domingo, 16 de outubro de 2022

histórias davóinha: becos sem saída (III) 21bs – tudo bem picadinho

becos sem saída


(III) o descolocado
21bs – tudo bem picadinho

baitasar


o virgílio sem olhar atrás se foi nos passo seguro que sabe onde está levando e porque está indo, os passos fortes e rápidos, parecia saber como se mexer no meio daquela algazarra de gente pra lá e cá, saindo, entrando, perguntando, pechinchando, comprando, memória deu dois passo com a futuro pendurada e parou, não disse nada, não reclamou, só ficou ali parada, olhando o virgílio, doida pra vê até onde ele se ia sem dá falta das duas

ele se foi até o açougue, e só foi ali, nas carnes fatiadas do bicho sacrificado, quando ele parou para mostrar as partes que queria levar, que o virgílio olhou para trás e deu com a falta da memória, chamou uma vez, Maria, voltou dois passos, quase esbarrou em dois senhores distintos que também bisbilhotavam os preços das partes do porco, Vamos levar os pés também, O homem disse que não come os pés, O senhor tem serra de ferro, Tenho, Deixa pra mim, corto os pés em fatias, O senhor é que sabe, Vamos levar sim, Tá bom, O que as vistas não veem o coração não sente, E a boca não recusa, soltaram junto um riso cúmplice

Com licença, disse se dirigindo aos dois senhores, Pois não, respondeu o mais alto dos dois, Obrigado, olhava para os lados e chamava, Maria, Aqui, olhou na direção da resposta ao seu chamado, ali estavam as duas, Por que tá parada aí, mulher, ela não se apressou no ricochete do seu palavrório, esperou ele se chegar mais perto, escarcéu tem hora, lugar e motivo para fazer, no jeito de ver da memória, ali não era lugar nem hora para tanto, Eu e a Futuro não somos a carrocinha que tu vai na frente puxando, se quer andar comigo anda junto, Tá bem, tá bem, quanta frescura... tu não é cachorra sem dono, Como é? O que tu tá dizendo? Vai pentear macacos!

um olhava o outro com algum insulto mastigado na boca, ruminando as palavras, sabiam que era só desprender o nó da garganta, memória foi a primeira que se acalmou, Tu ainda não respondeu, virgílio afrouxou as pregas da garganta e arredondou o jeito de olhar, sabia que um precisava do outro, dois por um e um por dois, fora disso, é todos contra os dois, é muita gente contra, muita cisma e desconfiança, O que foi que eu não respondi?

os dois descobriam juntos que mais lhes convinha conversar que odiar as palavras do outro, Não adianta ficar birrenta com ele, Não adianta ficar cismado com ela, ele não estava por cima, ela não estava por baixo, não importa o resto, eles são gozdos e zombados assim que ficam longe do beco, a gente de bem da villa se sente no direito de pisar, desprezar ou diminuir os dois, um contágio de pai para o filho, mãe para a filha, ensinam o ódio e o medo aos pretos e pobres como se fosse uma coisa engraçada, uma doença a ser evitada

Tu não respondeu se encheu o carrinho, o virgílio sorriu, soltou as travas da falação olhando memória sem embaraço, sem atrapalhação, Ah! Isso, Maria! Foi melhor, e parou a resposta, não demorou-se por birra ou descontentamento, era só provocação, Fala logo, Virgílio!

não parece ter lógica o ajuntamento desses dois – e qual amigação tem o uso da razão? –, não tem explicação, não precisa explicação; e isso, afinal, é irrelevante, ele muito ignorante e tosco, ela muito criança e louca, não se deram tempo para reunirem informações sérias, ponderadas e racionais um do outro, foram cercados por um enxame de cochichos, risadinhas e encenações próprias de qualquer início amoroso

não faltaram insinuações e apelos, apertos e agarração secreta até que se evaporaram na asfixia das vontades do apego desnorteado, não esperaram pelo que já estava decidido e não tiraram o corpo fora, pelo contrário, se ofereceram um ao outro

Passei numa obra abandonada – eu já vinha vigiando a obra – e vi muito ferro velho jogado no chão. Recolhi o que deu pra enfiar na carreta.

Tava abandonada mesmo? O peso compensou?

Muito...

Então, e agora?

ele olha memória com um discreto sorriso nos lábios carnudos, Agora vamos olhar o que vai dar pra comprar pra feijoada.

as pupilas da memória incharam, as dores de um povo, o atabaque ruflando, Antes preciso dar mamada pra Futuro.

Aqui? Acho melhor não...

Onde?

Não sei, acha um lugar escondido.

memória olhou para os lados, apertou o beiço de baixo para cima, depois mirou o rostinho da miúda, não tinha tempo para perder com bobice, ela se virou e resmungou, Que lugar escondido nada, a miúda tá com fome e a mamada tá aqui. E se tu não quer ver sai da frente ou vira de costas... faz tempo que não vê mesmo nem se interessa de ver...

virgílio se virou para o açougue, Eu não vou esperar pra ver... tô indo no especular os preços.

Isso, vai. Vou sentar aqui, entre os chás e as ervas, disse já sentando em um caixote de madeira, a fome não tem vergonha na cara, mendiga com as mãos estendidas, o gemido do pelourinho ainda se espalha, a escravidão da fome continua nas quebradas da vida, a fumaça do bem nos olhos grita, É um povaréu desqualificado e preguiçoso que reclama de barriga cheia! Elemento vagabundo e perigoso... querem tudo de graça...

Virgílio!

ele se volta constrangido, Fala, Maria.

Como descascar do coração essa fome de querer outra vida?

virgílio mastigava o fumo de corda, procurava um lugar para cuspir fora, não achava, continuava mastigando, Não sei, Maria. Achei que a vida tava boa...

ela queria viver sem medo, viver com alegria, sabia explicar que flor de plástico não é flor, mas como dizer que seus olhos precisavam respirar, cansados da visão do cemitério, como explicar que seus olhos são fogueiras atentas multiplicando histórias, Virgílio! Espera!

O que foi?

Ainda não contei que a vizinha não come feijoada com as patas nem as orelhas do porco.

sem saber por quê abaixou a voz, os olhos quase fechados pareciam prontos para dormirem, Tu tá brincando...

memória pareceu sentir dor em um dos dentes de trás, desconfiou que seria preciso arrancá-lo, só não sabia como se fosse preciso, Não... e tem mais... também não come a buchada.

como estava cansado daquilo tudo, parecia ter levado uma surra, queria lavar o rosto e os sovacos, E ela não sabe que feijoada sem pata, sem orelha e sem buchada não é feijoada?

Eu tentei explicar, mas ela não quis ouvir.

Deixa pra mim, vai comer gato por lebre... por que tá me olhando assim?

Virgílio, o que a gente esconde não desaparece.

Não sou eu que quer enganar a vizinha, ela que quer ser enganada. Onde já se viu feijoada sem gosto de feijoada? Então não venha!

Calma, Virgílio...

Cuida da mamada da miúda... da feijoada cuido eu... ainda temos aquela serra de ferro, né?

ele sacudiu os ombros, Acho que sim, mas não sei onde tá...

Não tem importância, eu acho, O que tu vai fazer?

Vou serrar as patas, Pra quê?

Vai parecer que são costelihas do porco, E as orelhas? A buchada...

Tudo bem picadinho... fica com a miúda que eu vou no açougue.

deixou memória sentada com a miúda pendurada na mamada

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