domingo, 9 de outubro de 2022

histórias davóinha: becos sem saída (III) 20bs – Bará, orixá que abre caminhos

becos sem saída


(III) o descolocado
20bs – Bará, orixá que abre caminhos

baitasar


virgílio para na porta do quarto, empurra a cortina e se volta para memória, Maria... Maria... tô saindo. Vou puxar o carrinho e vê se consigo algum dinheirinho, ela se mexe desapressada, espia com as vistas pousadas no sono, Tá bem, A gente se encontra no mercado, junto do portão, Hum... tá bem, não consegue desabotoar os olhos, Lá, a gente vê os pedaços do porco que vai dá pra comprar, Tá bem, ela sabe que é o virgílio, mas não lembra bem quem é o virgílio, Dá comida pras crianças... e depois vai, Tá bem, ela sabe que a realidade é dura como pedra, Virgílio..., O que é, Se cuida, Tá bem, memória se atravessa na cama enrolada no cobertor surrado de dar dó, ele se atravessa no beco

virgílio levantou antes do amanhecimento e deu início a lida de catador nas ruas da villa, é um tipo conhecido nos arredores e alhures do beco, um cavalgadura desmontado que passeia vez que outra cantando assobiado o seu anúncio de recolhimento, Pego osso, vidro quebrado, garrafa vazia, ferro-velho, assim, puxando sua carretinha, percorre as ruas da villa sob olhares escondidos e conversas esfarrapadas, Coitado... parece muito sofrido, Magrinho que dá dó, o comentário de um vizinho para outro, Só parece sofrido, Esse aí só aprece quando quer ou quando precisa, Será que faz algum dinheiro, Se souber trabalhar faz muito dinheiro... é só saber trabalhar, Ele me lembra um burro-sem-rabo, Preguiçoso, É só mais um desocupado desanimado, Que nada, mais um malandro vadiando que pega o que puder vender, Vasculham tudo que é lixo, Essa gente mete medo!

Garrafa vazia, ferro-velho, osso e vidro quebrado!

a manhã do sábado se mostrou pequena para as tarefas da anfitriã da feijoada: cafés, mamadas, tanques de roupas sujas, pia de louças, Lamparino e Supimpa! Venham aqui, Sim, mãinha, Quero esse pátio limpo! Varrido e arrumado! Podem começar, Mas mãinha..., Não tem mais nem meio mais... vão... vão...

é isso, e pronto, os muriquinhos não precisam compreender as ordens, só precisam saber obedecer, Vocês precisam ajudar pra tudo vai dar certo sem mistérios ou choradeiras. Graças à vontade de Deus Pai e dos orixás, olha para os dois, Não quero bagunça! Entenderam? 

Ouviram, Sim, mãinha...

não vê a manhã passar

presta atenção em tudo, cada detalhe, nada escapa ao seu olhar, o pequeno banquete será aprontado, e assim, honrará o sangue, o suor e o sacrifício da sua ancestralidade, a dor aberta da escravidão jogada nos becos sem saída

o feijão aumentou com água e engrossou com farinha de rosca, o guisado também deu uma aumentada misturando cebola picada com o restante do aipim, o almoço dos muriquinhos estava pronto, Comam!

futuro ganhou a sua segunda mamada, Guria de sorte, a fartura da leitaria não há de faltar.

memória comeu as sobras do pão dormido de antes de ontem molhado em água morna com folhas de laranjeira, Meninos, mãinha vai no mercado. Vou levar a irmã de vocês, Ah, mãinha... leva a gente, também, Não! Vocês ficam cuidando da casa, Ah, mãinha..., Assunto encerrado. Não esqueçam de terminar a limpeza do pátio.

colocou maria futuro em uma trouxa de roupa vazia e pendurou o berço de pano no pescoço, a muriquinha se aquietou entre as mamadas cheias da memória, Tô indo. Cuidem da casa. Não quero bagunça.

a caminhada naqueles dois quilômetros de subida e descida da colina, desde a baronesa até o mercado, foi sem susto, não fossem as enchentes dos riachos, por ali, e a vida não seria de toda ruim

no mercado, parou junto ao portão do lado para a colina, olhava as carroças com frutas e verduras, as pessoas entrando e saindo, o perfume da fritura dos pasteis, empadas de camarão, bolinhos de batata, sonhos, pés-de-moleque, os pães, a carne defumada, as especiarias, a erva-mate, os temperos, o mel, os chás, os artigos religiosos e místicos, Por onde anda o Virgílio, se perguntava 

por sorte, a muriquinha dormia, mas nada do extraviado

uma, duas horas esperando, plantada e enraizando naquele portão de ferro, maria futuro acordou resmungando, anunciando o seu descontentamento com aquele desconforto de vozes e gritos, memória resolveu que chegara a hora de ir embora, as duas estavam cansadas daquela espera desassossegada, Tá bem, meu amor. Vamos passear um pouquinho. O papai chega logo, caminhava em direção da encruzilhada dos quatro corredores do mercado, no encontro dos caminhos dobrou os joelhos e catou três moedas, O Bará do mercado não vai se importar em favorecer quem muito precisa.

Maria!

a desassombrada memória levou um susto danado, jura que pensou, Pronto, fui delata pro Bará, parou os passos, não podia se dar ao luxo de correr com a futuro agarrada na mamada

Maria!

outro desassossego, olhou na direção do chamado, o portão do outro lado, Que faço eu se for algum mal-educado, confesso que não resisti a tentação das moedas jogadas no chão ou enfrento a sua impertinência?

aquela multidão de pessoas entrando e saindo

Maria!

pensava se aquela voz só haveria de querer o seu bem ou a reduziria a nada, sabia que o inferno está dentro da cabeça das pessoas que tropeçam entre o ódio frio e o amor úmido

Maria!

aquela gritaria chamando chamando chamando, ferindo o espaço das boas maneiras, Se me chama pelo nome é conhecido, mas por que não aparece, resmungava e colocava os olhos na direção dos portões, o portão do Caminho Novo, o portão do Chalé, o portão da descida e subida da colina, até que pousou as vista no portão das águas, espreitou firme a multidão barulhenta daquele entre e sai, o trinado das algazarras, fechou o cerco até que viu o virgílio, Homem de Deus, onde tu andava?

Eu tava esperando no lugar combinado, Mas onde, homem de Deus, No portão de ferro na frente do rio, Eu tava no portão da Borges, Ainda bem que tu saiu de lá, Eu já tava no ponto de ir pra casa, Eu tava no lugar combinado, Tá bem... tá bem, Vamos na banca do açougue, Como foi, queria saber da catação das sobras que não cabem mais na vida das pessoas, A manhã rendeu, Isso é bom, A minha rendeu só três moedas do Bará, virgílio abriu bem aberta a brancura dos olhos, O que tu tem na cabeça? Pegou as moedas do Bará? Tu não sabe da tradição?

Que tradição, homem de Deus?

Aqui, no centro do mercado - construído pela nossa gente escravizada - tem essa encruzilhada. É o lugar onde está "sentado" o orixá Bará, ele é responsável pela abertura dos caminhos da fartura e abastança. É lugar de religião, ela balançou os ombros, Isso mesmo, eu sei, uma encruzilhada onde todo mundo vai e todo mundo sai, ele continuava assustado, Uma herança que recomenda o mercado como um espaço da gente que é preta e pobre, ela continuava sem entender tanto assustamento, Eu sei disso tudo, ele colocou as duas mãos na cabeça e sentenciou, Pode ser um lugar de encontro e desencontro, E com a gente aconteceu o desencontro, Isso mesmo, E depois o encontro, largou a futuro e mostrou os braços, tô toda arrepiada, É um orixá brincalhão, falou tentando diminuir os arrepios da memória, Parece que brincou com a gente, Ele adora se divertir, Ouvi dizer que na frente dele a gente espera tudo, E tu sabe que as moedas são oferendas, perguntou para memória, Sei, ele abriu a brancura das vista, novamente, E tu pegou as moedas, mesmo assim, Se não é eu é outra mão, o virgílio subiu e desceu as mãos, juntando no peito como se tivesse suplicando, Pois que seja outra mão e não a tua. Devolve, Não, Tu tá maluca? Devolve, Tem certeza, Tenho. Vai ali, devolve e se desculpa, memória se voltou para o lugar marcado como centro dos caminhos do mercado, a encruzilhada da fartura e do trabalho, jogou duas moedas, E a outra, Já vou devolver, calma, Isso, virgílio solta o suspiro de alívio que segurava no peito, Bobagem tua, dá quem pode e pega quem muito precisa, Chega dessa conversa. Vamos sair daqui, Pra onde, Açougue, Maria... vamos pro açougue.

memória olhou para trás... não viu mais as moedas, Eu sabia...



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