão vigiada, até parece que tô entrando no mercado com a miúda pendurada.
o fanatismo é uma fumaça desaparecendo lentamente que insiste na vontade de permanecer fumaça, não quer se dissipar, não quer o mundo da fumaça dissipada
Eu não! Posso tá na ferrovia, na obra, na vigia ou puxando carrinho... quero que se fodam com seus olhares vigilantes!
Virgílio!
Foi tu que começou...
não parece que exista um jeito em nossas vidas que nos livre das mentiras e dos enganos, o fanático parece não saber que a castração é o resultado da sua luta contra a amorosidade e a alegria
Claro... eu...
E não foi... mas tudo bem... vou ter uma conversa com Lamparino e Supimpo.
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