domingo, 11 de setembro de 2022

histórias davóinha: becos sem saída (III) 17bs - uma conversa na madrugada

becos sem saída


(III) o descolocado
17bs – uma conversa na madrugada

baitasar


o dia se passa montado no tempo sem que a memória esqueça a conversa que quer ter, está louca para destrancar seus planos com virgílio

aquietou os miúdos com arroz, feijão e aipim mais um molho de tomate, cebola e carne moída, estava decidida iniciar os miúdos na lavação da pia, mas achou melhor deixar para um outro amanhã as patacas daquela lavação, Tá na hora de dormir, não esperem a mamãe mandar, Boa noite, mãinha, Boa noite, mãinha, Boa noite, um bom sono pra vocês e um alegre despertar.

pra miúda piquininina oferece a mamada encharcada da leitaria mais ambrosiada que futuro iria apreciar, gosta de servir a vida abundosa da mamada, depois da saciação elas sempre trocam olhares e risos, assopros e ruídos, animadas e admiradas uma com a outra, arreganhos a meia-luz, por último, e não menos importante, memória coloca a miúda recostada no seu peito e sussurra suave a ladainha repetitiva de sempre, Nana nenê que a cuca vem aí, papai foi na roça, mamãe volta já. Boi, boi, boi, Boi da cara preta, Pega essa miúda que tem medo de careta, Não, não, não, Não pega ela não, Ela é bonitinha, ela chora coitadinha, Dorme menina que eu tenho o que fazer, Lavar e secar a roupinha pra você...

assim fica até a miúda lançar fora seus arrotos, é o sinal que está pronta para dormir no cercado

sem o peso da piquininina nos braços, e só depois de espiar duas ou três vezes se futuro está dormindo – ela e o seu dever contínuo de ser mãe –, sai para esticar as pernas, fica observando suas estrelas favoritas: As Três Maria, um trio de estrelas gigantes e brilhantes, três mulheres marias revelando-se na escuridão, salientes na inocência da luz, sem medo do próprio brilho, sente o arrepio do frio da noite, volta para a porta da casa, vira-se e observa o beco, intransitável no mau tempo, seco e empoeirado na estiagem, nada se movia, silencioso, pouco iluminado, abandonados, entra e fecha a porta

na chegada do seu roteiro de aflição e inquietação, em mais um dia carrancudo, virgílio encontra maria memória acordada, recostada na cama, olhos estalados feito dois ovos fritos, acessos e risonhos, entra sem saber o que fazer ou dizer, perdido de aparecer tão tarde e memória estar acordada, o que é muito ruim de sentir, os rolinhos abocando a carapinha curta, tudo acobertado por um lenço colorido – gosta das cores vivas e quentes –, naquela circunstância despedaçada da rotina sentiu vontade de perguntar, Quem morreu?

mas aquieta a língua com o seu cansaço e silenciosa vigília, Quando um não quer dois não desafinam, é o seu jeito, não é um contrariador quando o assunto é memória

senta na cama para tirar as botinas, desliza as mãos até os pés, sente o peso da correnteza descuidada da vida, os cabelos maltratados, desalinhados como aquela confusa convivência, por vezes pouco harmoniosa, permanece quieto, sem entusiasmo, Por favor, homem de Deus! Tira essas botinas, lá fora!

o zum zum zum da memória é uma ordem do sargento para ser cumprida, o soldado foi delatado à sentinela – o faro recostado na cama – pela certeza do ocre das botinas, sem outra alternativa, levanta e vai até um dos cantos, junto ao cubo degenerado, senta no chão e tira as botinas, os rastros se misturam em um só vestígio, Não esquece de tirar as meias!

olha para os pés, o dedão aponta para fora, tira as meias pelo dedão, levanta, apaga a luz e acende o lampião, o cheiro da vela e a fumacinha daquele vagalume logo se esparramam, abre a escotilha espiã da memória e se deixa aclarar pela escuridão da madrugada, a garganta seca incomoda, olha à claridade e seus enfeites guias da humanidade

becos sem saída

coloca água na bacia sobre a mesa, lava o rosto, os braços e o fedor de hortaliças podres nos sovacos com um pedaço do sabão de roupa, coloca a bacia no chão e mergulha os pés na água fria, sente pequenos arrepios de desesperança enquanto esfrega os pés com o sabão da lavação

seca o rosto, os braços e os pés, joga a toalha sobre a mesa, Não esquece o assento!

leva a mão em concha até o furo do vidro do lampião e assopra, apaga a vela, a escuridão da madrugada abranda sua cegueira, desaperta a calça da cintura, tira a cueca com dois furos no assento e senta na bacia, se reconhece apenas mais uma vida com pouca vida, a garganta seca incomoda mais, repete que é preciso se acostumar com tanta secura

atira a água da bacia pela janela, está pronto, volta para a cama, Tu não deixou a toalha jogada na mesa, né, Não, Tem certeza, Tenho, mas vou dar mais uma olhada, coloca os chinelos que sempre deixa embaixo da cama, assim todas as manhãs ajoelha para encontrá-los e aproveita para agradecer, Obrigado, Senhor, por mais um dia... seja o que Deus quiser...

está de volta na cama, a toalha pendurada na corda das roupas secando

na conversa daquela madrugada ela tenta convencer o virgílio que precisam ficar mais aproximados dos vizinhos, Afinal, é dezembro, E daí, O Natal está chegando, desconversa e comenta do seu encontro casual com o vizinho, Hoje, encontrei o vizinho no bonde. Desci no meu ponto, ele seguiu viagem, E daí, E daí, nada. Foi apenas isto, Não se falaram, Não, Por que, não? A gente é vizinho, E daí, Nada, nada..., se recolhe em silêncio, Como foi o seu dia, assim que a pergunta lhe sai, está arrependido do silêncio perdido, maria memória quase reclama que está muito cansada, solitária e não viu nenhum movimento da saúva, Igual ontem, deixa pra lá. Vai dormir, ela não está disposta para ouvir: Isso não cansa, as tarefas da casa não é serviço.

espera, respira e suspira, não... ela é maria memória, não desanima tão fácil  

não se rende a falta de entusiasmo do virgílio com aquela sua intenção de aproximação e boa vizinhança, em um último suspiro ele tenta resistir, Minha preta, Tu não acha um pouco atrasada essa sua preocupação, Não acho, não. Por que, Não é óbvio? Eles já moram faz um bom tempo aqui do lado, E daí, Já parou para pensar o que vai dizer sobre essa desconsideração? Vamos ver: Sei que estamos um tempinho atrasados, sabemos bem. Mas não reparem, também somos um pouco estranhos. Sejam bem-vindos!

irritada, memória fica de costas para o virgílio e pergunta se ele não tem que levantar para procurar serviço, Acabei de chegar, Maria, Então, vá dormir. Já está decidido, no domingo faremos uma feijoada de boas-vindas e encerramento do ano, E dinheiro pra tudo isso? Feijoada sem patas e orelhas de porco não é feijoada, Eu sei, né? No mercado Público as patas, orelhas e miúdos tão no preço bom... e feijão tem em casa! No restante se dá um jeito. Boa noite, espera resposta que não vem

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